A MOURA TORTA

A MOURA TORTA

(Conto popular nordestino de origem portuguesa, Recolhido

por Sílvio Romero e recontado por Monteiro Lobato.)

Versão Poética de William Lagos, 19 SET 12

A MOURA TORTA I

Antigo rei, que velho já casara,

Teve três filhos, nascidos de uma vez;

E não sabendo escolher qualquer dos três

Para sentar-se de seu trono sob o signo,

Já que sua esposa nesse parto se finara,

Pensou num teste para ver qual o mais digno...

Aconselhou-se com um frade seu amigo,

Que respeitava por ser inteligente.

Este lhe disse: “Um rei deve ser prudente,

Do mesmo modo que obedecer todo o preceito

Que o reino rege deste o tempo antigo,

Para a nação governar com mais proveito...”

Então o frade foi até o seu jardim

E recolheu três grandes melancias...

“Estas frutas possuem velhas magias;

Da Santa Virgem foram abençoadas.

Dá a teus filhos uma a uma, para assim

Ver se merecem tais bênçãos derramadas...”

Com as melancias espantou-se o rei.

“Que teste é esse que tenho de fazer...?”

“A cada um dos três deves dizer

Que esse fruto só pode ser aberto,

Conforme ordena nossa antiga lei,

Onde uma fonte ou rio estiver perto...”

A MOURA TORTA II

Quando o rei querer saber mais demonstrou,

O frade demonstrou tenacidade

Em sua recusa de atender curiosidade:

“Majestade, por vossos filhos demonstrais amor;

Se eu vos disser a razão que o provocou,

O vosso amor influenciará o seu valor...”

“Mas vos garanto que mal algum fará

Este teste que abençoou a Santa Virgem.

Só os resultados suas ações atingem,

Mas pela forma como se comportarem

A cada um a sua função indicará

E como irão no futuro se mostrarem...”

Assim o frade a curiosidade repeliu

Do velho rei, mas eram muito amigos

E o soberano teve certeza de que perigos

Não sofreria nenhum de seus três filhos...

E as melancias ao palácio conduziu

Para avaliar quais seriam os seus trilhos...

Não obstante, o velho frade foi consigo,

Na intenção de o ajudar no julgamento

De qual dos três venceria seu portento

E ganharia o direito de assentar

De seu país no belo trono antigo,

Para a nação com prudência governar...

A MOURA TORTA III

Destarte o rei chamou os seus três filhos

E a cada um entregou uma melancia;

Os três se olham, mas do pai ninguém se ria.

Se era essa a vontade de seu rei,

Obedeceriam, em seguimento aos trilhos

Determinados pela antiga lei.

O pai lhes disse que assim escolheria

Quem no trono deveria sucedê-lo,

Para seu povo tratar com mais desvelo.

Seria um teste de sua capacidade

E da inteligência que demonstraria

Cada um deles, de acordo com a verdade.

Desse modo, o que fosse vencedor

Seria o rei depois que ele morresse;

E exigiu que juramento se fizesse

De que os três respeitariam o resultado,

Não importa qual fosse e todo o amor

Demonstrariam pelo irmão assim nomeado.

Os três irmãos juraram, facilmente,

(Eram trigêmeos e, de fato, muito unidos)

Do amor fraterno jamais desiludidos

E certamente não o seria por ambição.

A seu irmão obedeceriam lealmente,

Com toda a força do seu coração.

A MOURA TORTA IV

E o velho frade com eles insistiu:

“Não as abram onde não exista água;

Se o fizerem, sofrerão mui grande mágoa,

Que irá afetar a sua futura sina!...”

Cada um dos três rapazes anuiu

E despediu-se, com mesura fina.

E cada príncipe tomou uma direção,

Montado em seu cavalo ajaezado,

Por um terreno bastante acidentado.

E ao acabar a água que trazia,

Sentiu sede o Príncipe Dom João,

Que decidiu abrir sua melancia...

Mas no momento em que partiu a fruta,

Saiu dela uma jovem toda nua,

Que no calor intensamente sua

E ao príncipe pediu: “Dai-me água

Ou dai-me leite!...” Ele a escuta:

Água não tem para dar-lhe, triste mágoa!

E a bela jovem começou a definhar,

Murchou depressa e já nem era gente,

Pois reduziu-se tão só a uma semente...

E Dom João, sem saber o que fazer,

Decidiu para o castelo retornar,

Para o castigo esperado receber...

A MOURA TORTA V

Porém o pai o recebeu bastante bem

Só demonstrando estar desapontado.

“Não terás o meu trono, mas te darei o Condado

Das Montanhas e defenderás minhas fronteiras.”

“Planta a semente,” disse-lhe o frade também,

Que soldados nascerão para as trincheiras...”

“E assim garantirás nossa nação,

Serás o Conde das Montanhas e um castelo

Que teu avô construiu, grandioso e belo,

Será o teu, com toda a renda das aldeias;

Serás sempre leal ao teu irmão,

Cujo sangue te corre dentre as veias!”

E Dom João reiterou seu juramento,

Logo partindo para sua guarnição,

Sem ter inveja no seu coração.

Os três irmãos sempre foram muito unidos

E de revolta não pensou um só momento,

Seriam três os destinos escolhidos...

Mas quando seu castelo achou deserto,

Portas caindo, sujo e abandonado,

Nem por isso se sentiu desanimado,

Porém plantou sua semente no jardim:

De cada fruto que por ele foi aberto

Veio um soldado para ajudá-lo assim.

A MOURA TORTA VI

O outro príncipe, chamado Dom José,

Seguiu em direção bem diferente,

Mas logo o Sol queimava, de inclemente,

E começou a pensar na melancia,

Até que, aos poucos, foi perdendo a fé,

Em consequência da sede que sentia...

Quando abriu a melancia, num momento,

Uma moça toda nua apareceu,

Que muito loura e bela pareceu.

“Dai-me água ou leite!...” lhe pediu.

Mas Dom José, espantado com o portento,

Nenhum líquido lhe pôde conseguir...

E a sua donzela viu a definhar

A secar e a encolher inteiramente,

Até se transformar numa semente...

Que falhara no teste, Dom José

De forma alguma podia duvidar:

Voltou ao castelo, já que não tivera fé...

Porém o rei acolheu-o com carinho:

“Meu filho, vejo que não serás o rei,

Pois falhaste o julgamento dessa lei,

Porém receberás belo condado,

Que do lado do mar fica vizinho

E o reino protegerás com teu cuidado.”

A MOURA TORTA VII

E assim lhe disse o frade, calmamente:

“Irás plantar tua semente numa praia.

Quando os frutos surgirem de sua raia,

Os abrirás e terás fortes marinheiros,

Que lutarão contra os piratas, firmemente,

Em seus navios robustos e ligeiros...”

“Porém não esqueças de teu juramento!”

Insistiu com ele o velho rei:

“Por que jamais dividas nossa grei!

A teu irmão serás sempre fiel,

Conde do Mar, com puro sentimento:

Jamais à inveja cederás quartel!...”

E Dom José seu juramento renovou:

“Serei fiel a esse meu irmão

Que demonstrar ao trono ter razão!”

E assim dizendo, saiu com altivez,

Em seu cavalo novamente ele montou,

A demandar do Mar a Fortaleza!

Mas descobriu, com desapontamento,

Que o castelo se achava abandonado,

Vazio e sujo, meio derribado...

Mas plantou sobre a praia sua semente:

Surgiu depressa um grande regimento

De marinheiros de coração valente!

A MOURA TORTA VIII

O outro príncipe, chamado Dom Manoel,

Apesar de igualmente sentir sede,

À tentação com firmeza nunca cede.

Só foi abrir a melancia junto a um rio

De águas doces como o claro mel

E por seu corpo escorreu um calafrio!...

Pois lá de dentro saltou uma donzela,

Pedindo: “Dai-me água ou dai-me leite!”

O seu pedido foi facilmente aceite,

Trouxe-lhe água do rio e ela bebeu,

Tornou-se ainda mais saudável e mais bela

Seu coração para ela se moveu...

Abraçou-a com carinho e então lhe disse:

“Quando eu for rei, serás a minha rainha!”

E após tirar as medidas da mocinha,

Ao ver que ela estava toda nua,

A um carvalho mandou que então subisse:

“Não poderás andar assim na nossa rua!...”

Ajudou-a a subir a um alto galho,

Depois de despedir-se com um beijo...

“Esconde-te bem e em nenhum ensejo,

Assim no meio das folhas abrigada,

Fala com alguém ou sofrerás trabalho,

Que o mal se encontra à espreita e de emboscada!”

A MOURA TORTA IX

Então o príncipe voltou para o castelo,

A relatar o que lhe acontecera...

Mas então veio uma velha feiticeira,

Que era chamada por todos Moura Torta,

Suja e vestida com todo o desmazelo,

Que numa granja cuidava de uma horta.

Na verdade, ela vivia como escrava,

Desde criança, desde que sua terra

Havia sido conquistada numa guerra

Que nessa época Reconquista se chamara.

De sol a sol ela sempre trabalhava

E com o labor as suas costas encurvara.

Do mesmo modo, por labutar de sol a sol,

Tinha o rosto e as mãos de tom escuro,

Mas bem pior seu coração impuro,

Pois aprendera alguma bruxaria

E empregando um fósforo e um anzol

As hortaliças crescer era fazia...

Desde então, ela só fingia trabalhar,

Sempre que estava longe da patroa;

E embora inveja a sua alma roa,

Como não era muito inteligente,

Nenhum feitiço se lembrara de aplicar

Contra animal ou contra qualquer gente.

A MOURA TORTA X

Mas ao chegar essa seca surpreendente,

As hortaliças começaram a murchar

E a patroa a mandou então pegar

Um grande pote para trazer água do rio.

Ela fazia o serviço, descontente,

Desde o princípio daquele longo estio.

Ela chegou pelo caminho, resmungando,

E a donzela ficou muito curiosa,

Ao ver aquela moura tão feiosa

E por entre as folhagens espiou,

O reflexo de seu rosto se formando

Sobre as águas quando a Moura ali parou!

E a Moura Torta, vendo tal reflexo,

Só de vaidosa, pensou ser o rosto dela!

Embora fosse, de fato, o da donzela

E resmungou: “Mas se eu sou bonita assim,

Por que fazer um trabalho tão sem nexo?

Eu quero é um homem que trabalhe para mim!”

Cheia de raiva, jogou o pote ao chão,

Que se quebrou, depressa, em mil pedaços!

Voltou a Moura, pensando em ter abraços.

Mas a sua ama se riu às gargalhadas:

“Como algum jovem lhe dará seu coração?

És velha e feia e tens as costas encurvadas!...”

A MOURA TORTA XI

E a patroa a obrigou a carregar segunda bilha,

Ainda maior e mais pesada que a primeira...

E lá se veio a Moura Torta, a feiticeira,

Amaldiçoando à sua ama e a meio mundo,

Imaginando de algum bruxedo a trilha

Que lhe pudesse causar um mal profundo!

E quando olhou novamente para o rio,

Viu o reflexo da moça entre a folhagem:

Quebrou a bilha, na maior coragem,

Decidida a enfrentar a sua patroa,

Numa recusa de trabalhar, a sangue frio...

Mas em resposta, levou sova muito boa!...

E a patroa lhe entregou terceiro pote,

Dizendo que, se esse ainda quebrasse,

Outra sova lhe daria, que lembrasse

Durante todos os dias de sua vida!...

E lá se foi a Moura, no congote

Trazendo bilha mais pesada e mais sofrida!

Mas quando olhou no rio mais outra vez

E viu o reflexo da moça, pôs-se aos berros!

“Uma moça tão linda posta a ferros!

Eu deveria é estar morando num castelo

E não estar a carregar pote de grés!...

Só um rei merece um rosto assim tão belo!...”

A MOURA TORTA XII

Ora, a jovem da melancia nascida,

Até esse ponto, não falara nada.

Mas de repente, soltou uma gargalhada,

Não podendo a tal tolice resistir!...

A Moura ergueu a vista e, de saída,

Compreendeu por que estava a se iludir...

Mas a raiva ela escondeu, com esperteza,

Pois finalmente uma chance lhe surgira

De se vingar da risada que a ferira...

E então falou, com a maior doçura:

“Menina linda, por que esconde sua beleza,

Encarapitada nessa árvore tão dura?...”

Ficou a jovem até bem assustada,

Por ter rido e sua presença revelado.

Mas a Moura Torta, com o maior cuidado,

A elogiou e conquistou a sua confiança.

“Olhe sua linda cabeleira emaranhada!

Desça aqui, que a penteio e faço trança!...”

Então a moça desceu, ingenuamente,

E viu a Moura que ela estava toda nua...

“Mas o que faz, pelada, aqui na rua...?”

E a donzela contou-lhe toda a história,

Que a desencantara um príncipe valente

E que com ela casaria em grande glória!

A MOURA TORTA XIII

E então, correndo os dedos pelo couro

Dos cabelos da formosa cabecinha,

Que do país se tornaria a rainha,

A Moura Torta concebeu plano maligno,

Para causar da jovem o desdouro

E lhe roubar o lugar no trono digno!...

E bem depressa retirou um alfinete,

Que usava para prender os seus farrapos,

Sem se importar que caíssem os seus trapos,

Cravou-o inteiro na loura cabecinha!

E no instante em que a ponta se intromete,

A donzela se transformou numa pombinha!

E sem demora para longe ela a espantou

E então soltou as suas roupas pelo rio

E subindo ao carvalho, sentiu frio,

Mas já escutava do príncipe o cavalo

E com o frio nem um pouco se importou,

Porque sabia muito bem como enganá-lo!...

E quando o príncipe chegou com o vestido,

Horrorizou-se ao ver a Moura Torta,

Cuja feiura nem descrição comporta!...

“Mas como foi que seu rosto escureceu?

Por que seu corpo está torto e desnutrido?

Minha querida, que mal lhe aconteceu!?...”

A MOURA TORTA XIV

“A culpa é sua, demorou tempo demais!...”

Mentiu, bem descarada, a Moura Torta,

“Já percebi que comigo não se importa!

Foi o Sol que minha pele ressecou

E aos poucos me encurvou ainda mais!

Meu pobre corpo quase em múmia se tornou!”

E como o príncipe já escutara a história

Das outras jovens ressequidas em semente,

Deu-lhe água e leite então, incontinenti,

Mas é claro que não lhe serviu de nada!

E conformou-se com sua sorte inglória:

Por culpa sua ela ficara assim queimada!...

Então lhe deu o vestido que trouxera,

As roupas íntimas e muitos adereços,

Anéis e joias dos mais altos preços

E a Moura Torta vestiu-se ricamente,

Como na vida jamais antes pudera,

Só sua corcunda continuava permanente!

Mas como o príncipe casamento prometera,

De sua palavra atrás não voltaria;

Colocou sua noiva sobre a montaria

E cavalgou em silêncio até o castelo,

Sem entender o que a acometera:

Como ficara assim tão feio o rosto belo!

A MOURA TORTA XV

E a corte inteira se compadeceu,

Acreditando que o Sol a transformara,

Porque o príncipe conversando demorara,

Porém o frade ficou muito desconfiado

E muito triste foi rezar o terço seu...

Não fora o fruto pela Virgem abençoado?

Talvez fosse tão só uma provação,

Os desígnios de Deus são insondáveis...

Mas resultados assim tão improváveis...?

Muitas horas a rezar permaneceu

Rogando a Deus por iluminação,

Porém nenhuma resposta recebeu...

O pobre rei, só de pena, até adoeceu...

Dom Manoel tratou bem a Moura Torta,

Mas de seu quarto nem chegava à porta!

Com seus soldados retornou Dom João;

Com marinheiros dom José apareceu,

Cheios de dó, bem fundo ao coração!

E a Dom Manoel tentaram convencer

De que tal casamento era impossível.

Sua noiva era velha, além de ser horrível,

Não poderia conceber um seu herdeiro!

Mas o príncipe insistiu no seu dever:

“Eu sinto muito, mas prometi primeiro!...”

A MOURA TORTA XVI

Contudo, já que estava o rei doente,

Havia desculpa para adiar o casamento.

A Moura Torta mostrou mau comportamento,

Tratava todos os criados muito mal,

Desrespeitava os cortesãos e toda a gente,

E se arreliava com o noivo no final!

“Você me prometeu um casamento!

Vai-me deixar agora desonrada?

Pela língua de todos mal falada?”

E Dom Manoel, com paciência, respondia

Que haveria de cumprir o juramento,

Mas com seu pai doente, não o faria...

E então a Moura Torta lhe exigia

Mais presentes e novos privilégios,

Procurando recorrer a sortilégios

Para manter a ilusão de que era ela,

Apesar da diferença que se via,

Aquela linda e tão gentil donzela...

E Dom Manoel foi consultar o velho frei,

Que dia e noite na capela ora rezava,

Para indagar o que lhe aconselhava;

E ele falou que havia algo de errado,

Não era assim que funcionava a antiga lei,

Aquele estrago fora demasiado!...

A MOURA TORTA XVII

Mas Dom Manoel insistiu que prometera

E em sua palavra não voltava atrás:

“Somente Deus esse fadário me desfaz!”

Mas o monge explicou-lhe, com cautela,

Que mesmo sendo sua promessa vera.

Data não dera para casar com ela...

E quem mandava no reino, era seu pai.

Se ele sarasse, poderia o proibir

Ou alguma lei existiria a impedir

Do matrimonio a sua consumação...

“Mande as parteiras sua noiva examinar:

Talvez não seja capaz de concepção!...”

“E nesse caso, não poderão casar,

Porque a rainha deve ao trono dar herdeiro.

Por nossa lei, ninguém sobe primeiro

Ao nobre trono, sem garantir a sucessão.

Esse exame vosso pai pode ordenar,

Sendo ela velha, haverá uma boa razão!...”

Contudo o príncipe insistiu que lhe jurara

E não podia quebrantar a sua promessa.

Porém a dúvida a atormentar não cessa:

Talvez o Sol a queimasse, como aos mouros,

Mas de que forma a cor dos olhos se mudara?

Cabelos negros, quando antes eram louros?

A MOURA TORTA XVIII

Mas nesse meio tempo, apareceu,

Esvoaçando pelo seu jardim,

Uma pombinha toda branca, assim,

Que indagou, tal como quem se importa,

(E o jardineiro claramente a entendeu):

“Como passa meu senhor com a Moura Torta?”

O jardineiro até pensou ser ilusão,

Mas a pergunta tantas vezes repetira,

Que acreditou finalmente no que ouvira

E respondeu-lhe que na maior tristeza

Vivia o príncipe, por ter dado a mão

A uma mulher grosseira e sem beleza...

“Pois diga a ele que deixou-me com saudade,”

Disse a pombinha e a seguir o voo alçou.

Noutro dia, quando o príncipe ali passou,

O jardineiro encheu-se de coragem

E lhe contou toda a história, na verdade,

Ainda com medo que a chamassem de miragem...

Porém o príncipe mandou que armasse um laço

Ou armadilha para prender a tal pombinha.

Ele tentou quanta arapuca tinha,

Uma corda de prata e outra de ouro,

Colocou até diamantes nesse espaço,

Para a ave atrair com algum tesouro!...

A MOURA TORTA XIX

E finalmente, com visgo, uma armadilha

Preparou com sucesso o jardineiro.

Prendeu a pomba no laço, bem ligeiro

E a conduziu depressa a Dom Manoel,

Que com arreios de prata logo a encilha,

Para prendê-la com corrente de ouropel...

Mas depois disso, a pombinha não falou;

Ficou o príncipe até bem desapontado.

O jardineiro reafirmou tê-la escutado,

Mas para o príncipe ela não dizia nada,

Olhava apenas e nem ao menos arrulhou,

Algo a impedia, por estar ainda encantada...

Mas no momento em que a viu a Moura Torta,

Disse ao príncipe sentir grande desejo

De comer pomba e lhe deu um grande beijo,

De que o príncipe ficou até enojado

E respondeu que não queria a pomba morta,

Pois lhe dera proteção e o seu cuidado.

A Moura Torta, porém, tanto insistiu,

Que o príncipe, finalmente, concordou.

Três dias de prazo, porém, determinou

E a cada dia a acariciava com cuidado,

Louco de pena; e no terceiro, viu

Em sua cabeça um pontinho amarelado.

A MOURA TORTA XX

E então notou que ali havia um carocinho.

Ele o puxou e saiu logo o alfinete...

A Moura Torta de permeio se intromete,

Mas a pombinha transformou-se na donzela

Que o príncipe encontrara em seu caminho,

Loura e desnuda e extremamente bela!...

A Moura Torta avançou com uma adaga,

Mas o príncipe afastou-a para um lado

E desarmou-a depressa e sem enfado.

A moça loura lhe contou o que ocorrera,

Enquanto nos seus braços ele a afaga,

Ordenando que prendessem a megera!...

Logo a noticia se espalhou pelo castelo

E o rei velho de imediato se curou.

O velho frade o casal logo abençoou

E o rei determinou que o casamento

Com essa jovem de corpo e rosto belo

Se realizasse a seguir, sem adiamento...

Muito breve a jovem noiva engravidou

E no momento em que nasceu o herdeiro,

O velho rei sentiu alívio verdadeiro

E como o sortilégio se vencera,

Em favor de Dom Manoel abdicou,

Embora muito tempo ainda vivera...

EPÍLOGO

E Dom Manoel mostrou-se um sábio rei,

Governando com sua esposa longamente,

O Conde das Montanhas seu tenente

E o Conde do Mar seu almirante,

A dominar qual mandava a antiga lei,

Sempre em justiça e honradez constante.

E a Moura Torta? Existe quem nos diga

Que envelheceu no fundo da prisão,

Comendo ratos crus por refeição...

Outros contam que foi apenas exilada,

Indo para outro país fazer intriga,

Onde acabou por ser à morte condenada...

Mas há também versão bem mais cruel:

Que o velho rei, antes de abdicar,

Mandou prendê-la a um carro e a arrastar

Por terra e pedra, sem qualquer piedade,

Como castigo pelo tremendo fel,

Que sobre ele derramara por maldade.

Mas esses trechos de morte e julgamento

Preferem não contar mais às crianças,

Tirando-lhes assim as esperanças

De que o bem ganhe enfim sua recompensa,

Por mais duro que tenha sido o sofrimento

E a certeza de que o crime não compensa.