A FADINHA E O BONDE ELÉTRICO

A FADINHA E O BONDE

(História original de Antonio Barata, publicada em Contos Infantis pela Editora Globo, em 1947, versão poética de William Lagos, 21 ago 14)

A FADINHA E O BONDE I

Era uma vez uma fadinha delicada

que, por esses caprichos singulares,

enamorou-se de um galã dos mais vulgares:

um bonde preso à linha eletrificada,

que sobre trilhos andava fixamente,

em um percurso sempre demarcado;

mas a fadinha nenhuma paisagem diferente

desejava, por suas praças encantada,

enquanto o bonde seguia, determinado,

em seu percurso transportando muita gente...

Talvez fosse pelo destino no painel,

que indicava só “Jardim do Sol”;

a fadinha se empoleirava num farol,

os seus cabelos recendendo como mel,

desmanchados pelo vento desatento,

sem se importar que houvesse solavanco

nos intervalos dos trilhos e o movimento

até apreciava, igual que um choque mais cruel,

quando a energia sofria qualquer tranco

e arrepiava suas madeixas mais que o vento...

Ela e o bonde se davam muito bem

e ao longo das viagens conversavam

em uma língua que só eles escutavam,

dos seres mágicos e elétricos também,

comunicada pela eletricidade

ou pelo vento, em puro sibilar,

uma linguagem isenta de maldade,

que os animais inocentes também têm;

mas dos animais ferozes o falar

é diferente, em razão de sua maldade.

Certo dia, sobre o estribo empoleirada,

ela notou que seu colar arrebentara!...

Era um colar preciosíssimo, que ganhara

por boa ação, realmente de nomeada,

da Rainha das Fadas, recompensa

de muitos séculos de serviços de valor;

era montado num fio de brisa tensa,

na imitação de conta perolada,

mas de gotas de orvalho o seu pendor,

que a superfície por magia condensa...

A FADINHA E O BONDE II

Será difícil até mesmo imaginar

qual o valor de um colar de orvalho!

Em peito humano jamais um agasalho

teve uma joia assim, a fulgurar!...

Mas como tudo que é belo e que é precioso,

muito mais facilmente quebraria

que uma pedra do diamante mais formoso...

E nesse instante, ela vê a escorregar

cada gotinha transformada em pedraria,

para um destino bem mais que perigoso!...

Não quebrariam imediatamente,

tão só de rebater no pavimento;

porém pisadas sem conhecimento

(gotas de água pareciam, realmente)

muitas pessoas as esmagariam

quando passassem, seus negócios a tratar!

Até a fadinha elas pisoteariam

como um reflexo, inadvertidamente!

Somente um jeito havia de as salvar:

quando um obstáculo ali encontrariam!...

Não teve dúvida a fadinha e deu um grito:

“Pare! Pare!” – igual que a gente ouvia exclamar;

o bonde amigo nem sequer se fez rogar;

no mesmo instante parou e um som aflito

partiu dos passageiros, uns nos outros a trombar...

“Mas que foi isso?” – perguntaram ao motorneiro.

“Não sei! Ele parou e não quer andar!...”

“Ora, não quer!” – um velho, com jeito de perito,

retrucou na mesma hora, zombeteiro:

“Alguma coisa fez sua máquina enguiçar!...”

O motorneiro tentou mover os pedais

e remexeu na caixa de mudanças,

deu manivela, sem obter quaisquer andanças,

foi conferir os defeitos habituais:

estava firme do cabo elétrico a ligação,

nada trancava qualquer engrenagem...

Das mudanças inverteu a rotação:

recuou o bonde com um solavanco a mais

e de novo interrompeu a sua rodagem,

tudo parado, sem a menor explicação!...

A FADINHA E O BONDE III

O que o motorneiro não sabia

e muito menos o que achava ser perito

ou o passageiro que reclamava mais aflito,

era que o bonde à fadinha obedecia!...

Por entre os trilhos depressa ela voou

e começou suas continhas a juntar;

foi só por isso que o bonde até recuou,

senão com as suas rodas poderia

alguma gotícula de orvalho esmigalhar:

com a amiguinha ele assim colaborou!

Ele sabia como as contas eram preciosas,

mas mais preciosa era a sua amizade

com a fadinha... Por toda essa cidade

ninguém mais mantinha conversas saborosas

com o pobre bonde, que achavam inanimado;

e o veículo, assim, andar “não quis”,

embora achassem estar só enguiçado;

pensam adultos ter opiniões valiosas,

mas só enxergam a sua ponta do nariz,

sem escutarem sequer conversa do seu lado!

Uma menina ali sentada pretendia

ir ao parquinho com o seu avô

e assim foi ela a única que escutou

essa conversa que ninguém mais ouvia

e essa parada foi a única a entender!

O pobre motorneiro, atoleimado,

um bom profissional, não compreendeu

qual a razão por que não descobria

o motivo de estar o veículo encalhado,

pois em cada parafuso remexeu!...

Enquanto isso, a fadinha procurava

suas vinte e quatro continhas ajuntar,

mas por mais que ela fosse investigar,

só vinte e três nas mãozinhas segurava...

Até o bonde já ficara impaciente:

“Querida, vou perder o meu emprego!

Daqui a pouco, chega reboque bem potente

e se ele para a oficina me puxava,

caso não encontrem um defeito cedo,

para a sucata me mandam, de repente!...”

A FADINHA E O BONDE IV

A esta altura, outro bonde já chegara

e parara nos seus trilhos, impaciente:

“Por que razão está parado na minha frente?

Seu preguiçoso! Depressa!” – ele exclamava.

E o pobre bonde nem sabia o que dizer,

se contasse o outro não iria acreditar!...

Se acreditasse, o chamaria ao dever,

todo o trânsito sua atitude atrapalhara...

Talvez até se decidisse a empurrar

e a proteção a sua fadinha iria perder!

O motorneiro telefonou à companhia,

Pedindo auxílio ao superintendente.

“Está tudo em ordem!” – repetia, frequente,

“mas encalhou, sem defeito que se via!...”

Os passageiros já haviam descido,

naquele tempo se andava mais a pé,

cada um a seu destino dirigido;

ficou o avô com a menininha que ouvia,

mas que há muito não encontrava fé,

quando contava ter magia assistido...

Porém do bonde ela ficou cheia de pena

e se compadeceu do nervosismo

do motorneiro, a sofrer com realismo

e da fadinha, pela perda que a envenena!

Então, olhando ao correr do calçamento,

a viu flutuando, igual que raio de sol

e mais além, uma gotinha em movimento

e então gritou, numa piedade extrema:

“Está ali, não vê? Bem ali, lá no farol!

Olhe ali, está iluminando o pavimento!...”

O seu avô ficou horrorizado:

“Menina, por favor, cale essa boca!

Vão pensar que você é alguma louca!...”

Mas a garota já transmitira seu recado

e a fadinha a última gota segurou,

sem que nenhuma tivesse rebentado!...

Então, ao amigo bonde ela avisou:

“Pode ir embora, meu bem! Muito obrigado!”

O bonde um ronco deu, muito aliviado

Enquanto isso, a fadinha ao céu voou!...

A FADINHA E O BONDE V

Só então ali chegou o superintendente

e com o movimento surpreendeu-se;

o motorneiro para seu assento ergueu-se:

“Mas o que foi que houve, incompetente?”

“Não sei, patrão, de repente funcionou!...”

Já havia seis bondes parados mais atrás:

um passageiro desceu e se assentou

no primeiro, porque estava bem à frente;

a sua ideia um bom exemplo traz

e muita gente igualmente se mudou!...

A fadinha ficou nos ares a adejar;

chegou correndo então o cobrador;

saiu o bonde com grande vigor,

seus passageiros nos destinos a deixar...

E a seguir os outros bondes avançaram,

contra os fios os seus cabos a estalar

e o Vovô e sua Netinha então apearam

exatamente aonde queriam chegar;

e o bom Vovô resolveu não perguntar...

Ela brincou e sorvete os dois tomaram...

Pensou o velho: Isso é coisa de criança!

Mas esse bonde partiu logo em seguida!

Às vezes penso haver coisa esquecida

da minha infância que a memória não alcança...

Mas não importa! Que aproveite a fantasia,

durante os anos em que ela é mais feliz!...

Decerto foi alguma bola que ela via

e alguém correndo atrás, na rua mansa!...

Mas o colar salvou-se por um triz,

seguindo o bonde a marchar com alegria!...

Já o motorneiro estava mais do que intrigado

e resmungou: “Quero virar lagarto,

se não foi feitiçaria esse mau quarto

de hora em que aqui fiquei parado!...”

E o bonde soltou uma risadinha,

sua amiguinha deu uma piscadela

e por instantes, se portou como bruxinha:

em lagarto foi o motorneiro transformado!

Mas foi só por um momento, troça dela,

para voltar à aparência que antes tinha!...

EPÍLOGO

Hoje em dia, aos bondes aposentaram;

falavam que interrompiam a eletricidade

e atrapalhavam o movimento da cidade...

Até os trilhos das ruas arrancaram...

Mas o bonde amigo foi posto num museu

e a fadinha vem com ele conversar...

Não sei se a garotinha já esqueceu

das fantasias que um dia a encantaram...

Eu preferia que ainda pudesse se lembrar,

como eu recordo tanto sonho que foi meu!...