O CALIFA CEGONHA
O CALIFA CEGONHA
(Conto de Wilhelm Hauff, adaptado para o inglês por Pearl S. Buck. Embora exista uma tradução em português de Ana Maria Machodo, esta não foi consultada pelo autor da presente versão. Califa é um título religioso, portanto o nosso Khaled é tanto rei como sumo-sacerdote. Os nomes originais da versão de Pearl S. Buck foram trocados por serem judaicos e não árabes ou hindus.)
Tradução e versão poética de William Lagos, 13 jul 14.
O CALIFA CEGONHA I
Khaled, o Magnífico, foi califa em Bagdá,
com todas as prerrogativas de seu cargo,
mas muitas vezes ele se aborrecia,
porque os deveres repassara a seu vizir
ou de sua corte aos sábios conselheiros;
quando amuado, se tornava amargo
e a nenhuma solicitação satisfazia;
tinha cem esposas, mas não tinha herdeiros;
fumava o narguilê, porém dormir
só conseguia após mil preces para Alá...
E desse modo, passava a sua manhã
nesse descanso que não tivera à noite;
acordando ao meio-dia, tomava seu café
e então fazia uma lauta refeição,
para depois, voltar a descansar,
deixando dos problemas o vasto afoite
para seus conselheiros: e o vizir até
esperava com paciência começar
este momento de maior satisfação,
quando o encontrava reclinado em seu divã...
Era o momento de fazer pedidos
e os problemas do reino apresentar
que só o califa poderia resolver;
contudo, ele nunca exagerava;
só em uma coisa ou duas, com paciência,
ele vinha a seu califa consultar;
apesar desse alto posto preencher,
ele era pobre, mas achava impertinência
contar ao rei as dificuldades que passava
na execução de seus deveres tão compridos.
O CALIFA CEGONHA II
Ora um dia, Mansur, que era o vizir,
apresentou-se ao iniciar da tarde
e três vezes se curvou, em humildade,
perante o majestoso soberano...
Indagou como estava sua saúde
para depois apresentar-lhe, sem alarde,
alguns problemas de maior gravidade.
“Senhor califa, preciso que hoje estude
certas questões para o povo muçulmano,
que só o senhor é que pode decidir...”
“Ora, é até bom ter algo que fazer!...
disse Khaled, com todo o bom-humor;
de minhas esposas estou aborrecido,
com as odaliscas não me posso distrair...”
“O reino está em paz e alegre o povo,
que por Vossa Majestade tem amor,
cada decreto sendo obedecido...
De vosso digno pai sois o renovo...”
“Talvez, porém a noite passo sem dormir;
queria até vinho então poder beber!...”
“É uma lástima, porém nosso Profeta
toda bebida alcoólica nos proibiu:
faz muito mal para quem mora no deserto!”
“Pode ser, mas nós moramos em cidade...
Não se altere, Mansur, sei resistir;
sigo os preceitos, igual meu pai seguiu;
sou muçulmano de coração aberto...
Porém de noite, quando não posso dormir,
eu lhe confesso, com toda a honestidade,
que a tentação da bebida até me afeta...”
O CALIFA CEGONHA III
“Mas a verdadeira razão da tentação
é que o crente a consiga resistir...”
“Se ao menos não fosse assim tão enfadonha
essa vida que levo, meu amigo!...
Mas ande logo, mostre os documentos...”
Khaled, após cada problema perquirir,
tudo assinou, com expressão tristonha.
“Agora que completei os julgamentos,
o dia inteiro vazio terei comigo...
Se houvesse guerra, ainda teria distração...”
Mansur, ao ouvir tal frase, perturbou-se:
e se o rapaz declarasse alguma guerra,
que mais não fosse para se distrair...?
Então, lembrou: “Majestade, ante o castelo
oferece os seus artigos um mascate...
Coisas lindas até seu fardo encerra,
sem alto preço por elas exigir...
Mas minha pobreza meu desejo abate,
porem vós tendes do tesouro o selo...”
E o califa pela ideia interessou-se...
O vizir mandou chamar o ambulante,
um homem feio, retaco, bem baixinho,
de rosto escuro e expressão sagaz,
que se prostrou perante o trono, em rapapé...
Que levantasse, Khaled lhe ordenou
e lhe mostrasse seus artigos, com carinho...
O mascate logo ao califa satisfaz,
que um belo par de pistolas lhe comprou,
uma caixinha ornamentada de rapé
e mais um pente, por preço exorbitante...
O CALIFA CEGONHA IV
Era um presente para a esposa do vizir,
A quem uma das pistolas também deu;
chegou depressa da Corte o Tesoureiro
que ao mascate seu preço lhe pagou.
Mas indagou o califa: “É só o que tem?
Quinquilharias bonitas me vendeu,
mas sem magia; quando o chamei, primeiro,
pensei em coisas mágicas também...”
Do mascate a expressão se transformou:
“Majestade, não quero em nada o iludir...”
“Mas talvez eu aqui tenha um certo artigo
que eu adquiri de um pobre peregrino,
da santa Meca em uma viela estreita...
Mas lhe confesso que não sei o seu valor:
é só uma caixa que contém um pergaminho,
mais uma caixa menor, cujo destino
não sabia o pobre homem, nessa feita;
mas insistiu, antes de seguir o seu caminho
e o pergaminho tinha um jeito sedutor...
Eu o comprei, mas ler o escrito não consigo...”
“Acho até que são letras dos romanos,
tão diferentes da caligrafia santa
que nos legou o nosso bom Profeta,
o Mensageiro, santo Rassul de Alá...
Mas, meu senhor, vender-lhe não consigo,
que uma suspeita o meu peito espanta;
qualquer maldade pode conter, secreta
e não desejo lhe causar qualquer perigo...”
Melhor maneira de despertar não há
a curiosidade do senhor dos muçulmanos...
O CALIFA CEGONHA V
Disse o califa: “Você pretende me enganar,
para aumentar de tal caixa o seu valor?”
“Não, Majestade, é minha última intenção;
vender-lhe eu a vendo, por apenas um dinar;
só pense bem que pode haver perigo...”
Mas o califa não sentiu qualquer temor;
abriu a caixa sem a menor consideração
e só continha o manuscrito antigo
e uma caixinha, com um pó negro a revelar;
decidiu-se a um tal mistério decifrar...
Após autorizar a saída do mascate,
Khaled e Mansur estudaram o documento.
“Não é escrita desta terra, certamente,
nem língua grega... Quem sabe, seja hebraico.
Vou mostrar para os onze conselheiros...”
Mas nenhum o pode decifrar nesse momento.
“Não se trata de qualquer língua do Oriente,
nem é do Egito ou dos fenícios altaneiros;
é escrita de infiel ou algo de arcaico...
À nossa ciência sua tradução abate...
Contudo, um conselheiro se lembrou:
“Majestade, lá no Bairro da Mesquita,
reside um homem bastante pretensioso...
Selim, o Sábio, é como se apresenta,
que do Conselho já se atreveu a zombar...
Se alguém pode entender essa esquisita
linguagem do pergaminho fabuloso,
em Bagdá, só ele a pode decifrar...”
Qualquer malícia também ali se atenta:
que ele erraria, o conselheiro ia apostar...
O CALIFA CEGONHA VI
Selim, o Sábio, foi logo convocado
e ante o califa se apresentou com medo.
Disse Khaled: “Você pretende saber tudo,
bem mais que meu vizir e os conselheiros;
pois vou-lhe então mostrar um documento;
se conseguir decifrar o seu segredo,
será bem recompensado; porém, se ficar mudo
ou me mentir, castigarei seu atrevimento
por pretender conhecimentos verdadeiros,
sem ser um sábio pelo palácio autorizado!”
Disse Selim: “Majestade, farei o que puder!
Conheço muitas línguas, na verdade;
escrevo cartas e traduzo documentos;
mas Selim, o Sábio me chamar não resolvi:
foram os clientes que ficaram satisfeitos...”
“Se o decifrar, na maior veracidade,
eu confiarei em seus futuros julgamentos;
de conselheiro terá todos os direitos,
traje de gala e o salário que escolhi:
completa doze: há pouco um deles foi morrer...”
“Porém, se não mostrar sabedoria
ou se tentar me impingir uma mentira,
mandarei dar-lhe vinte e quatro bofetadas,
para aprender a não ser um charlatão!
Sairá depois chicoteado da cidade
e para que a terra seus maus passos fira,
levará nos pés vinte e quatro bastonadas!”
“Majestade,” disse Selim, com humildade,
maior castigo será falhar nesta ocasião
ao meu califa nisso que me pediria...”
O CALIFA CEGONHA VII
O califa lhe apresentou o pergaminho
e num instante seu rosto se aliviou:
“Majestade, essa é a língua dos romanos;
o documento está escrito em seu latim!”
“E por acaso você o pode traduzir?”
“Sim, Majestade!” E logo começou:
“O pó da caixa permitirá aos humanos
em qualquer ave ou animal se travestir,
desde que saiba proceder assim:
cheirar uma pitada somente do pozinho...”
“E então curvar-se três vezes para o Oriente,
da sacrossanta Meca no sentido
e pronunciar a palavra: MUTABOR,
no animal que quiser virar pensando;
compreenderá a língua que eles falem;
para voltar, basta que seja repetido,
na língua do animal, sem ter temor
que na garganta tais palavras calem,
o mesmo termo, logo se transformando
na forma exata de quando fora gente!...”
“Mas aconteça o que lhe acontecer,
de forma alguma se poderá rir,
pois a palavra, de imediato, esquecerá
e não mais voltará a ser humano!...
Estas palavras foram escritas em latim
para evitar de uma criança o divertir,
que tal palavra a brincar pronunciará
e dificilmente conseguirá assim
conservar-se sem rir e um profano
animal continuará sendo até morrer!”
O CALIFA CEGONHA VIII
“Para virar, basta que eu diga: Mutabor?
Não é blasfêmia ou frase de maldade?”
“Não, Majestade. Simplesmente quer dizer,
Em nossa língua: Eu serei transformado.”
“E para voltar, basta apenas repetir...?
Mas de que forma eu falaria, na verdade?
Os animais não sabem árabe compreender...”
“A língua deles ir-lhe-á permitir
que o equivalente seja pronunciado...
Experimente, se quiser, sem mais temor...”
Disse o vizir: “Não, faça você primeiro!”
E então Selim depressa concordou:
“Em um macaco pensarei me transformar!”
Tomou a pitada, curvou-se para o Oriente
as três vezes e depois disse: Mutabor!
De imediato em um mono transmutou,
alguns minutos permanecendo a macaquear,
depois de novo se inclinou e, sem temor,
soltou um guincho em sua língua diferente
e em ser humano tornou-se, bem ligeiro”
O califa lhe recomendou total segredo
e o nomeou como seu conselheiro;
deu-lhe o traje de gala e em pagamento,
uma pensão, em caráter vitalício...
Selim, o Sábio, retirou-se agradecido.
Disse Khaled: “O que vamos ser primeiro?”
Disse Mansur: “Exerçamos julgamento:
qual animal não seria perseguido
pelos soldados, por dever ou malefício
ou por criados, por força de seu medo?”
O CALIFA CEGONHA IX
Foram andando assim pelo jardim,
até encontrarem uma lagoa aprazível,
na qual, em pé, dormitava uma cegonha...
“Sem dúvida, esse animal é protegido,”
disse Khaled. “Para alguns, é até sagrado,”
concordou Mansur, “embora seja incrível
que a antiga crença à religião se oponha.
Diz o Profeta que não se deve adorar nada,
senão o Altíssimo, que no céu está escondido
e nem a Ele representar se pode assim...”
Nesse momento, outra cegonha viram
dos céus descendo, em voo majestoso.
Disse Khaled: “Veja só, vão conversar!
Será que entenderemos a sua fala?”
E de comum acordo, cheiraram duas pitadas;
para Meca se voltaram, chão formoso!
Três vezes, com reverência a se inclinar,
em Mutabor as suas vozes levantadas...
Sua aparência humana então se abala,
finas as pernas, que no ventre se inseriram...
Por todo o corpo penas em profusão,
um longo bico no lugar do seu nariz!
E esternutavam, ao invés de conversar;
lembrou Mansur, nessa língua: “Não vá rir!”
“Mas realmente, ficamos engraçados!
Que pernas finas você tem!” Khaled diz.
“Majestade, tendes um bico de arrepiar!...”
Mas nesse instante, cessaram os alados
movimentos da cegonha e o vizir
pediu ao califa que lhe prestasse atenção.
O CALIFA CEGONHA X
“Como vai, seu Bico Fino,” disse o visitante,
“Muito bem, seu Tagarela,” o outro respondeu.
“Que vens fazer na minha pobre lagoa?
Há poucos sapos e ainda menos lagartixas!”
“Não vim comer, mas antes, estudar...”
“Como assim? Juro que me surpreendeu...”
“Meu pai planeja dar uma festa na Garoa,
a sua mansão; e me pediu para dançar...
Só quero que me ensine, sem mais rixas,
cada figura que achar interessante!...”
E as duas cegonhas se puseram a dançar
com as pernas finas ou em uma perna só,
sendo tão estranha a sua coreografia
que conter o riso Mansur não conseguiu,
um riso de cegonha, que contagiou Khaled,
das outras duas a troçar de causar dó!
Ofendido com toda aquela zombaria
o dono da lagoa o pouso cede;
bateu as asas e com o outro no ar sumiu,
os visitantes ainda deixando a gargalhar!...
“Bem, a nossa brincadeira terminou,”
disse o califa. “Vamos nos desvirar...”
“É claro!” – concordou o vizir, para depois
Dizer: “Mu... mu...” um tanto alvoroçado.
“Majestade, da palavra eu me esqueci...”
“Ora, é fácil!... É suficiente pronunciar
mu... mu...” Haviam esquecido os dois!
“Bem que eu sabia, porém me distraí;
o pergaminho nos havia aconselhado
de forma alguma a rir ou a gargalhar!...”
O CALIFA CEGONHA XI
“Se entrarmos agora, vão nos expulsar,
ninguém acreditará que seu califa eu seja!”
“Nem minha esposa aceitará que sou o vizir!”
“Quem sabe, vamos procurar Selim?
Sempre podemos pelo ar nos dirigir...”
Khaled bateu as asas e se enseja
que no ar subisse quase sem sentir,
Mansur chamando também para o seguir
e pelos ares foram voando assim,
até na rua de Selim aterrissar...
Com as asas bateram na sua porta;
uma criada veio abrir para atender
e nos bicos com a folha lhes bateu!
Porém voaram e desceram no jardim
em que Selim descansava, calmamente...
Sendo um sábio, pôde logo compreender:
“Vocês riram!” Mas o vizir não o entendeu,
nem o califa... “É Mutabor! – disse, impotente,
cheio de angústia, o coitado do Selim...
“Por que fui traduzir? Fiz coisa torta!...”
Finalmente, por meio de sinais,
ele explicou que, como não entendiam,
então teriam de voar até Medina,
até o túmulo do sacrossanto Maomé,
que um milagre talvez realizasse...
E logo os dois suas asas sacudiam,
o sul buscando para melhor sina...
Mas era longe... Mansur disse que parasse.
“Não posso mais, Majestade, por minha fé!
Siga sozinho, que estou velho demais...”
O CALIFA CEGONHA XII
Porém à frente um palácio divisaram,
com a parte da frente já arruinada;
suas asas para ali os conduziriam...
Entraram num saguão bastante escuro.
Mansur falou: “Mas não será assombrado?”
Sem medo, Khaled soltou uma risada:
“Almas penadas a cegonhas assustariam?
Para nós dois rir deixou de ser pecado:
só Maomé, no seu santuário puro,
nos poderá fazer milagre...” E se deitaram.
Enquanto isso, em Bagdá, um usurpador,
acompanhado por quarenta salteadores,
proclamou que o califa havia morrido
e ocupou prontamente o seu castelo:
“Será o califa, a partir de hoje, Mustafá!”
Do desaparecimento corriam já rumores
pelos conselheiros foi facilmente recebido,
porém falou Selim: “Senhor, não há
prova alguma que o califa, jovem e belo,
tenha morrido! Ele viaja, meu senhor!...”
Sem hesitar, Mustafá o mandou prender
e foi marcada a sua coroação,
ainda que o povo ficasse consternado
e murmurassem que o califa e seu vizir
tinham sido mortos pelo usurpador!
Ao mesmo tempo, em plena escuridão,
descansavam as cegonhas, lado a lado...
Porém Mansur falou: “Meu bom senhor,
tristes gemidos eu acabei de ouvir!...
É um fantasma e mal nos quer fazer!...”
O CALIFA CEGONHA XIII
“Não há fantasmas, mas um gênio talvez seja:
se for um djinn, só nos pode fazer bem;
se for um effrit, um gênio mau, o obrigaremos
a nos obedecer, pelo poder de Alá!...
Mas tens razão, eu escuto esse gemido:
daquela sala interior é que nos vem,
mas me parece um lamento! Avançaremos
com coragem e seu temor será vencido!
Para os verdadeiros crentes, mal não há,
vamos, portanto, desvendar o que se enseja!”
E na outra sala, que ficara sem telhado
bem iluminada pelos raios do luar,
uma coruja encontraram, a se lastimar
e sua linguagem entenderam, facilmente.
Inicialmente, a coruja se assustou,
mas a seguir começou a se alegrar:
“São duas cegonhas! Eu ouvi profetizar
que me trariam boa sorte!” – proclamou.
“Talvez o meu martírio, finalmente,
termine e tenha o meu corpo restaurado!...”
“Eu sou Aashi, que quer dizer “Sorriso”,
porque sorria muito já ao nascer,
sou filha única do Rajá de Allahazar;
sou jovem e bela, não cometi pecados,
virei coruja por um ato de vingança
de Kashnur, um feiticeiro, em desprazer,
porque meu pai o mandou expulsar,
por pedir a minha mão para a bonança
de seu filho Mustafá, um malcriado,
de quem manter distância era preciso!”
O CALIFA CEGONHA XIV
Ao rajá meu pai ofendeu a sua atitude:
seu nome é Agnimukha, isto é, “Rosto de Fogo”
e pela cólera, como o nome o indica,
deixou-se ele levar bem facilmente:
Kashnur foi então expulso do castelo,
mas no jardim ele me encontrou logo
e me disse: “Mutabás!” Agora você fica
transformada em coruja sem desvelo
e desse encanto só sairá se, finalmente,
mostre alguém pena de sua forma rude...”
“Acreditando ser você jovem e bela,
como coruja assim a peça em casamento...”
Khaled e Mansur até pena tiveram
e lhe contaram sofrer pena semelhante.
Mas “Mutabás” não adiantou que pronunciassem.
“É parecida com a de nosso documento,
Mas não é igual...” “Entendi que se esqueceram;
passaram meses desde que me transformassem
e em outras conversas já escutei bastante:
foi Kashnur que os enganou com sua balela...”
“Ele calculou que ficariam curiosos
e cedo ou tarde acabassem rindo;
pois agora o seu mau filho, Mustafá,
colocou sobre o trono em seu lugar!
Por protestar, mandou prender Selim...”
Ora, eu sei que ele anda se reunindo
com outros bruxos que pelo mundo há
e também sei onde é. Mas contarei, enfim,
somente se um de vocês me desposar,
pouco me importa que não sejam formosos...”
O CALIFA CEGONHA XV
“Mas quero me livrar o encantamento
e assim, meu interesse vem primeiro...
Qual de vocês será o meu marido?”
Khaled e Mansur saíram para pensar.
“Eu sou velho e já casado,” disse o vizir,
“mas meu senhor é bem jovem e solteiro
e a filha de um rajá é um bom partido...”
“Porém, e se depois do meu pedido ouvir
(do califa a palavra não se pode revogar),
no fim das contas faço um horrível casamento?”
“Ela poderá ser uma bruxa, na verdade!
Ou ser mulher, porém já velha e feia!
Se eu concordar, cairei numa armadilha!...”
“Vossa Majestade quer continuar cegonha?
Eu, pelo menos, de comer sapos já cansei...”
“Sinto ser mosca presa numa teia!”
disse o califa. “Mas do dever a trilha,
para salvar meu trono, eu seguirei...
Tomo outra esposa, caso ela for medonha!
Posso casar com muitas, sem maldade...”
“Sim, meu califa, nossa fé muçulmana
nos permite adotar a poligamia...”
Destarte, Khaled conseguiu se consolar...
“Aashi, eu a peço em casamento!...”
“Meu senhor, não o desapontarei,
pois em mulher eu só me tornaria
depois que seu encantamento se quebrar...
e sendo homem, de sua boca escutarei
o seu pedido. Mas me faça um juramento
de me cumprir o que agora me proclama!”
O CALIFA CEGONHA XVI
Khaled então lhe prestou o juramento
e disse Aashi: “Pois então, venham comigo,
que mostrarei onde se encontra o feiticeiro!”
E se embrenharam por vasto labirinto,
depois por túnel aberto sob a terra,
até chegarem a um brilhante abrigo;
porém Aashi lhe pediu primeiro:
“Por favor, somente ouça o que ele berra;
a sua linguagem entenderá, isso pressinto,
mas não o pode combater neste momento!”
Ao redor de uma mesa se assentavam
sete bruxos, a vestir trajes suntuosos
e a se gabarem de suas últimas façanhas,
bebendo vinho e as carnes devorando
dos animais que proíbe o Alcorão!...
Os três sentiram rancores portentosos
quando Kashnur relatou as próprias manhas...
Era o mascate que trouxera, na ocasião,
o pó e o pergaminho, em ato nefando
que ele narrava e os outros gargalhavam!
“Meus amigos, o que fizeram não é nada!
eu pus no trono o meu filho Mustafá!...
No treinamento ele falhou de feiticeiro,
mas mesmo assim, garanti-lhe a coroação;
e me vinguei de Agnimukha de Allahazar!...
Meu filho é hoje califa em Bagdá,
mas em coruja a transformei primeiro,
só vira gente se com alguém puder casar!...
E a linda filha daquele paspalhão
minha magia deixará sempre encantada!”
O CALIFA CEGONHA XVII
“Mas como foi que você o conseguiu?”
“Eu joguei nela um mágico pozinho
e disse: “Mutabás!” – “Serás transformada”,
na língua tosca que falavam os romanos
e ao califa de igual modo eu enganei!...
O infeliz deixei bem curiosinho
e outra palavra foi por ele pronunciada:
numa cegonha esse cretino eu transformei,
comendo sapos, proibidos aos muçulmanos!”
E a turma inteira dos feiticeiros riu!...
“Mas que palavra foi essa que ele disse?”
“Ah, é “Mutabor!” – “Eu serei transformado”!
Mas soltou uma gargalhada e se esqueceu:
irá viver como cegonha até a sua morte...
Sou ou não sou o maior dos feiticeiros?...”
Mas um dos outros falou, meio amuado:
“Maior do que você ainda sou eu!
Caso eu lhe jogue, na frente de terceiros,
o mesmo pó, transformarei sua sorte,
se lhe disser, ao mesmo tempo: “Mutarisse!”
“Pois ficará imóvel, totalmente
e desprovido de qualquer poder,
enquanto eu queimo seu precioso pergaminho.”
“Você só fala por despeito, caro Akim:
Meu filho guarda agora os ingredientes...
Um feiticeiro como nós não pode ser,
mas tem medo de mim, o meu filhinho
e os instrumentos me entregará, potentes...
Ninguém, portanto, me vencerá assim:
vou governar por meio dele, integralmente!”
O CALIFA CEGONHA XVIII
Então a coruja ao califa fez sinal
e os três bem depressa se afastaram.
Tão logo se encontraram à luz do Sol,
Khaled e Mansur para Meca se inclinaram
e bem ligeiro, os dois disseram: “Mutabor!”
No mesmo instante, ambos se transformaram,
As joias no turbante brilhando qual farol
e moedas de ouro do maior valor
na bolsa do califa... Mas quando se viraram
viram uma princesa de beleza divinal!...
“Você é Aashi...?” falou o califa, assombrado!
“Sim, sou eu... Vai me cumprir o prometido?”
“Claro, princesa, de novo a peço em casamento,
e não somente por todo o bem que me prestou,
pois nunca vi qualquer mulher mais bela!...”
Foi o califa por seu povo conhecido;
voltou a Bagdá com forte regimento,
sendo aclamado em cada praça e viela;
e logo em seu castelo penetrou
e Mustafá foi depressa acorrentado!
Jogou-lhe o pó e lhe disse: “Mutabás”!
Numa coruja de imediato o transformou,
deixando-o preso em uma gaiola, de castigo!
Mas ordenou que o segredo mantivessem
e quando Kashnur a Bagdá voltou,
sem imaginar correr qualquer perigo,
gritou: “Mutarisse!” e o resto do pó jogou,
deixando-o imóvel, sem que feitiços se pudessem
realizar... e o pergaminho em fogo ele desfez!...
EPÍLOGO
O feiticeiro foi nesse dia enforcado
e Khaled com Aashi se casou;
uma grande pensão determinou
que fosse paga para seu bom vizir,
que lhe pediu para se aposentar,
para Selim ao seu posto nomear...
Com o povo alegre e na maior prosperidade,
em pouco tempo Aashi engravidou
e Agnimukha desde a Índia viajou,
sentindo todos a maior felicidade
nos filhos e netos que vieram a seguir...
E Mustafá? Ora, ainda está engaiolado!...