A GATINHA BRANCA
A GATINHA BRANCA
(Conto de fadas francês da Condessa d’Aulnoy, adaptação e
versão poética de William Lagos, 24 ABR 13).
A GATINHA BRANCA I
Da Borgonha, um rei teve três filhos,
nascidos todos juntos, de um só parto,
cuja mãe, infelizmente, falecera;
muita amizade a seus irmãos desenvolvera
cada um dos três, a dormir no mesmo quarto,
crescendo juntos e seguindo os mesmos trilhos.
O rei seu pai já estava a envelhecer,
mas não queria desfazer-se da coroa.
Ao ver os filhos de tão nobre porte,
começou a temer a própria sorte,
porque a velhice nunca é coisa boa
e nem sequer a um rei lhe traz prazer.
Embora não o quisesse abandonar,
temia que os filhos disputassem o seu trono
e decidiu-se a enganá-los por ardil,
por meio de qualquer promessa vil;
nada se pode dizer em seu abono,
porque queria tão só contemporizar.
E assim, chamou os filhos certo dia,
que se chamavam Robert, Albert e Norbert,
e lhes falou com muita falsidade:
“Desejo abdicar, na realidade,
mas sois trigêmeos e não sei sequer
qual é o mais velho,” disse em falsa bonomia.
A GATINHA BRANCA II
“Sim, estou pensando seriamente em abdicar.
Pretendo me mudar para uma herdade,
para viver ali qual simples duque...
Em vez de mármore, paredes tem de estuque,
irei caçar, na maior simplicidade,
trezentos servos só a me acompanhar...”
“Mas gostaria de ter um bom cãozinho,
o mais bonito e forte do lugar...
E vou fazer minha escolha desta forma:
aquele de vocês que à casa torna
com o mais belo cachorro que encontrar,
terá meu trono, com todo o meu carinho...”
“Mas primeiro, vocês terão de me jurar
que irão respeitar a escolha feita
e não irão lutar, irmão contra outro irmão!...”
Cada um dos príncipes estendeu-lhe a mão,
que pela mão do rei foi então sujeita
à mais solene jura a pronunciar...
Não que jamais pretendessem combater:
era muito sincera a sua amizade,
nenhum deles escravo da ambição.
Aceitariam em seu trono borguinhão
qualquer irmão com total sinceridade,
sem nunca mais ao trono pretender...
A GATINHA BRANCA III
E assim, os três irmãos logo partiram.
Robert e Albert empreenderam aventuras,
e bem depressa cada qual achou seu cão,
Norbert, porém, não encontrou satisfação
em qualquer animal, e a outras lonjuras
suas andanças longo tempo prosseguiram.
Mas certa noite, cruzando uma floresta,
viu desabar uma forte tempestade;
era inverno, com as árvores esgalgadas,
quase sem folhas, no chão acumuladas
e não havia nem fazenda, nem cidade,
e nem sequer a caverna de uma besta.
Mas de repente, à chuva de permeio,
ele avistou, à distância, fraca luz...
Nesse sentido esporeou o seu cavalo
e logo, protegido por um valo,
avistou um castelo, em que reluz
grande número de tochas em seu seio.
Quando chegou, foi baixada a levadiça,
embora não enxergasse viva alma.
Troteou até o portão, ainda fechado:
havia um sino estranho pendurado
em um pé de cabrito, estranha palma,
porém de ouro, a despertar cobiça.
A GATINHA BRANCA IV
O príncipe estendeu a mão ao sino,
para puxar correntinha adamantina,
que fez soar uma alegre melodia;
logo erguer-se por si só a grade via
e sem ter medo, Norbert cruzar atina,
montado ainda no seu corcel fino.
De cada lado do vestíbulo avistou,
saindo das paredes, muitos braços,
a sustentar archotes bem acesos;
e pelo ar, diversos braços tesos,
que seguraram suas rédeas, mas sem traços
de humana gente, o príncipe enxergou.
Quando um dos braços lhe estendeu a mão,
Norbert ainda hesitou em se apear,
mas escutou uma voz desencarnada,
que lhe falou, com harmonia modulada:
“Não há motivo para se preocupar:
de ter receios não existe precisão...”
Então o príncipe desceu, sem ter mais medo.
Viu seu cavalo ser levado à estrebaria,
puxando as rédeas duas mãos invisíveis...
Norbert lembrou das histórias mais incríveis,
sobre castelos encantados por magia,
seguindo em frente na busca do segredo.
A GATINHA BRANCA V
E assim atravessou muitos salões,
com quadros e estátuas magníficas,
tapetes e dosséis, tapeçarias,
os tetos enfeitados, luzidias
lâmpadas de ouro, decorações miríficas,
muito mais belas que em sonhos ou visões.
Logo o levaram até grande lareira
e foi por mãos sem corpo desvestido
de seus trajos de caça umedecidos,
por mui ricos ademanes substituídos,
para uma bela poltrona conduzido,
em que pentearam sua basta cabeleira.
Depois de ser adornado belamente,
foi conduzido a um salão ainda melhor,
mas cujos quadros só gatos mostravam.
O Gato de Botas ali representavam,
uma Gata-mulher, um Gato-escritor
e outros felinos de caráter diferente.
A mesa para dois fora arrumada
e então subiu a orquestra num estrado:
eram gatos a tocar os instrumentos!
Depois, coberta por negros paramentos,
numa liteira viu ser transportado
um ser pequeno e de aparência delicada.
A GATINHA BRANCA VI
Também eram gatos que traziam a liteira,
vestidos em libré, como lacaios;
e uma outra, dama de companhia,
o véu lhe retirou que a recobria.
E então, vestida com os atavios mais gaios,
surgiu uma gata branca e bem faceira!...
“Minha Felina Majestade,” disse ela,
“o recebe na maior cordialidade.
Sei ser um príncipe, por seu parecer...”
Norbert lhe demonstrou grande prazer,
agradecendo-lhe pela hospitalidade
e pela honra de permitir-lhe vê-la...
“Reconheço muito bem,” disse Norbert,
“que vós não sois uma qualquer bichana:
o dom da fala logo o manifesta
e o magnífico castelo desta festa...
Tenho certeza serdes grande soberana,
assim mantida por feitiço mau qualquer...”
“Seus elogios podem ser dispensados,
eu sou apenas uma simples gatinha,
porém dotada de mui bom coração...”
E após um leve meneio de sua mão,
numerosa criadagem se avizinha,
alguns felinos, outros desencarnados...
A GATINHA BRANCA VII
Logo serviram lauta refeição,
Só que a gatinha foi servida à parte,
comendo camundongos e pardais...
Mas o rapaz reconheceu todos os mais
como excelências da culinária arte,
tanto em sabor como em apresentação.
O príncipe reparou em um retrato
que a gata branca trazia na patinha
dianteira e direita e, surpreendido,
viu que um belo rapaz havia sido,
naquela miniatura de gatinha,
mostrado em pleno garbo e com recato.
Não se animou, porém, a perguntar
e logo a gatinha o conduziu
a outro salão, em que apresentaram
uma peça por mímica e então dançaram
os gatos da rainha e reluziu
até um prestidigitador, a magicar!...
Em belo quarto foi dormir, sem mais temores,
porém foi na madrugada despertado
e ajudado a vestir roupas de caça;
quinhentos gatos traziam tochas e fumaça,
com cães lebreus, o conjunto acompanhado
por cem gatos com trombetas e tambores.
A GATINHA BRANCA VIII
E depois que acabaram a caçada,
carregados de lebres e veados,
porcos do mato, codornas e faisões,
voltaram ao castelo em procissões.
Noutro banquete foram acompanhados,
com dez licores, vinho e carne assada.
Norbert acabou esquecendo sua missão,
passando muito alegre no castelo.
A sua gatinha jogava bem xadrez...
Da vasta biblioteca era freguês,
cheia de livros, cada qual mais belo...
E assim o ano foi chegando à conclusão.
Foi a gatinha, afinal, que o preveniu:
“Faltam três dias para se cumprir o prazo
que o rei seu pai lhe deu para voltar!...”
Ficou Norbert já a se desesperar:
“Mesmo que eu ache um cachorro, por acaso,
não chega a tempo meu corcel que você viu!...”
“Não se amofine,” disse-lhe a gatinha:
“Vou te emprestar meu cavalo de pau,
que chegará em doze horas a teu pai...
E nesta bola, lindo cãozinho vai...
É só cortá-la, sem lhe dares talho mau,
que ele já sai, abanando a sua caudinha!...”
A GATINHA BRANCA IX
Ao chegar nas cercanias do castelo,
Norbert encontrou seus dois irmãos,
que nem notaram ser o cavalo de madeira;
ele levava seu cãozinho na algibeira,
mais um cachorro que achara nuns porões,
pobre animal, sem ter nada de belo!...
Mas na hora de mostrarem para o rei,
Norbert deixou na rua o pobre cão
e abriu a bola, com o maior cuidado.
Dela saiu um cãozinho bem treinado,
que dançava com perfeita precisão,
pulando argolas com um cão da melhor grei!
Mas como os outros cães eram também
bastante belos e até um pouco habilidosos,
fingiu o rei não conseguir se decidir,
pois de seu trono não pretendia sair,
matutando em ardis mais estrondosos,
qual uma mente maliciosa só contém...
E disse aos filhos: “Vou dar-lhes outro ano.
Que me procurem fina peça de tecido,
grande o bastante para fazer um manto,
porém tão fino, que passe pelo canto
de uma agulha, sem um fio corrido!...
Quem a trouxer, será o novo soberano!...”
A GATINHA BRANCA X
Desta vez, saíram bem desapontados,
tratando o irmão com certa frialdade,
devido à peça daquele cão sem raça;
e na história desse pano, pouca graça
puderam encontrar, na realidade,
já desconfiando só estar sendo enganados.
Norbert voltou direto a seu castelo
em que a gatinha branca garantiu
não ser problema para suas fiandeiras,
que tal fazenda teceriam, bem certeiras...
E a novas festas e caçadas o conduziu,
nas quais passou outro ano muito belo.
No fim do ano, lhe entregou uma noz.
“Mas só a abra na presença de seu pai,
que assim alcançará as suas riquezas...”
“Blanchette, eu prefiro tuas belezas,
é só o dever que para lá me atrai...
Mil vezes fico para escutar tua voz...”
“Muito agradeço a tua devoção
pela gatinha, que te serve apenas
para caçar ratos... Mas agora, vai...”
E quando o príncipe encontrou seu pai,
mais uma vez se repetiram as cenas,
pois finos panos trazia cada irmão.
A GATINHA BRANCA XI
Norbert depressa foi partir sua noz,
mas dentro dela havia uma avelã
e dentro da avelã, uma cereja!...
E no afã de buscar o pano que lá esteja,
achou um grão de trigo, envolto em lã,
e das risadas já se ouvia a voz...
Mas insistiu e quebrou mais esse grão
e lá de dentro saltou uma longa peça,
mais fina que qualquer outro tecido;
de lindíssimos bordados revestido,
passou por uma agulha, sem mais essa,
sem que um só fio sofresse repuxão!...
O rei deu um suspiro de impaciência:
esse rapaz enchia suas medidas!
“Pois muito bem. Este pano será o véu
da mais bela rainha sob o céu!...
Terão um ano para achar as prometidas
e a mais bela ganhará a concorrência!...”
E lá saíram os príncipes, outra vez,
sem mais acreditarem em seu pai:
“Esse só deixa o trono, se morrer!
Por que motivo nos precisava prometer?
Quando a promessa, de fato, nunca sai
e a gente fica só vagueando mês a mês!...”
A GATINHA BRANCA XII
“Meus irmãos,” falou Norbert, desapontado,
“a injustiça maior foi para mim,
mas eu não faço questão dessa coroa;
nossa amizade é coisa muito boa
e até prefiro que continue assim,
sem que eu acabe de vocês sendo afastado!”
Mas Albert e Robert lhe responderam:
“Nossa amizade é a coisa mais sagrada,
mesmo que o pai nos busque separar,
de lealdade outra vez vamos jurar:
qualquer que seja a noiva proclamada,
sempre uns aos outros fiéis continuaremos!”
Norbert voltou para sua gatinha querida;
ela o aguardava em dourado pavilhão,
os gatos a cercavam às centenas...
Ela o saudou, demonstrando grandes penas:
“Ei-lo de volta!... Mas sem coroação...”
“Senhora, esta coroa está perdida...”
“Meu pai tem bem mais pena de cedê-la
que eu teria prazer de assim ganhá-la...”
Passou o príncipe outro ano com a gatinha,
sempre indagando se era uma rainha,
se alguma bruxa conseguira encantá-la,
ou se era alguma fada... de tão bela!...
A GATINHA BRANCA XIII
Mas a gatinha tão só desconversava,
não querendo lhe contar o seu segredo,
e os dois juntos se davam muito bem...
Então o príncipe lhe revelou, também,
que de arranjar uma noiva tinha medo,
pois era apenas ela que ele amava...
“Bem, nesse caso,” disse-lhe Branquinha,
“se é bem verdade que me sente amor,
só depende de você quebrar-me o encanto
e arranjar, mesmo por meio de seu pranto,
a mais bela das noivas, sem temor
de uma façanha dura e bem mesquinha...”
“Diga o que quer, farei quanto for preciso.”
“Então, me jure!” insistiu Branquinha.
“Juro cumprir a prova que marcar!...”
“Pois bem, então você terá de me matar,
cortando minha cabeça e minha caudinha
e lançar meu corpo ao fogo, sem prejuízo.”
“Porém que prova é essa, minha querida!?
Como quereis que vos provoque a morte...?”
Mas a gatinha lembrou-lhe o juramento
e Norbert, inda que envolto em grão tormento,
sem querer conformar-se com sua sorte,
ficou preso pela palavra proferida!...
A GATINHA BRANCA XIV
Mas Branquinha garantiu que o cumprimento
de sua promessa traria mais felicidade...
“Você será feliz, quebrado o encanto,
mas eu jamais me livrarei do pranto...
Nenhuma noiva eu quero, na verdade,
se me custar assim tão grão tormento!...”
Porém tanto insistiu a boa gatinha
que Norbert sacou da espada, finalmente,
e cortou-lhe a cabeça e a cauda inteira,
jogando então seu cadáver na lareira.
Uma explosão surgiu, muito potente,
e de Norbert a cegueira se avizinha!...
E nesse instante, saiu de dentro ao fogo
a mulher de mais encanto que já vira:
longos cabelos louros, olhos de gata,
um grosso manto sobre branca bata;
sobre a cabeça, fino toucado mira,
pele de gato, no mais estranho rogo...
Norbert pensou ter sido enfeitiçado,
mas a mulher estendeu-lhe o braço, então:
“Não precisa ter receio, sou Blanchette;
fui condenada a ser gata por sete
anos vezes sete, em castigo da ambição
dos reis meus pais e não por meu pecado.”
A GATINHA BRANCA XV
“Apaixonei-me por um jovem empregado,
a quem o rei meu pai mandou matar;
só que ele era afilhado de uma fada,
que quis em troca que eu fosse degolada;
meu pai, é claro, se recusou a aceitar
e foi por isso ele mesmo condenado...”
“A fada convocou cem regimentos
de ogros, trasgos e dragões terríveis...
Nosso exército foi logo derrotado,
meu pai foi no combate derribado;
minha mãe sujeita aos tormentos mais incríveis;
chegou minha vez de sofrer padecimentos...”
“Porém a fada disse-me: ‘Blanchette,
só de te olhar reconheço a tua pureza,
porém por ti morreu meu afilhado...
Teu coração percebo estar magoado
e me comove a extensão de tua beleza:
ao invés de morte, sofres sete vezes sete.’”
’Conservarás o castelo de teus pais,
porém te mudarei em animal
e todos os teus súditos em gatos;
os inimigos que invadirem, serão ratos...
Só assim, preservarei teu enxoval,
pelos quarenta e nove anos fatais...’
A GATINHA BRANCA XVI
’ Porém, após cumprido o longo prazo,
irás permanecer no encantamento,
até que surja um príncipe tão belo
quanto o era Reanulf, o meu desvelo.
Terás de conquistar-lhe o juramento
de que prefere a ti, em qualquer caso.’
‘Mesmo que sejas não mais que uma gatinha;
que esteja pronto a desistir da herança,
que não deseje qualquer outro casamento,
que te pertença de pleno sentimento!...
Somente assim tua vida antiga alcança
e poderás então ser sua rainha!...’
’Mas nem penses que será assim tão fácil!
Ele terá de te provar fidelidade,
com o mais difícil gesto de um amor,
uma façanha de lhe causar pavor,
pois só recobrarás a humanidade,
depois que ele matar teu corpo grácil!’
“Eu me arrepiei inteira com o castigo,
porém a fada continuou, inflexível,”
‘Ele terá de ter cortar cauda e cabeça;
não o perdoarás, por mais que ele te peça;
serás lançada a um fogo inexaurível;
cabeça e cauda irão arder contigo!...’
A GATINHA BRANCA XVII
‘Porém as lágrimas que brotarem de seus olhos
o fogo apagarão, incontinenti
e voltarás como a mulher mais bela,
depois de meio século, ainda donzela:
terás com ele filhos, certamente,
em recompensa por cruzar tantos escolhos...’
‘Porém teu reino sempre protegerei:
ficará por muitas décadas fechado,
todos os súditos em gatos transformados;
e os que morreram nos combates, violentados,
serão fantasmas pagando o seu pecado;
serão teus servos a tua mãe e o rei!’
“E foi assim,” disse a jovem a Norbert.
“Juraste que me amavas como gata,
queres ainda demonstrar-me o teu amor?”
E o príncipe beijou-a, com ardor:
“Que nunca o amor no coração se abata!
Pois eu jamais irei querer outra mulher!...”
Então chegou uma vasta procissão
de damas e garbosos cavaleiros,
vestidos ricamente, mas trazendo,
nos ombros ou nas cinturas assim tendo,
peles de gatos dos corpos derradeiros
e se ajoelharam para beijar-lhe a mão!
A GATINHA BRANCA XVIII
Depois chegaram à varanda do castelo
e divisaram outra vasta multidão
de homens e mulheres, não mais gatos,
trazendo acorrentados muitos ratos,
a quem a rainha outorgou o seu perdão,
que se viraram em soldados em tal zelo!...
A maioria prestou-lhe vassalagem
e quantos foram, prometeram não voltar;
caindo a noite, sentiu Norbert um arrepio:
milhares de soldados de olhar frio
chegaram transparentes, ao luar,
e se ajoelharam qual vasta miragem.
A Rainha Blanchette estendeu a mão
e ordenou a todos que se erguessem,
apontando, então, para Norbert:
“Foi o vosso salvador, não foi qualquer!”
Ouviu-se um brado, como se agradecessem
e finalmente, ergueu-se a multidão.
E os mil fantasmas subiram para os céus,
buscando a luz prateada das estrelas...
Finalmente, avançou mais um casal
e se curvaram, qual se fosse natural...
Derramou lágrimas, sem poder contê-las,
a boa Blanchette, em salgados véus...
A GATINHA BRANCA XIX
“Meus pais, eu gostaria de abraçá-los,
mesmo sendo por sua causa amaldiçoada,
só não se abraçam os mortos com os vivos.
Mas ide em paz, agora redivivos:
fostes meus servos e a culpa foi purgada;
já se aproximam os anjos a buscá-los...”
E assim se esvaneceram os fantasmas,
subindo em direção à luz prateada.
Ficou a praça somente com os viventes.
Ela ordenou se aprestassem, bem contentes,
ao dia seguinte, a marcha era ordenada,
purificado o reino inteiro dos miasmas...
No outro dia, seguiu a comitiva;
Norbert logo encontrou os seus irmãos,
ambos trazendo princesas muito belas,
que lhe indagaram qual era das donzelas
de seu cortejo que lhe dariam as mãos...
Porém Norbert declarou, logo de oitiva,
“Estas são belas, mas as vossas são bem mais;
Em vez de noiva, eu trouxe uma gatinha!”
Mostrou Blanchette dentro da carruagem.
Os dois irmãos se entreolharam, com visagem:
era uma outra surpresa que ali vinha!...
E os dois sorriram, em alegrias naturais...
A GATINHA BRANCA XX
E quando os três se mostraram ante o rei,
ele gabou a beleza das mulheres,
mas indagou: “E você, meu bom Norbert?
Desta vez, não me traz noiva sequer?”
“Majestade, apesar dos quefazeres,
só a mais bela das gatas encontrei!...”
E estendendo a mão, abriu a porta,
de que desceu Blanchette, ainda miando...
Mas no momento em que pisou no chão,
sofreu fantástica transformação,
na mais linda das mulheres se virando,
tal formosura que a vista mal suporta!...
Chegava a cabeleira até os pés,
num rio de ouro, tal qual raio de sol,
toda vestida em brancura de brocado,
porém com pele de gato debruado.
Nem mesmo o rei resistiu a tal farol,
quem poderia não lhe cair aos pés?
“Esta princesa merece a minha coroa!”
Albert, Robert e as outras duas princesas
a escolha aceitaram de imediato.
Porém Blanchette, com o máximo recato,
declarou, sem a menor sombra de incertezas:
“Tomar-lhe o reino será coisa que me doa!”
A GATINHA BRANCA XXI
“Meu próprio reino de extensão é bem maior
que a dessa sua Coroa da Borgonha!...
Será o contrário, vós tendes mais dois filhos,
por que deveriam ir buscar estranhos trilhos?
Não, Majestade, sei que, em vossa vergonha,
já estais buscando desculpa bem melhor...”
“Mas hoje mesmo ireis abdicar
e vossas terras inteiras dividir
entre Albert e Robert, qual prometestes;
já por demais cumprir promessa adiastes!”
O rei ficou furioso e quis fugir
à promessa, para a coroa conservar.
Porém Blanchette conduziu-o até a sacada
e lhe mostrou seus vastos regimentos:
“Estão aqui para assistir à coroação!...”
Teve o rei de engolir a humilhação,
mandou depressa lavrar os documentos
e a cerimônia ali mesmo foi marcada!
Albert e Robert não queriam aceitar,
mas Norbert insistiu que precisavam
e então formaram uma Tríplice Aliança,
até o tempo em que a justiça alcança;
eram trigêmeos e as coroas partilhavam
e a corte inteira aprovou, sem hesitar!
EPÍLOGO
Assim, foi celebrado o casamento
dos três irmãos e, nesse mesmo dia,
se realizou igual coroação...
Norbert voltou com Blanchette, sua paixão,
enquanto um sábio a Borgonha dividia
pelas fronteiras de melhor ajustamento.
E o velho rei? Partiu para sua herdade,
em que passou a caçar, alegremente,
sentindo embora saudades da coroa...
Mas aceitou, tal qual fosse coisa boa
e passou o resto da vida bem contente,
vendo seus filhos na maior felicidade!...