A FESTA NO CÉU
FESTA NO CÉU
(Folclore brasileiro, provavelmente de origem tapuia, versão poética de William Lagos, 8/12/12)
FESTA NO CÉU I
Muitos séculos atrás, antes que Deus
Querendo a adoração dos servos seus
criasse o homem,
Só existiam os animais na terra,
Alguns na várzea, no mato, lá na serra,
outros no mar.
Mas de todas as semoventes criaturas,
Era sinal de serem as mais puras
as que voavam,
Como uma espécie de anjos deficientes,
Que preferiam viver no ar, contentes,
do que no chão.
Entre os insetos, reinavam borboletas,
As mariposas com ambições secretas
de serem iguais a elas;
Outros saltavam ou voavam pouco espaço
E as formigas só asas tinham para o abraço
do voo nupcial.
Entre as aves, reinavam as araras,
Suas plumagens em resplendor mais raras,
sem grande canto;
Mas a águia, o condor e o carcará
Subiam até o ponto em que ares há,
vigiando o mundo.
FESTA NO CÉU II
É bem verdade que os pinguins, no céu de anil
Nunca voavam – mas não moram no Brasil,
são lá dos gelos;
E existem aves que preferem a corrida,
As avestruzes de garganta bem comprida
e até as galinhas...
A maioria, porém, domina os ares
E marca território em seus cantares
ou então crocita;
Enquanto os bichos de pelo, coitadinhos,
Não conseguem alçar voo dos caminhos:
faltam-lhes asas...
Mas entre as aves que pelo céu se ponha,
A mais festeira mesmo era a cegonha,
nossa parteira;
Por sua causa é que há tantos batizados,
Os nenês em suas fraldinhas carregados
pelo seu bico.
Deste modo, dentre toda a passarada,
É a cegonha a melhor acolherada
com o Paraíso;
De São Pedro recebe as incumbências
E as realiza com magnificências
e muito orgulho.
FESTA NO CÉU III
Assim um dia, chegando o Carnaval,
Foi convencer a corte perenal
a dar um baile
Para todos os pássaros e as aves,
Mais os insetos que arrostassem os entraves
da estratosfera...
E lá se foi, convites a distribuir
A quantos pássaros pôde descobrir,
para tal festa;
E até trouxe pitadas de pó mágico
Para essas aves com o destino trágico
de não voar...
E assim todos subiram para o céu,
Pousaram sobre as nuvens, branco véu,
cantando em coro...
Porém vieram os morcegos e disseram:
Também voamos, mas não recebemos
qualquer convite!...
E à Virgem Santa mandaram mensageiro:
“Na estrebaria, um de nós foi o primeiro
a ver o nenezinho...”
E desse modo, Nossa Senhora permitiu
E a morcegada para o céu subiu,
guinchando alto!...
FESTA NO CÉU IV
E protestaram os peixes voadores
Que também eram dos ares os senhores:
tinham direito!
A São Pedro foram seus procuradores
E o santo protetor dos pescadores
lhes consentiu também...
E reclamaram os esquilos voadores
A Santo Humberto, protetor dos caçadores,
pedindo vênia...
E o bom santo alegrou-se, sorridente
Concedendo permissão, muito clemente:
que à festa viessem!...
Porém macacos, jacarés e capivaras,
As onças, cobras, os pecaris em varas
vez não tiveram...
Mas facilmente com isso concordaram;
Não eram aves, portanto já aceitaram
não poder ir...
Contudo, o jabuti não quis saber:
Queria um convite para a festa receber,
mas riram dele...
“Além do fato de não ser bicho de asa,
Ainda carrega nas costas a sua casa:
pesa demais!...”
FESTA NO CÉU V
Mas acontece que, para alguma farsa,
Ele emprestara dinheiro para a garça
e foi cobrar!...
“Mas eu não posso lhe pagar agora!
Eu não consigo dinheiro nesta hora!
tem de esperar!...”
“Bem, essa dívida eu posso lhe perdoar...
É só até o céu me carregar:
quero ir à festa!...”
Tanto insistiu, que a garça concordou
E nas costas da ave ele montou,
feliz da vida!...
E a garça alçou voo de imediato,
Com o jabuti aboletado sem recato,
pesando muito!...
E ela falava: “Assim, vou me atrasar!
Até lá em cima não vai dar para o levar,
já estou cansada!...”
E o jabuti não parava de insistir
E a pobre garça se esforçava por subir,
devagarinho...
Lá de cima vinha a música da festa...
Queixa-se a garça e o jabuti contesta:
“Você me deve!...”
FESTA NO CÉU VI
“Não está vendo como o céu fica distante?
A mata inteira já está minguante...
Não posso mais!...”
E o jabuti se agarrava firmemente
Nas penas brancas do pássaro valente:
“Voa mais alto!...”
Tanto insistiu que até o céu se aproximava
E a pobre garça, exausta, já ofegava:
“Eu vou cair!...”
“Ah, mas não vai!... Voa logo, preguiçosa!
Não está ouvindo a música formosa?
Só falta um pouco!...”
Mas chegou um ponto em que não pôde mais,
Atraída pelas forças naturais,
e despencou!...
E o jabuti começou a esbravejar:
“O meu dinheiro, com juros, vou cobrar!...
Suba de novo!...”
Até que a garça, num esforço enorme,
Subiu de novo, em vertical conforme,
E ele escorregou!...
“Não me solte, sua bandida! Vou cair!”
“Eu não consigo mais o conduzir,
volte à sua terra!...”
FESTA NO CÉU VII
E o jabuti arrancou umas quantas penas,
Sacudindo as patinhas, mas apenas
desceu depressa!...
Enquanto a garça, aliviada, dava um salto
E em dois minutos pousava lá no alto,
com um suspiro!...
E o jabuti? Seguiu caindo, sem parar,
Enquanto via o chão se aproximar,
muito depressa!...
E começou então a protestar:
“Depressa, pedras, saiam do lugar!...
Vão se quebrar!...”
Mas é claro que as pedras não saíram
E os olhos do jabuti aumentar viram
o seu perigo!...
Tentou um desvio, com as peninhas da garça,
Mas o seu peso em nada assim disfarça:
bateu direto!...
E sua casca, atravessando espaços,
Contra essas pedras fez-se em mil pedaços:
ficou pelado!...
Parado ali, estrebuchando, sobre o solo,
Sem nem ao menos, para seu consolo,
ter visto o céu!
FESTA NO CÉU VIII
E assim aprendeu a não ser mais orgulhoso
E arrependeu-se, suplicando a Deus piedoso
que ainda o salvasse!
E lá de cima, o bondoso Criador
Se condoeu com a pena do infrator:
mandou-lhe a graça...
E assim, os pedacinhos se juntaram:
Devagarinho, uns aos outros se colaram
inteiramente...
Porém as marcas ficaram, rachaduras,
As cicatrizes todas dessas curas
para lembrança...
E é por isso que, até hoje, os jabutis
Tem em suas cascas tais marcas em xis,
iguais mosaicos...
E nunca mais subir aos céus eles buscaram;
Em serem bichos do chão se conformaram,
ou então, das águas...
Segundo dizem, há aqui uma lição:
Não se revolte ninguém com a situação
em que nasceu...
E ao mesmo tempo, que não há condenação
Que não seja sujeita a esse perdão
que vem do Pai.