PERSEU E AS GÓRGONAS
PERSEU E AS GÓRGONAS
(Mitologia helênica, versão poética William Lagos, 20/8/14)
(Dedicado ao Dr. José Carlos Teixeira Giorgis)
PERSEU E AS GÓRGONAS I
Acrísio, o rei de Argos, muito ansiava
por ter um filho que no trono o sucedesse;
à sua esposa Eurídice muito amava,
embora só uma filha ela lhe desse;
e a resposta que tanto procurava
deu-lhe o Oráculo, depois que o consultasse:
Em tua alegria, a tristeza está presente,
pois serás morto por teu filho, finalmente.
A Acrísio amedrontou a profecia
e desistiu de qualquer filho, prontamente,
mas escutando o que a esposa lhe dizia,
mandou afogar cada um filho inocente
que de suas servas a luz do mundo via,
mas uma delas advertiu-o, friamente:
“Tua filha Dânae ainda é uma criança,
Porém por ela sofrerás a minha vingança!”
Destarte, o rei a mandou encerrar
em alta torre, próxima ao castelo,
pois sozinha não poderia engravidar.
Talvez devesse à sua vida por um selo...
Mas se eu morrer, quem minhas cinzas vai honrar?
E muito embora seu coração fosse de gelo,
fez que lhe dessem todos os cuidados,
sem permitir que tivesse namorados...
A mãe de Dânae era sua própria esposa,
a mesma Eurídice, que outros filhos não tivera;
matar a própria filha, ação maldosa,
contrariaria a moral que mantivera
o povo helênico como sendo a mais preciosa;
por má que fosse a profecia que recebera
da Pítia, seu sangue não podia derramar
e ao mesmo tempo, não a queria preservar...
Foi-lhe explicado então que a profecia
da Pitonisa de Delphos, onisciente,
às mãos de um neto a morte lhe previa;
um neto é filho duas vezes, certamente...
Mas cada aedo o seu poema redigia
como melhor lhe fosse conveniente,
ou talvez para obter a recompensa
de qualquer rei com diferente crença...
PERSEU E AS GÓRGONAS II
A Rainha Eurídice teve fado bem diverso
da outra Eurídice, amada por Orfeu,
que foi lançada para o abismo inverso
a que o cantor, em grande amor, desceu,
quando amansou até o cão perverso,
Cérbero Tricéfalo; e seu canto convenceu (*)
o próprio Hades a devolver-lhe a esposa,
formosa a voz, mas ela mais formosa...
(*) O Cão de Inferno, que tinha três cabeças.
Já esta Eurídice era apenas a princesa
filha de Laquedêmon, o espartano rei;
por um tratado com Argos fora presa
do rei Acrísio, que a desposara pela lei,
sem que amor compartilhassem, com certeza;
de fato, Acrísio preferia mais sua grei
de escravas belas para o seu carinho,
sem que Eurídice visitasse no seu ninho...
Não é de admirar que se enciumasse
dessas crianças que via no castelo
e ao saber da profecia, aproveitasse
em dar vazão a seu terrível zelo,
exigindo que o marido as afogasse,
para alegria do coração de gelo
dessa mulher que fora desprezada,
após ser prêmio por uma paz firmada.
De qualquer modo, concordam os autores
que Acrísio expulsava os pretendentes
da bela filha ruiva, em seus temores
de ser morto pelas mãos de descendentes;
quanto mais velha, maiores seus primores
e assim com grades fortes e correntes
cercou as janelas de sua torre forte
para ali encarcerá-la, triste sorte!...
Não era cela, mas um bom apartamento,
bem mobiliado, até meio luxuoso,
com um banheiro para atendimento,
embora a água a carregasse, desgostoso,
um forte escravo, sob acompanhamento
de aias e de guardas; e um poderoso
gradil fechasse a saída da latrina:
era impossível visitarem a sua menina!
PERSEU E AS GÓRGONAS III
“Homens põem, porém deuses dispõem”,
qual se dizia no tempo dos helenos;
e assim por Zeus as previsões se repõem
de forma pura, apesar dos mil venenos
que por más línguas propalados soem;
e o destino as fez cumprir em fatos plenos...
Ao ver a pobre Dânae encarcerada,
foi ajudá-la de forma inesperada...
Zeus transformou-se numa chuva de ouro,
penetrando por uma das janelas
e a cobriu com tal chuva, sem desdouro,
em milagroso casamento de procelas:
seios e ventre, do corpo seu tesouro,
todos os traços de suas faces belas
foram por Zeus empapados totalmente
e a virgem engravidou de tal presente!
Claro que houve quem mal dela falasse,
mas era impossível em seu quarto penetrar...
Lactâncio, como a lenda o perturbasse,
vendo nela semelhança singular
com o nascimento de Jesus e assim achasse
que poderia alguém levar a blasfemar,
afirmou que Praectos na torre se insinuara,
(o irmão de Acrísio) e à sobrinha engravidara! (*)
(*) Lactâncio, filósofo cristão, também viu alusão ao Massacre dos Inocentes.
O tio teria pensado que, ao morrer
o seu irmão pela própria mão do neto,
não poderia este a seu trono ascender
e assim cumpriria seu sonho mais dileto
de no trono de Argos a Acrísio suceder;
por um castigo alcançaria seu objeto,
quer mandasse matar o seu sobrinho
ou exilá-lo para qualquer outro caminho...
Praectos obteria então certa maneira
de conseguir aquela aia subornar,
que era de Dânae a ama e carcereira;
e sendo irmão do rei, podia afastar
aos soldados, por mais fosse altaneira
a sua fidelidade em tal guardar...
Até mesmo os cães ferozes conhecia
que o rei em torno à torre distribuía...
PERSEU E AS GÓRGONAS IV
Desse modo, seduzida a sua donzela,
cobriu-lhe o leito com moedas de ouro,
como preço da vergonha imposta a ela,
a verdadeira chuva tal tesouro...
Mas todos escolhem a versão mais bela:
que fique Lactâncio no desdouro
de ofender da pobre Dânae sua pureza,
por da lenda não aceitar tanta beleza...
O fato é que Dânae engravidou,
sem ser por qualquer homem maculada;
mas quando Zeus da jovem se afastou
sua constante proteção foi conservada;
e quando a gravidez se completou,
veio Perseu à luz, na madrugada,
protegido por divina multidão,
para cumprir do Oráculo a missão.
Sequer a mãe a vinha visitar
e assim ficou-lhe oculta a gravidez
até que Acrísio, certo dia a caçar,
passou junto da torre e um som se fez
que o recordou de um infantil chorar...
Acrísio enfureceu-se, por sua vez
e as escadas subiu, incontinenti,
para à porta bater violentamente!
A aia foi forçada a abrir a porta
e entrou o rei direto no aposento;
a razão da gravidez pouco lhe importa:
que era menino, soube num momento!
Em dia futuro, a sua vida corta
a criaturinha em meigo movimento!
Não duvidou sequer por um instante,
puxando a espada para matar o infante!...
Porém Dânae o desafiou, ardentemente,
”Primeiro terá de me matar a mim!
Vai derramar o sangue de sua gente?”
Mandara Acrísio só afogar, enfim,
das escravas toda a prole, anteriormente
e nenhum sangue derramara assim...
E dominando sua cólera inclemente
a explicação escutou bem calmamente...
PERSEU E AS GÓRGONAS V
“Não, o seu sangue não derramarei,
mas sim o dessa aia má e infiel!”
E num só golpe, decapitou-a o rei,
mandando a guarda para seu quartel,
interrogados segundo a marcial lei...
mas não havia ali qualquer rebel:
era trocada a patrulha diariamente,
não poderia executar toda essa gente!...
Então pensou que o mal já estava feito;
seria seu neto de nascimento virginal;
seu adivinho afirmou ser o direito
do Rei dos Deuses consorciar-se com mortal
e esse conúbio fora assim mais que perfeito:
Dânae nem vira o seu consorte divinal!
Porém o deus protegeria seu filho
por toda a Terra ou sobre o mar no trilho!
“Pois muito bem! Ele então a protegerá
se for entregue às ondas do mar
ou a seu irmão Posêidon a entregará!...”
Mandou fazer grande tonel para encerrar
a filha e o neto... “Quero ver se flutuará
ou se nas ondas irá logo afundar...”
E ordenou a seguir que se o jogasse
de um penhasco, para ver aonde flutuasse!...
Porém Éolo, o rei dos ventos, sustentou
o tonel, sem nos penhascos se quebrar
e sobre as ondas devagar o depositou;
para as Ondinas coube o transportar;
e Posêidon, o rei do mar, colaborou
com seu irmão, o rei da terra e do ar,
de tal modo que o tonel foi navegando,
aos passageiros mal algum causando...
À ilha de Sírifos aportou, eventualmente,
dando à praia sem dano ou qualquer mal;
e Díctis, um pescador benevolente
o recolheu, com espanto natural;
e ao ver a ruiva Dânae ali inconsciente
com Perseu no seu colo maternal,
os dois levou para Climene, sua mulher,
que cuidou deles, sem protestar sequer...
PERSEU E AS GÓRGONAS VI
De fato, filhos o casal nunca tivera
e assim a Dânae e a Perseu apadrinharam;
a liberdade, que finalmente recebera,
à beira-mar e o carinho que mostraram
fizeram Dânae esquecer que um dia fora
uma princesa e até que a encarceraram;
acostumada a tecer no cativeiro
às suas tarefas se acostumou ligeiro...
E o menino cresceu forte e saudável,
do novo pai aprendendo a profissão
e a demonstrar pendor considerável
para a caça e a esgrima com bordão;
nunca adoecia, apresentando formidável
robustez, por sua linhagem e a proteção
das ninfas e silfos escondidos
contra os perigos e acidentes conhecidos.
Porém um dia, durante uma caçada,
Polidectes, que de Sírifos era o rei,
contemplou Dânae, sua saia arregaçada
enquanto as roupas lavava e mal eu sei
descrever a paixão desenfreada
que o acometeu então. Porém a lei
de sua ilha lhe exigia a monogamia
e nem sequer concubinas permitia...
Aproximando-se, Polidectes indagou
onde morava e quais eram seus pais;
e a bela ruiva falsa história lhe contou:
que ali nascera, sendo seus pais naturais
os pescadores, que os antigos recusou
mencionar, pelas maneiras anormais
com que a haviam criado prisioneira
e sobre as ondas a lançado em branca esteira...
Polidectes foi a cabana visitar
e indagou se o menino era seu irmão;
mas quanto a isso, não quis prevaricar:
“É meu filho, Majestade,” disse então
“E seu marido?” o rei quis indagar.
“O mar bravio nos separou, num furacão...”
disse ela, realmente sem mentir,
pois nunca mais Zeus pudera pressentir.
PERSEU E AS GÓRGONAS VII
Então o rei para o palácio a convidou
e que com ela trouxesse o seu menino.
“Você é bela demais,” a elogiou,
“para esconder-se neste mau destino...”
Era uma ordem, entendeu, e a aceitou,
sem desconfiar de algum ardil mais fino.
Pois era virgem, afinal, ainda inocente
e contrariar não se atrevia a seu regente.
Mas a presença de Perseu atrapalhava
de Polidectes qualquer má intenção;
no treinamento de combate o conservava
ou lhe confiava qualquer uma missão
ou ainda em sentinela o destacava...
Porém sua esposa nem a mínima ocasião
lhe permitia para sozinho se encontrar
com a tal donzela que o rei sabia desejar.
O rei de Sírifos então pretendeu
celebrar seus vinte anos de reinado;
cada conviva então lhe ofereceu
o melhor presente que havia achado;
mas quando o jovem Perseu apareceu,
nada lhe trouxe, por ser de tudo despojado...
Polidectes então o interrogou:
“Qual o presente que hoje me ofertou?”
“Majestade, bem sabeis que nada tenho,
salvo a coragem e a força de meus braços;
fui convidado, razão por que aqui venho,
mas estou pronto a dirigir meus passos
para onde me ordenar, com todo o empenho,
enquanto energia tiver nos membros lassos...”
“Pois então me traga a cabeça de Medusa!”
disse Polidectes, já esperando uma recusa...
Qualquer recusa de Perseu o envergonharia
e serviria de motivo para o exilar;
em sua ausência, a Dânae seduziria...
Casado ou não, a poderia namorar...
Porém Perseu pediu-lhe um ano e um dia,
antes de tal cabeça lhe entregar...
Mesmo Perseu não tendo ainda quinze anos,
era mais forte e mais alto que os humanos.
PERSEU E AS GÓRGONAS VIII
Ao saber a quem seu filho enfrentaria,
Dânae ajoelhou-se e a Zeus suplicou,
que seu pedido em breve lhe atendia,
pois quatro grandes deuses convocou;
a deusa Athena seu escudo lhe trazia,
polido igual a espelho e lho entregou;
chegou Hefesto, senhor do mundo arcano,
com capacete de efeito soberano...
“Ponha-o na cabeça e então será invisível!
mas como o escudo, terá depois de o devolver!...”
Veio Artemísia, trazendo a irresistível
espada Chrysaor, um estranho ser
que fora filho de Medusa e o dom terrível
de sua mãe, ao invés de em pedra o converter,
o transformara nesse gládio de magia
a que nem ferro nem pedra resistia!...
E finalmente, chegou Hermes, o mensageiro,
as suas sandálias aladas emprestar-lhe...
“Mas veja bem: é só empréstimo ligeiro;
metade de meu poder estou a entregar-lhe;
ainda transponho os ares, sobranceiro,
mas devagar... De Zeus respeito o talhe,
porém não posso mais transmitir os seus recados,
sem ter de volta meus mágicos calçados...”
“Sendo assim, um conselho lhe transmito,
para que alcance sucesso em sua missão:
que voe até a Líbia agora o incito;
no Lago Tritônides vá encontrar essa mansão
habitada por Euríale, com o fito
dos caminhos descobrir a direção.
Ela é a terceira górgona, a bela,
que nas areias do deserto se encastela...”
Segundo Ovídio, as Górgonas eram três,
Medusa, Esteno e Euríale, ainda irmãs
das três Graias, que nasceram por sua vez
com os cabelos brancos como lãs,
mas deformadas e tão escuras em sua tez
como a meia-noite difere das manhãs
e ainda tinham só um olho e só um dente,
mais feias que qualquer humana gente.
PERSEU E AS GÓRGONAS IX
“Aspiração zelosa de muitos pretendentes”
era Medusa, das três mesmo a mais bela;
sacerdotisas de Athena, que inclementes
repeliam com escárnio, a troça que mais gela
os corações de quaisquer dos insistentes
em que intenção erótica se atrela;
de sua própria beleza tão vaidosas
que mais que a deusa diziam-se formosas!
Porém Posêidon, vendo-lhes a vaidade,
decidiu dar a Medusa uma lição;
nunca descia à praia, em realidade,
mas numa tarde, um cansaço sem razão
acometeu-a, vindo da salinidade
e a maré subiu correndo pelo chão,
até causar-lhe a mesma gravidez
inesperada que Zeus após em Dânae fez...
Porém Zeus o faria por piedade,
enquanto Posêidon realizou-a por castigo,
denunciando a Athena que impiedade
Medusa cometera do templo no jazigo;
E a deusa, que já lhe tinha má-vontade,
fê-la depois casar-se com terrível inimigo,
o monstro Calirrói, que à força a seduz,
quando a Équidna e a Gérion deu a luz...
Mesmo feios igual ao avô, o monstro Ceto,
tomou Athena os dois seres como escravos
e transmutou de Medusa o seu dileto
rosto em um horror, dentes em cravos,
e os cabelos a que mostrara tanto afeto
em víboras horríveis, olhos bravos,
tão malignos de ódio e de rancor
que petrificavam aos heróis de mais valor!...
Segundo Hesíodo, eram antes suas feições
a causarem nos humanos tal horror
que transformavam em pedra multidões,
incapazes de fugir de um tal terror,
completamente empedernidas as paixões,
petrificados por seu medo e seu rancor;
e o filho de Posêidon, Chrysaor, tornara
naquela espada, ao permitir que a contemplara!
PERSEU E AS GÓRGONAS X
Terrível coisa é contemplar ao sobre-humano!
Assim com Sêmele, a mãe de Dionyso,
que morreu calcinada, quando ao soberano
Pai dos Deuses teve diante de seu viso;
também Jeová, àquele Moisés arcano
não permitiu, por resguardar-lhe o siso,
o seu semblante em glória contemplar:
só ao ver-Lhe as costas, sua face a rebrilhar!
Pois de Medusa, só a fisionomia
bastava para a vida exterminar!...
Ao ver a irmã, no horror em que jazia,
Esteno suplicou à Athena lhe perdoar;
que “ficasse igual a ela” então pedia
e assim Athena lhe atendeu ao suplicar:
como Medusa ficou igualmente feia,
que até de olhar a si mesma se arreceia!
Para Euríale a sábia deusa se voltou:
“Também você algo deseja suplicar?”
“Amada deusa, nenhum pecado me tentou:
quero somente como antes continuar!”
E a Tritônides Athena a transportou,
para um novo e belo templo lhe fundar
e conferiu-lhe a imortalidade
em recompensa por sua fidelidade!...
Foi a esta que Hermes o enviara
e como usar as suas sandálias o orientou,
até que as costas da Líbia divisara...
“Meus pés desnudos o sol já requeimou,
que meu auxílio à lerdeza condenara!”
Com o capacete para o Olimpo retornou;
Perseu seguiu ao longo do deserto,
até que o templo foi ficando perto...
Desceu perante o pórtico, equipado
com o escudo, o capacete e Chrysaor,
as duas sandálias em cada pé alado
e Euríale o recebeu em grão favor:
“Tenho um banquete no átrio preparado;
Zeus me avisou de um visitante de valor
e Athena espera que lhe dê informações
para atingir de minhas irmãs as habitações...”
PERSEU E AS GÓRGONAS XI
“Não espere de mim qualquer traição,
nem se iluda que lhe demonstre amor;
de minhas irmãs sei bem a maldição,
que Athena desafiaram; mas só louvor
tenho por ela, nos séculos que estão
ainda à minha frente, só por seu favor;
não tenho afeto por aquelas duas feiosas,
que até merecem mais castigo essas maldosas!”
“Contra mim gênios maus envia Medusa
e Esteno a mim atiça elementais...
O poder de Athena os ares cruza,
mas se distraem mesmo os seres divinais.
Eu deveria só agir como uma musa,
mas as Eumênides, as Hárpias e outras mais
sou forçada toda noite a enfrentar!
De minhas irmãs só desejo me livrar!...”
Após brindá-lo com lauta refeição,
fê-lo dormir até o amanhecer.
Perseu ergueu-se com a primeira devoção,
reverenciando a Athena em seu lazer;
depois Euríale lhe fez declaração:
“Perseu, confesso que senti grande prazer
com sua visita e. por isso, o enganei,
porque os caminhos certos eu não sei!...”
“É na Hiperbória, lá no extremo Norte
que a Górgona Medusa tem covil;
e sei que Esteno mantém sua simples corte
em qualquer ilha do arquipélago senhoril
das ilhas helênicas, aonde lê a sorte
de quem se atreve, com valor viril
ou coragem feminil a procurar
em sua caverna, após monte escalar...”
“Mas não se assuste, enganei-o parcialmente,
só por querer desfrutar sua companhia...
Vou ensinar-lhe o caminho, inteiramente
para as Graias, que conseguem, por magia
encontrar senda ou estrada diferente...
Para enganá-las, seu capacete serviria...
São minhas irmãs, porem devoram gente
e o levariam a tal destino ingente...”
PERSEU E AS GÓRGONAS XII
“As minhas irmãs infelizes nem têm nome!
Só têm um olho e só possuem um dente;
a maior parte do tempo passam fome
e volta e meia sofrem acidente,
pois esse olho que sua cegueira dome
não lhes permite à audição tornar potente
e compensar-lhes a falta de visão,
pois o olho passam assim de mão em mão...”
“Quando chegar, por suas costas, de mansinho,
seu olho agarre com a maior rapidez,
antes que estendam garras aduncas como espinho
e pegue-lhes o dente, então, por sua vez!
Suplicar-lhe-ão, com vozes de carinho
ou gritarão em raiva espessa como pez...
Mas sem lhe darem as respostas que procura,
não lhes devolva esses órgãos que segura!”
Perseu voou até o lugar, rapidamente
e viu as Graias, tentando cozinhar...
Com o capacete, bem disfarçadamente
chegou por trás e conseguiu pegar
aquele olho, seu único órgão vidente,
quando as irmãs o foram repassar;
na confusão a seguir, pegou o dente,
deixando as três a chorar pungentemente...
“À Hiperbória como chego?” perguntou.
Sob protesto, o caminho lhe indicaram;
“Qual é a ilha de Esteno?” ainda indagou.
De mau grado as três o informaram:
“É a ilha de Lesbos, na qual encontrou
adoradores, que até hoje a alimentaram...
Agora, ande, devolva o nosso dente
e o nosso olho, ó homem indecente!...”
“Primeiro, digam-me o que devo fazer
para vencer a Górgona terrível!...”
“Com seu escudo, será fácil obter
que ela contemple sua feição horrível;
e enquanto imóvel ela permanecer,
degole-a então, com sua espada invencível!
Zeus, seu pai, sua mão há de guiar
e facilmente a poderá matar...”
PERSEU E AS GÓRGONAS XIII
“Mas que pretende fazer com sua cabeça?”
as três Graias indagaram, ardilosas...
“Pretendo carregá-la, sem ter pressa
e entregá-la nas mãos poderosas
de Polidectes, cumprindo minha promessa.”
“E que proteção terá contra as maliciosas
vistas terríveis de nossa irmã Medusa,
quando sua vista com os olhos dela cruza...?”
“Mas ela mata, mesmo depois de morta?”
“Sem a mínima dúvida, meu rapaz;
só uma coisa sua malignidade corta:
um surrão feito com a casca veraz (*)
de nossa irmã Esteno, que comporta
a melhor proteção que o mundo traz;
terá de ir até Lesbos primeiro
e encontrá-la dormindo em travesseiro...”
(*) Saco de couro próprio para viagem.
“Como assim?” disse Perseu, espantado.
“Ora, ela tem o mesmo olhar petrificante
que de Medusa o rosto feio é dotado,
mas só pode ser morta num instante
em que Morfeu a tenha dominado...
Para ela o reflexo é insignificante,
porém nosso bom sobrinho Chrysaor
seu pescoço cortará, com grande ardor...”
Perseu lembrou-se de que a espada fora gente
e que sua própria mãe a transformara...
“Corte a pele de suas costas com a potente
lâmina da espada que consigo carregara
e a costure com suas veias, facilmente,
sem qualquer fresta que o mau olhar ultrapassara.
Já o ajudamos, agora dê nosso olho
e nosso dente ou secaremos em restolho!”
Mas Euríale o havia prevenido
de que elas poderiam enfeitiçá-lo
após terem olho e dente recebido
e assim os colocou dentro de um valo,
a vinte metros do covil perdido
e alçou voo antes que os alcançassem
e algum feitiço, por vingança, praticassem!
PERSEU E AS GÓRGONAS XIV
Chegou à ilha de Lesbos facilmente;
em Mitilene pousou, sem mais demora,
a caverna descobrindo incontinenti,
um ressonar escutando nessa hora
e devagar penetrou, invisivelmente,
nessa penumbra que precede a aurora:
viu Esteno a dormir no travesseiro
e degolou-lhe o pescoço, bem ligeiro!...
Encontrou na parede lamparina;
só então viu que tinha forma de dragão;
com sua espada, esfolou-a desde a crina;
tirou-lhe as veias e costurou o seu surrão,
sem que o monstro percebesse qual a sina
que a surpreendera sem qualquer previsão;
quando saiu, já encontrou um consulente,
porém no ar se alçou, rapidamente!...
Muito mais tarde, quando nessa ilha
foram cunhadas as primeiras moedas,
traziam de Esteno a face que perfilha
a boa sorte para o lar e as medas, (*)
causas perdidas a indicar sua trilha...
“Que mil pequenas graças nos concedas!
O que eu perdi, dou-te em nome de Perseu:
assim devolve, bem rápido, o que é meu!...”
(*) Montes de cereais cortados na ceifa.
Sem perder tempo, voou ao extremo Norte,
com o surrão sanguinolento na cintura!
E da Medusa encontrou a feia corte:
mil estátuas desgastadas pela agrura!
Invisível, para evitar a mesma sorte,
seguiu a trilha, na precaução mais dura,
o escudo sempre à frente de seu rosto,
de esguelha olhando, a contemplar o lado oposto!
Ao invés de chegar perto, se afastava,
como se fossem luzes de miragem,
toda a paisagem, enquanto caminhava;
mas prosseguiu à frente, com coragem
até que ao longe, a Medusa ele avistava,
mas ao contrário lhe surgia a imagem!
Parou à espera, sem desviar o olhar
e sem seus impropérios escutar!...
PERSEU E AS GÓRGONAS XV
Então seu pai lhe orientou o braço
e sobre ela brandiu-se Chrysaor,
no pescoço da mãe final abraço,
nesse amor e ódio de filial rancor;
do frio olhar apagou-se todo o traço,
porém Perseu guardou sadio temor
e sem olhar, pôs a cabeça no surrão,
de suas picadas alcançando proteção!
E alçou voo, sem esperar por mais,
sentindo morta a espada do seu lado,
enquanto estátuas de pedra minerais
se desmanchavam e tombavam sem cuidado;
e desse modo, não veio a saber jamais
do nascimento do cavalo alado,
Pégaso, que do pescoço após desponte,
visto e domado por Belerofonte!...
Voltando a Sírifos, encontrou embriagado
Polidectes, sua mãe a perseguir;
no seu caminho deteve o passo alado...
Mandou o rei ao jovem destruir,
mas Perseu advertiu, no instante azado,
seus amigos ambos olhos a cobrir;
então tirou a cabeça do surrão,
dos inimigos petrificada a multidão!
Polidectes percebeu o acontecido
e sua cabeça baixou bem depressa,
sendo a Perseu ainda vivo conduzido
e de pedir-lhe perdão então não cessa...
Mas no momento em que lho foi concedido,
apoderou-se do surrão, em grande pressa,
pretendendo vingar-se de Perseu,
mas em pedra também se converteu...
Perseu então a estátua carregou
e aos pés de Dânae arrojou-a por momentos;
e então da encosta ao mar ele a lançou,
Polidectes esfacelando em fragmentos;
sua coroa o povo lhe entregou,
porém a recusou e deu assentos
nos tronos ao casal de pescadores,
Climene e Díctis, seus antigos protetores.
PERSEU E AS GÓRGONAS XVI
Mas Dânae quis voltar para sua terra
e embarcaram para Argos numa frota;
Acrísio teve medo de uma guerra
e os recebeu tal qual a honra denota;
com um banquete a disputa então encerra,
oferecendo dividir, quota com quota,
o reinado de sua terra com o neto,
já encarado com orgulho e com afeto...
Mas como seria quebrantada a profecia?
Durante a festa houve competição
e no lançamento do disco se inscrevia
Perseu, após vencer com galardão
na corrida, no dardo e na porfia
da luta livre, demonstrando-se o campeão...
Porém o vento seu disco desviou
e na cabeça de Acrísio se cravou!...
Então seria seu herdeiro natural,
mas Praectos apresentou oposição:
“Não é justo seja o trono triunfal
de Argos alcançado em maldição!
Foi certamente morte acidental,
mas meu sobrinho trucidou-me o irmão;
não cabe aqui condenação à morte,
porém merece do exílio a triste sorte!...”
“À sua mãe atribuiremos a realeza,
porém a mim reservarei a regência;
tratarei a Dânae com a maior nobreza,
porém Perseu deverá a sua potência
empregar empós outra qualquer realeza:
de Zeus seu pai obterá a benemerência!”
E Perseu, humildemente, se curvou
e para partir, logo a seguir, se preparou.
Com tantos dons, qualquer trono obterei,
sem precisar passar necessidade;
a minha mãe depois eu buscarei,
para viver comigo em majestade...
Meu tio Praectos tem razão e obedecerei,
logo cremados os restos da mortalidade
de meu avô, que tão pouco conheci
e a quem, em meu descuido, destruí...
PERSEU E AS GÓRGONAS XVII
Mas no momento em que era a noite mais escura,
foi surpreendido por quatro visitantes:
Athena e Hefesto, com Artemísia pura,
além de Hermes, o protetor dos viajantes.
“Tua missão terminou!” Firme doçura
ouviu na voz de Athena. “Chegaram os instantes
de devolver aos proprietários verdadeiros
os quatro dons que te foram companheiros...”
Então a Athena seu escudo devolveu;
o capacete o deus Hefesto retomou;
Artemísia aquele gládio que era seu
e as sandálias nos pés Hermes calçou...
Um pesadelo parecia sofrer Perseu,
porém Athena depressa o consolou:
“Tens a cabeça de Medusa como amiga
e Hermes gentil ainda será o teu auriga!”
Assim, tão logo completada a cremação,
Hermes tomou nos braços a Perseu
e o carregou para sua nova missão
e a conquista do reino que era seu.
Kefros, pai de Andrômeda, tinha dominação
sobre toda a Etiópia; sobrevoando o Egeu,
todo o Egito bem depressa ultrapassaram
e o Noroeste da África alcançaram...
Chamavam então de Etiópia ao continente
que chega às praias do grande Rio Oceano;
dominava Kefros então toda essa gente,
desde a Líbia seu inconteste soberano;
Atlas marcava seu limite mais saliente,
até o feroz deserto do africano;
e assim Hermes o deixou junto ao titã,
já nos primeiros albores da manhã...
E de imediato, desafiou-o o gigante:
“Quem és tu que aproveitas a minha sombra?
De onde vieste, ousado viajante...?”
Sua imensidão a Perseu sequer assombra...
“Da Hiperbória eu chego neste instante:
Matei Medusa diante de sua alfombra!...”
Atlas Titã soltou uma gargalhada:
“Há muito não escutava igual piada!...”
PERSEU E AS GÓRGONAS XVIII
“Pois se a mataste, mostra-me a cabeça!
Caso contrário, não te acreditarei
e por castigo de me quereres pregar peça,
com um só dedo já te esmigalharei!...”
Perseu abriu o surrão, sem grande pressa...
Desviou o olhar, mas o titã sem lei
diretamente aquele verde olhar fitou
e em alta montanha então se transformou!
Era nas costas da Tunísia a capital
desse Kefros de magníficos poderes,
embora ainda submetido à divinal
potência, a quem cumpria seus deveres.
Mas sua esposa Cassiopeia fez o mal
de comparar a sua beleza a santos seres:
as Náiades, que vogavam sobre o mar,
filhas de Posêidon, em seu másculo criar!
Como castigo, o rei do mar enviou a Ceto,
que com Fórquis às Górgonas havia gerado,
a devastar-lhe as costas do dileto
reino junto às praias espalhado;
então o Oráculo anunciou o fado secreto:
que tal pecado tão somente seria perdoado
quando Andrômeda, a sua filha amada
fosse à fera entregue, acorrentada!...
Assim Perseu ao rei apresentou-se,
após ver a deslumbrante formosura
da pobre jovem, que ao penhasco acorrentou-se,
para sofrer a morte ou pior tortura
às mãos do monstro; e assim propôs-se
a aniquilá-lo, se de tal beleza pura
recebesse sua mão em casamento;
logo de Kefros recebeu consentimento...
Apresentou-se a Andrômeda isolada
e os dois se apaixonaram num momento;
porém lhe disse a princesa, apavorada:
“Não venha a sofrer igual padecimento!
É impossível ser tal fera derrotada!...”
“Pois morrerei, com o maior contentamento;
não deixarei a tal monstro devorá-la!
Se for morrer, eu irei acompanhá-la!...”
PERSEU E AS GÓRGONAS XIX
Então surgiu um redemoinho e um turbilhão
e das ondas se ergueu o monstro imenso;
diante dele Perseu ergueu o surrão:
“Ceto, recua!” – ordenou, em grito intenso
e a fera o contemplou, em estupefação,
erguendo-se ainda mais sobre o mar denso:
“Como te atreves, ó mísero mortal
a desafiar a mim, ser de origem divinal...?”
“De divino nada tens, ó feroz Ceto;
se algum atributo possuis, é de infernal!
Diante de Atlas eu era como um inseto
e o transformei numa montanha mineral!...”
“Eu te conheço!” trovejou. “Truque secreto
contra minha filha empregaste, vil mortal!
Por tua culpa, nunca mais eu a verei!...”
“Não será assim! Sua cara agora mostrarei!”
Abriu o surrão e a cabeça apresentou!
Ceto soltou um terrível rugido
e de suas mãos o surrão arrebatou!...
Mas já de morte achava-se ferido
e num vasto penhasco transmutou!...
Mas o alforje havia desaparecido:
No mar perdeu-se a cabeça de Medusa!
Ai daquele que algum dia com ela cruza!...
Mas Cassiopeia, para sua desgraça,
pensou na filha e em sua terrível sorte
e nos rochedos lançou beleza e graça,
alegremente acolhida pela morte...
Perseu e Andrômeda chegaram até a praça
quando o rei Kefros pranteava sua consorte;
porém seu luto de imediato se abrandou
ao ver Perseu e a filha que salvou!...
Em breve celebrou-se o casamento,
feliz união que muitos anos dura;
porém do rei chegou logo o passamento,
pela tristeza que o coração perfura,
deixando a vida em pressago sentimento,
na viuvez a prantear sua esposa pura...
E assim Perseu da Etiópia fez-se o rei,
junto de Andrômeda, conforme manda a lei...
EPÍLOGO
Os dois tiveram muitos filhos fortes;
deles descendem heróis gregos numerosos
que partilharam de boas e más sortes,
feitos descritos por poetas fervorosos;
Perseu fundou Micenas e suas cortes
e os reis da Pérsia, depois tão poderosos,
descendem deles... como os tronos reais
da antiga Hélade das lendas triunfais...
Artemísia deu a Athena Chrysaor,
a espada mágica que fora um dia gigante;
Posêidon do mar sondou o negror
e achou a cabeça de Medusa horripilante,
que a deusa pôs sobre seu elmo, sem temor;
não mais petrifica, mas produz som sibilante,
a despertar o terror da bruxaria,
embora Athena só nos dê a sabedoria...
Já muito velho, faleceu Perseu,
quando buscava um javali caçar;
mas Zeus lembrou-se desse filho seu,
para em constelação o transformar;
também a Cassiopeia acometeu
o destino de em estrela se virar,
porém Andrômeda teve a sorte mais formosa:
no espaço brilha como grande nebulosa!...