A noute do Deus Menino
Eram aqueles natais doutrora, em que bençãos divinas e águas celestinas eram derramadas em proporções iguais,
infundindo corações, regando quintais.
A travessa São José, nosso beco, tampouco ficava a seco: ainda de terra batida se
tranformava num pântano, escorregadio, porém um bom atalho, ligando bairros
mais distanciados ao mais curto caminho para centro da Velha Serrana, para onde
demandava a turba, na busca do Natal mais santo, com todas as suas liturgias e
ave-marias e outras ingresias.
E muitas delas havia: do fascínio da missa da meia-noite ao convite irresistível da
boate, passando pelo cinema, por esquinas, ruas calçadas, bares, profanos lugares.
E a véspera do Natal era uma só; era preciso se assenhorear daquele momento de
encanto, enquanto durasse e se iluminasse o breu.
Embora ainda não fizéssemos jus à cesta ou aos panetones, o ambiente no lar se
alterava, se elevava e quanta emoção dava, em torno do presépio, com seus
bichinhos, a gruta-manjedoura e aquele tufo de arroz, verdinho, plantado numa
lata de sardinha no dia de Santa Bárbara e portanto velho de quase três semanas,
adereço indispenável que parecia ter partes com a energética esperança no Deus-Menino.
E nosso presépio ainda havia adquirido a feição meio-oriental quando mana Victa, convertida
em paisagista, esculpiu na bruta argila, da amarelada à violeta, aquelas casinhas abobadadas
que a gente só via em filmes.
O que nos ligava à agitação externa, à rua encharcada, entretanto, eram as lanternas. Uma delas
para cada rebento de papai e mamãe, com estrutura de madeira, envoltas em papel celofane, de
cores variadas que, com uma vela espetada no centro pendurávamos no alto das paredes externas,
quase junto ao telhado.
E tinha passante, até mesmo distante viandante que apreciava aquela manifestação a ponto de
comentar que valia a pena o barro amassar só pra ver aquele ispetaco de luzes coloridas.
Na manhã seguinte, terminado o desembrulhar de presentes em que Papai Noel se
fizera representar pelas nossas vizinhas tias, a hora era de verificar como as lanternas haviam enfrentado as
rajadas, trovoadas e aguadas da noite. Umas poucas sobreviviam intatas, protegidas contra a ventania. A maior
parte aparecia chamuscada, nua, já queimadas vela e papelada, mas valera, ah como valera a
noite encantada!