Muitas mães falam que seus filhos nasceram no pé de cebolinha ou que vieram trazidas pela cegonha ou que outras foram encontradas na lata do lixo.
Cresci ouvindo minha mãe dizer, que eu fui presente de Deus.
Como ainda tenho 11 anos, ainda não entendi o real sentido dessa frase. Quem sabe com o tempo vou compreender, porque as crianças nascem em lugares tão diferentes.
Conta-se, que essa história aconteceu quando eu ainda pintava quadros nas nuvens do céu. As mulheres da terra tinham o poder de escolher entre ficar com uma criança ou ganhar um pote de ouro. Ela me disse que a maioria escolhia o pote de ouro e que muitas, mas muitas crianças mesmo, não eram escolhidas e que em algumas situações a preferência era por bebes meninos. Foi a primeira decepção que tive antes de saber o porque. Quem sabe pelo medo que os homens tem do poder que as mulheres possuem de escrever.
Pois bem, lá no céu as vezes é muito monótono, pintamos diferentes imagens no paraíso para os que andam de carro adivinhar nossos desenhos. Mesmo porque, os que andam a pé, raramente olham pra cima, exceto quando eles querem saber se vai chover ou não. As pessoas grandes então, sequer olham pra nossa obra prima de todos os dias. Acham que isso que isso é coisa de gente pequenina. Por isso as vezes, eu ficava cansada de pintar telas em branco.
Os adultos acharam uma solução: agora voam em cima de nossos desenhos com enormes aviões. Como castigo, eles tem que viajar de janelas fechadas e não podem sentir o vento fresco aqui de fora. Por isso também, não desenhamos do lado de cima das nuvens... estamos quites.
Num dia que eu estava só pincelando mecanicamente no pote de tinta e comendo o tradicional algodão doce é que veio se aproximando meu avó. Veio todo sorridente com o carrinho de sorvete, sonho de consumo de qualquer anjo ter um parente com um carrinho desse. Eu tinha o privilegio de ser sua parente por que os anjos maiores aqui no céu podem escolher as crianças que querem cuidar antes delas nascerem.
Ele chegou com uma conversa estranha, dizendo que ja era chegada a hora de eu nascer. Esparramando as nuvens com as mãos ele mostrou-me um telhado verde. Era como um enorme gramado que se destacava dos demais. Olhei com curiosidade e arregalei os olhos de alegria. A muito tempo isso eu queria. Mas era todo um processo de requisição por parte dos pais da terra, uma fila imensa aguardando ser o próximo. Falamos sobre a alegria de viver na terra, (ele já tinha voltado de lá), deixado a familia para ele mesmo cuidar do portão do céu.
Explicou me o meio mais rápido e o menos correto. Adultos geralmente não ensinam aos pequenos coisas erradas. Por isso olhei com o cabo do guarda chuva no final da frase.
-Ora, ora, se você não se arriscar, vai continuar pintando nuvens até ficar com barbas brancas.
- Mas eu sou menina. como vou ficar feia assim?
- É uma força de expressão minha netinha. O que eu quero dizer é que tem uma mamãe lá embaixo precisando de uma menina. Ela só tem um menino meio grandinho e essa mamãe nunca teve nenhuma boneca. Você com certeza vai alegrar aquela pequena grande familia.
A ideia de ser especial na vida de alguém me fez criar coragem pra continuar ouvindo o resto do plano. Eu seria a boneca viva daquela casa que era tão verde por cima.
Ficamos por longa tempo tramando o plano, o bom é que todas as tardes eu ganhava um sorvete. Teve um momento que desejei que demorasse mais tempo para que não perdessemos aqueles gelados momentos.
Mas então, no dia determinado, nos encontramos nas primeiras horas da manhã. Ele me encontrou fazendo bolas de algodão dos retalhos das nuvens esparsas. Eu estava cabisbaixa, pensativa, ele disse que não trouxesse nada comigo, nem mesmo os enfeites de cabelo que eu tinha!
Nesse dia não ganhei sorvete e o olhar de meu avó era indefinido. Na verdade, transparecia preocupação, quem sabe ele nem tinha avisado a tal mamãe de que eu estava indo... e de repente ela escolheria o potinho de ouro e não a mim, lá no fim do arco-íris que tantas vezes eu vira. Era um risco que somente eu teria que correr. Não tinha como voltar atrás. O vovô estava tão confiante que passei a acreditar que ele estava certo. Tinha chegado minha hora de fugir do céu.
Um abraço apertado e um leve beijo foi dado em minha testa. Notei uma a lágrima na despedida. Os adultos são realmente estranhos. Primeiro, nos dão asas pra voar. Depois choram por terem nos deixado partir. Vai entender a linguagem dos adultos!
Foi tudo tão rápido que quando percebi, eu já estava na frente do tobogã que era o portal entre o céu e a terra. Enquanto todos se posicionavam para a chamada do dia, vi o consentimento do vovô e não exitei nem por um momento, nem no instante em que alguém gritou: olha, uma menina está furando a fila para o nascimento!
Já era tarde demais, lá ia eu infringindo a primeira lei do céu. Eu não tinha sido escolhida, eu tinha decidido nascer e para isso eu tinha que ganhar a corrida da vida. Simultaneamente, as curvas do imenso tobogã me causavam enjôo e felicidade, vi nos momentos em que eu estava no alto, que milhares de cabeças se posicionavam na beira do arco-íris. Eram elas, as futuras mãezinhas!
foi então que o medo tomou conta de mim. Muitas delas, escolheriam os potes de ouro, deixando as crianças caídas no chão. Como eu era a primeira da fila e atrás de mim vinha um enxame de crianças descendo, como eu iria saber se ela, a da casa de telhado cor de esperança me escolheria ao invés dos potes de ouro que eu via lá de cima?. Entao me arrependi da ousadia, mas era tarde demais. Não havia como voltar pro céu. Só me restava fechar os olhos e cair.
Qual foi minha surpresa quando abri os olhos e vi uma delas bem lá do fundo, correr feito louca em direção ao lugar que eu iria cair. Pude apenas descansar em seus braços no momento que ela chorava ao me ver. Foi amor a primeira vista. Nem sei porque eu tanto gritava no aconchego de seus braços.
Eu era seu presente de Deus, mesmo não estando na fila. Ela não tinha escolhido o pote de ouro como tantas outras!
Foi então que, enquanto ela dormia, tive a ideia de escrever rapidinho a história da primeira corrida que ganhei, a corrida de minha vida.Tive medo de demorar a escrever e esquecer como vim ao mundo, pois isso de esquecer é coisa de adultos. Tive medo de minha mãe dizer que eu tinha sido encontrada no pé de cebolinha... Então eis me aqui em forma de palavras num pote d'ouro.