O FILHO INGRATO

O FILHO INGRATO

(Folclore eslovaco, recolhido por Viriato Padilha, recontado em versos por

William Lagos, 15/5/13).

O FILHO INGRATO I

No tempo antigo, havia às vezes fome,

se parava de chover ou quando o inverno

se prolongava muito além da conta.

Mas era fome de muito maior monta

que pura e simples vontade de comer,

quando a comida inteiramente some

e deixa o estômago em solitário inferno,

até que os fracos começam a morrer...

Ainda hoje acontece, infelizmente,

pelas terras da África e em lugares

bem menos conhecidos tal flagelo.

No extremo norte, em que domina o gelo

ou nos desertos de pedra ou só de areia.

Em nossa terra, contudo, felizmente,

há coisas de comer para encontrares,

mesmo que o preço te pareça coisa feia...

Sempre se encontram frutas por aí,

ou animais que se possam caçar,

embora, às vezes, para grande mágoa,

as plantas sequem pela falta dágua,

como de novo ocorre no Nordeste...

Mas carros-pipa existem por aqui

ou caminhões para alimento transportar,

pois o progresso é bênção inconteste...

Já no passado era muito diferente:

quando as colheitas começavam a escassear,

não havia como buscar em outra parte...

Não havia estradas e, se havia, destarte,

ficavam pelo inverno interrompidas...

E existiam salteadores, mala gente,

que os viajantes chegavam a matar

e nos caminhos se perdiam muitas vidas...

O FILHO INGRATO II

Em algum ponto da Europa Central

um desastre desse tipo aconteceu:

as pessoas ficaram isoladas,

acabaram as provisões armazenadas

e não se achava nada que comprar.

Quem tinha, as escondia, é natural;

de fome e frio muita gente morreu:

matavam gatos para se alimentar!...

Havia um camponês, chamado Mariuz,

que morava sozinho, em viuvez,

embora tivesse tido vários filhos.

Todos seguiram por diversos trilhos,

somente August morava ali por perto;

alguns morreram das guerras sob a cruz,

outros foram emigrando, por sua vez

e o velho lar acabara assim deserto.

Mas August se casou e foi morar

em sua própria cabana, num campinho

que lhe cedera o pai de sua mulher.

Possuía horta, pocilga e o que se quer;

plantava trigo e a mulher tinha galinhas,

mais uma vaca para leite não faltar.

Das próprias uvas até faziam vinho

e criavam galos para brigar nas rinhas.

Mariuz e a esposa sempre os visitavam

ou eles iam com os velhos almoçar

durante o tempo da prosperidade.

Chegou, porém, a sua infelicidade:

morreu a mãe e Mariuz ficou sozinho.

Já raramente eles o acompanhavam,

era Mariuz que os vinha visitar,

trazendo sempre um simples presentinho.

O FILHO INGRATO III

Naturalmente, conservava a própria granja,

mas agora era bem velho e lhe faltavam

as forças para tudo cultivar,

sem a mulher, sequer, para ajudar.

Mesmo assim, ainda tirava leite,

mas dos campos cultivava só uma franja,

pois aos poucos os trabalhos lhe pesavam

e de azeitonas não prensava mais azeite.

Foi nesse tempo que houve seca no verão

e pouco ou nada ficou para colher...

Chegou o outono, com neve e ventania,

já anunciando do inverno a primazia;

pouca gente tinha algo nos celeiros;

faltava pasto para toda a criação,

os animais começaram a morrer,

também alguns dos mais velhos fazendeiros.

Foram os porcos sendo aos poucos abatidos,

seguidos pelas vacas e galinhas,

já não havia leite e nem mais ovos,

os laranjais não davam frutos novos...

Em pouco tempo, sequer havia lenha

e um grupo de ladrões, já mal nutridos

assaltou Mariuz e até as farinhas

lhe vêm roubar, conforme lhes convenha.

August ainda teve alguma sorte:

trancou-se em casa, muito bem armado.

Os ladrões lhe roubaram os animais,

esvaziaram o celeiro e tudo o mais,

mas a casa não chegaram a arrombar.

A sua alimentação sofreu um corte,

mas no porão havia algo armazenado,

sem ter razão para se desesperar.

O FILHO INGRATO IV

Mas os ladrões arrasaram toda a aldeia;

o que não podiam carregar, queimaram,

deixando o povo ali a passar fome,

pois levaram toda coisa que se come...

E os infelizes acabaram se mudando;

pela floresta encontraram parca ceia:

somente pinhas e raízes ali acharam,

August e Mariuz totalmente desertando.

Mas assim que percebeu estar seguro,

pois os bandidos se haviam afastado,

talvez para saquear uma outra aldeia,

o velho Mariuz não se arreceia;

e ao encontrar um presunto no porão,

foi visitar o filho, em pleno escuro

e repartiu com ele o seu achado,

cheio de amor no velho coração...

De August a esposa, que se chamava Greta,

foi buscar ovos e um resto de pão duro;

medo tiveram de acender um fogo,

porque a fumaça avistariam logo;

e assim, a refeição comeram fria,

sem que ela revelasse a sua secreta

dispensa oculta, em local bem seguro,

pois dividir com o velho não queria...

Passou-se o tempo e Mariuz lhes trazia,

pouco a pouco, suas escassas provisões;

ela fingia já não ter mais nada,

porque, de fato, estava desfalcada...

Logo acabou o que tinha Mariuz

e quando os visitava, ela servia

somente o vinho das antigas plantações,

enquanto olhavam para os pratos nus.

O FILHO INGRATO V

Mas um dia, encontraram uma galinha,

que fugira da pilhagem dos ladrões...

E bem depressa, os dois a degolaram,

depenaram, chamuscaram e assaram...

Já pretendiam iniciar a refeição,

mas viram Mariuz, que deles se avizinha...

E demonstrando ter de pedra os corações,

logo esconderam a galinha no porão!...

Chegou o velho, com as mãos abanando,

pois terminara o que tinha para dar...

Mas logo pressentiu cheiro de assado!...

Mentiram que um sapo haviam encontrado

e que já o tinham acabado de comer...

De boa mente foi o velho acreditando

e contentou-se com vinho a disfarçar

sua grande fome, sem poder satisfazer...

Porém tão logo o velho foi embora,

quando August levantou o alçapão,

para ir buscar no porão o seu assado,

enorme sapo pulou para o seu lado!

Se lhe grudou bem no alto da cabeça,

crescendo mais ainda, de hora em hora,

sugando sangue e o deixando sem ação...

Greta tentou retirá-lo, bem depressa...

Mas seu esforço de nada lhe adiantou,

pois o sapo a longa língua projetava

e lhe batia com ela pelo rosto!...

August só gritava em seu desgosto:

“Tira esse bicho, Greta, tira, tira!...”

Em desespero, a esposa o amparou

e logo à casa de Mariuz o levava...

Mas contra ele o sapo igual se vira!...

O FILHO INGRATO VI

Mariuz falou: “Há no bosque uma mulher

que sempre foi esperta curandeira:

vamos levar até lá esse rapaz!...”

E se bem dito, ainda melhor o faz...

A curandeira abriu a sua janela:

“Contrafeitiço é o que você quer,

isso é trabalho para alguma feiticeira...

Que têm vocês para levar a ela...?”

Mariuz falou possuir algum dinheiro

E a curandeira soltou uma risada:

“De que o dinheiro lhe poderá valer?

Num tempo destes, ela quer o que comer!”

“Mas eu não tenho mais nada, boa vizinha!”

“Nem eu tampouco, isso é bem certeiro,

Esses ladrões não me deixaram nada!...”

Mas disse August: “Nós temos a galinha!”

Greta mostrou-se muito atrapalhada...

Disse a mulher: “Eu fico com o rapaz.

Vocês vão essa galinha então buscar,

dar-lhe-ei um chá, ele pode se acalmar...”

E Mariuz saiu, acompanhando Greta,

Sem lhe dizer qualquer palavra irada,

enquanto a nora em desculpas se desfaz,

pela comida que guardava bem secreta...

Logo voltaram, com a galinha assada,

Greta escondia por debaixo do vestido,

com medo de encontrar algum ladrão

ou de algum corvo chamar a atenção...

Chegaram logo à casa da mulher:

August tinha a cara toda inchada...

Disse Mariuz, totalmente comovido:

“Aonde mora a feiticeira que se quer?”

O FILHO INGRATO VII

Riu-se a mulher: “Sou eu a feiticeira,

só não queria é trabalhar de graça!

Fiquem vocês aqui com o rapaz,

que eu vou buscar um remédio bem capaz!”

Saiu então, levando a tal galinha

e esperou, onde havia uma clareira,

até que o cheiro pelo mato se espalhasse...

E então enxame de moscas se avizinha!...

Com uma rede, foi pegando de uma em uma

e colocando em um pote de argila,

até achar que tinha o suficiente;

pegou a ave outra vez, rapidamente,

pelo caminho comendo uma coxinha,

até o osso, sem deixar nenhum

resto sequer, embora longa fila

de outras moscas buscasse sua galinha!

Quando chegou de volta à sua choupana,

viu que August já estava a sufocar...

Com uma rede fina, a sua cabeça

envolveu e destapou muito depressa

o pote em que as moscas escondera...

Por essa presa, o sapo então se inflama,

soltou August e começou a caçar

e ela puxou a rede, bem certeira!...

Ficou o sapo nela emaranhado

e August, finalmente, ele soltou!...

Sem perder tempo, a mulher fez ensopado

com o próprio sapo que havia capturado!

E assim os três fizeram refeição:

galinha assada com sapo cozinhado!...

Porque a fome logo o nojo dominou

e assim August se curou da provação!...

O FILHO INGRATO VIII

Ficaram todos com a curandeira,

porque no mato era bem mais seguro

e por ali se poderia caçar,

num remanso do rio também pescar;

havia castanhas para recolher...

E a primavera já chegou, ligeira...

Durante a noite, enquanto estava escuro,

o que ainda havia no porão foram trazer...

Da curandeira aumentaram a choupana;

eventualmente, Greta engravidou

ficando os quatro tudo a repartir,

daquele sapo a lição a lhes servir.

Também assim terminou a viuvez,

porque Mariuz não voltou à sua cabana,

porém com a curandeira se casou...

Greta teve dois filhos, depois três...

Por sorte, pelo tempo que viveram,

não ocorreu nenhuma fome igual.

Mariuz e August voltaram a cultivar

as suas terras e as hortas a plantar.

Muito tempo levou, antes que alguém

Desse a notícia: “Os tais ladrões morreram,

enforcados, por terem feito tanto mal!”

E até a aldeia se repovoou também.

Porém que sirva a todos de lição:

mesmo no tempo em que vem a pior sorte,

devemos aprender a partilhar,

para o mal conseguirmos afastar.

Com amizade e amor se reconstrói

tudo quanto foi perdido em ocasião,

pois sabe a vida superar a morte

e refazer o quanto o tempo rói!...