O CISNE DE TUONELA

O CISNE DE TUONELA

(Recolhido do Kalevala finlandês por Elias Lönnrot e popularizado através do poema sinfônico Tuonelan Joutsen, de Jan Sibelius, versão poética em português de William Lagos,

22 AGO 2012)

O Cisne de Tuonela I

Um negro cisne nada pelas águas, ao redor,

do escuro lago da terra dos mortos, no cinzor

de Tuonela,

em que reina Tuoni, dos deuses o senhor;

e ali vigia qualquer chegada de invasor

e brada o aviso.

Fica a ilha no interior de um vasto lago,

por ele nada o cisne, sem afago,

e trombeteia,

para avisar os deuses quando um mago

descer consegue ao tenebroso pago:

o Mundo Inferior.

O shaman Lemminkäinen segue o rio,

chamado de Tuoni,em puro desafio

ao deus sagrado;

percorre a terra do tremendo frio,

seu coração se aquece com seu brio,

em sua missão.

Lemminkäinen se apaixonou por Loviatar,

uma das filhas que Louhi, após gerar,

trouxera ao mundo,

que amor lhe prometeu, sem vacilar,

porém seu dote ele teria de pagar

à mãe-rainha.

O Cisne de Tuonela II

Era Louhi de Pohjuola ama e rainha,

ao norte da Lapônia, terra vizinha

de Ita-Karjala,

capaz de transformar-se em avezinha,

em rena ou loba ou na fera mais mesquinha,

a transmogrifa.

Que além de tudo,também era feiticeira,

cada filha uma perversa fiandeira

da vida humana;

não tinham pai, da última à primeira,

tinham da mãe a natureza inteira,

menos a alma.

Mesmo dotadas da maior beleza,

capazes de seduzir, com esperteza

crepuscular;

Louhi as criara na maior vileza,

de um caldeirão que continha, com certeza

restos humanos.

Elas viviam tão só para a servir,

sem ter vontade própria, sem luzir

no azul olhar;

mas quando a mãe queria um homem atrair,

ordenava a uma filha amor fingir,

para matá-lo.

O Cisne de Tuonela III

E então da filha vinham pedir-lhe a mão

e ela impunha, por seu dote,condição

quase impossível.

Muitos heróis se perderam, na ilusão

de cumprirem tal tarefa, em sua paixão,

e assim morriam.

Lemminkäinen nem de longe era o primeiro;

dos anteriores,até o derradeiro

havia falhado,

nessa busca de tesouro alvissareiro,

como a coroa de rei forte e altaneiro,

que não a dera.

E a Tuonela já outros enviara:

cada um na busca da giesta fracassara,

reunido aos mortos;

por isso Tuoni o seu cisne colocara

de sentinela, com sua voz preclara,

como atalaia.

E Louhi, pretendendo sentir pena

do herói formoso, representou sua cena,

contando a saga

dos valentes que enviara à sua condena;

que fosse embora, de seu trono acena,

guardar sua vida.

O Cisne de Tuonela IV

Naturalmente, Lemminkäinen não desiste,

mas pela mão de sua donzela insiste,

cego de amor;

Louhi então determina, para que a conquiste,

um feito d’armas de resultado triste:

que mate o cisne!

E que traga seu cadáver para ela,

se realmente quer a mão de sua donzela:

não será fácil.

Por um momento, seu coração congela,

mas recordando o rosto de sua bela,

o herói aceita.

Embora que matar um cisne seja

sempre origem de uma sorte malfazeja:

quem o mata, morre!

Ainda mais um cisne que assim esteja

em Tuonela,onde a morte a todos beija...

Porém não teme.

Então Lemminkäinen, por amor de Leviatar,

jura que ao próprio Tuoni irá enfrentar,

com seu valor...

“Tarefa bem mais simples quis-lhe dar,”

disse-lhe Louhi. “Deixe Tuoni em seu lugar,

basta-me o cisne...”

O Cisne de Tuonela V

Assim o amor por Leviatar o envenena

e de matar o cisne sagrado não tem pena,

um ser transcendental;

e ao sacrifício, a si mesmo se condena,

pensando até que a tarefa era pequena:

temia algo pior...

E sendo um mago, ele desceu ao submundo,

pela cratera de um vulcão profundo,

do mar se erguendo;

e na jornada enfrentou rei iracundo,

saltou abismos, cruzou pântano imundo,

mas lá chegou...

E depois das peripécias da jornada,

chegou enfim do cisne em sua morada

e lá o encontrou.

Adormecido parecia e na empreitada,

lançou o olhar ao redor, numa sondada

por armadilhas.

Pois suspeitava de Louhi uma traição:

talvez erguesse contra ele a própria mão,

em sua perfídia;

ou Leviatar transformasse, em ilusão:

ao invés de cisne, mataria sua paixão...

Mas nada viu.

O Cisne de Tuonela VI

E ali estava o cisne, a cochilar...

Uma presa tão fácil de matar...

Seria verdade?

Louhi quisera talvez só o experimentar

e a mão de sua querida Loviatar

já estava a seu alcance?

Olhou o cisne extremamente belo,

só via ao longe a silhueta do castelo

do deus Tuoni.

Era mal feito matar o pássaro singelo,

mas esse o preço a pagar por seu desvelo,

que mais valia...

E ergue com as duas mãos a longa espada...

Mas nesse instante, qual surge do nada,

se escuta um canto...

Melancolia lhe recobre a alma airada:

a voz do cisne,em melodia desolada

e irresistível...

Porque esse cisne interpreta o esplendor

de toda a vida humana, de ódio e amor

e de lamento,

tudo que o homem quer de mais valor

durante a vida, na morte, em meio à dor,

tesouro e perda...

O Cisne de Tuonela VII

Realmente Louhi preparara uma armadilha:

ao lhe cobrar o cisne morto pela filha,

seu coração cortava...

Fica Lemminkäinen imóvel sobre a ilha,

enquanto o canto atravessa milha a milha,

até o palácio...

Matar aquele pássaro é impossível,

o dote requerido é inatingível:

sequer se move,

sob o poder dessa canção incrível,

contendo quanto há de imarcescível

na vida humana...

Porém do cisne a voz chega ao castelo

e Tuoni ergue, furioso, o seu martelo

e bate o gongo.

O som escuta então o cisne belo,

metamorfoseia sua canção em gelo,

de som mortal...

Sente Lemminkäinen partir-se o coração,

mas é um shaman e entoa outra canção

de autodefesa.

Vence o feitiço com o suflar de seu pulmão,

mas inda que vença do cisne a encantação,

matar não pode.

O Cisne de Tuonela VIII

E então Tuoni ordena a seu arqueiro,

seu filho cego,mas de mirar certeiro

que o trucide.

Chegam as flechas ao alvo bem ligeiro,

mas Lemminkäinen tem o dom do feiticeiro

e não o atingem.

Tuoni então convoca e ordena à cobra d’água,

seu gongo novamente em tom de frágua,

que o morda e mate.

Contra o veneno da cobra, por sua mágoa,

Lemminkäinen encantamento não deságua

e cai ferido.

Ele conhece contra serpentes proteção

ele canta contra venenos contenção,

mas nada adianta.

Canta-lhe o cisne então desilusão

e ele mergulha nas águas, seu pulmão

se enchendo delas...

Cumpre-se assim de Louhi sua traição,

Lemminkäinen se afoga, sem perdão

e se estilhaça

contra os rochedos e recifes que ali estão,

em mil pedaços de impossível construção,

esfacelado...

O Cisne de Tuonela IX

Äiti Elitha seu filho espera em vão,

sente bater inquieto o coração:

está em perigo!

O caçador passava longa duração

sem retornar ao teto da mansão

da mãe viúva.

Mas desta feita algo de ruim aconteceu...

Também ela é feiticeira, porém seu

lençol de runas

nada lhe diz sobre o filho que perdeu;

não há canção que revele o que ocorreu,

nem suas corujas.

E a idosa Äiti se põe a procurar,

pelas florestas escuras põe-se a errar,

ao sul dos lagos,

nas vastidões do norte a pesquisar,

por entre pedras e líquens a buscar,

sem achar nada...

Envia corvos para estranhas terras,

regiões de paz, entre nações em guerra,

mas nada acham;

gatos selvagens envia para as serras,

sonda os segredos do abismo em suas encerras,

sem ver sinal...

O Cisne de Tuonela X

Então vai ter com Paimen, o Pastor,

que cuida dos rebanhos, com ardor:

pede-lhe ajuda.

Hyvä Paimen a recebe sem calor,

seu filho fora um grande caçador

dos que protege...

Mas reconhece nela a vera dor:

bate no solo com o cajado de pastor

e chama as renas.

“Sabem de Lemminkäinen, o Caçador?”

“Muita vez entre nós semeou pavor,

mas não agora.”

Hyvä Paimen bate o cajado novamente

e chegam ursos, com seu peito imponente,

os ursos brancos.

“Lemminkäinen perseguiu-nos com frequente

fúria... e para nós foi inclemente,

mas não agora.”

Hyvä Paimen ergue o cajado para o ar,

aves e pássaros achegam-se, a pousar,

no velho báculo.

“Já muita vez Lemminkäinen vimos passar,

lá das alturas,acompanhando seu andar,

mas não agora.”

O Cisne de Tuonela XI

Hyvä Paimen suspirou. Äiti ainda mais.

Foram à beira do mar e aos naturais

chamaram todos.

Pois ao cajado de Paimen, ademais,

nenhum cardume se ocultou jamais:

logo acudiram.

E se reuniram ali, dos sete mares,

como voaram os pássaros dos ares

a seu chamado.

“Lemminkäinen já de nós matou milhares

e devorou nossos filhos, sem pesares,

mas não agora.”

Hyvä Paimen então ergueu-se, pesaroso:

“Nada posso fazer pelo formoso

filho de teu ventre.

Algo funesto ao caçador famoso

ocorreu. Qualquer destino pavoroso;

e está perdido.”

“Porém decerto há de estar em algum lugar!”

“Não nesta terra, no mar e nem no ar,

digo-te adeus,

pois compartilho do teu lamentar,

porém meus filhos devo apascentar,

de noite e dia.”

O Cisne de Tuonela XII

Äiti esperou até surgir a Lua amarela.

“Teu filho não encontro,” disse a bela.

“Não está na noite.”

A cada estrela dirigiu-se ela,

em sua prata bruxuleante como vela,

sem ter resposta.

Äiti Elitha esperou o Sol descer,

pois lá do alto não queria responder,

até o Poente.

E se prostrou na montanha para o ver

e o sol vermelho a acabou por perceber

e o interrogou.

“Meu filho Lemminkäinen, o Caçador,

Podes dizer-me onde está, Sol, meu senhor?

Ninguém mais sabe...”

O Sol perdeu um pouco o seu fulgor:

“Minha notícia só vai causar-te dor,

pois está morto.”

“Eu já o temia, poderoso Sol,

mas diz-me tu, das terras o farol,

onde está seu corpo?”

“Ele se encontra de Tuonela no atol,

desfeito em mil pedaços. No arrebol,

eu o vi assim...”

O Cisne de Tuonela XIII

Foi Elitha pedir ao deus ferreiro,

Ilmarinen, que lhe forjasse, bem ligeiro,

mágico ancinho.

Haste de bronze, punho de cobre inteiro,

dentes de aço... E o divino caldeireiro

logo a atendeu.

Com seu rastilho e cantando sua magia,

Elitha Äiti até Tuonela conseguia

descer sozinha...

E sobre as águas, em placidez de fantasia,

estava o cisne, que dormir fingia,

mas de tocaia.

Porém a mãe lhe falou diretamente:

“Cisne de Tuonela, que aí vogas contente,

onde tens meu filho?”

E esternutou a ave, de repente,

para alertar os deuses, em seu potente

e forte trombetear.

Então surgiu-lhe Tuonen Tyttö, a bela dama,

que a alma dos mortos para si conclama

à vida futura.

“Dama da Morte, por favor, dá-me essa chama

que é a alma de meu filho e que reclama

meu sofrimento.”

O Cisne de Tuonela XIV

Mas respondeu-lhe Tyttö, com pesar:

“Não posso a chama de teu filho dar:

não está comigo.

Vi seu corpo, em mil pedaços, a flutuar,

sua chama estraçalhada a conservar,

por entre as algas.”

“Porém te posso dar uma esperança:

teu filho, para ti, é uma criança,

grande que seja.

O lago é um ventre que a memória alcança,

seus pedaços se encontram, sem mudança,

recolhe-os, pois...”

“Em nada experimentaram a corrupção,

nenhum peixe fez deles refeição,

não o permiti.

Não estão mortos, tampouco vivos são

esses pedaços que no lago estão,

mas são milhares.”

“Se os reunires, recobrarás a chama,

rejuntarás escama por escama,

osso por osso;

por cola o âmbar que destila a flama

de tuas lágrimas e teu amor reclama:

é tua a tarefa.”

O Cisne de Tuonela XV

Äiti Elitha pôs as mãos à obra,

com toda a força e coragem que lhe sobra

e um a um

os pedaços de Lemminkäinen ela recobra

osso e tendão. E ao cisne mesmo cobra

que a auxilie.

O cisne se põe a cantar nova canção

e os fragmentos que no fundo estão

sobem aos poucos;

e aqueles antes levados de roldão,

pelas águas da corrente, em turbilhão,

também retornam.

Äiti Elitha agradece em profusão:

“Tuonelan Joutsen, eu te dou o me perdão,

porque o reuniste.”

Com seu ancinho ela draga a confusão

de pedaços amontoados, sem razão,

em triste pilha.

E quando sente que todos já reuniu

começa o corpo desse filho que pariu

a rejuntar

e Joutsen lhe aponta,em grande brio,

com bico e penas os pedaços quando viu

o ponto certo.

O Cisne de Tuonela XVI

Depois o cisne, lentamente, se afastou,

quando o corpo recomposto se mostrou,

ainda aos pedaços.

Äiti Elitha canções de cura ali entoou

e a pouco e pouco o corpo rejuntou,

sem cicatrizes.

Porém seu coração sequer batia,

respiração seu nariz não expelia,

por mais tentasse.

Que a chama ali se achava pressentia,

presa no corpo que na praia se estendia,

mas não vibrava.

De novo a Tuonen Tyttö suplicou;

ao próprio Tuoni em seu castelo visitou,

porém em vão.

Então os deuses da vida ela invocou,

porém nenhum para ajudar se apresentou:

não tinha alcance.

Lemminkäinen não sofrera real morte,

porém da vida já fugira à sorte...

Não pertencia

a quem a vida termina com seu corte,

a quem conserva o corpo vivo e forte:

era um banido.

O Cisne de Tuonela XVII

De Louhi ele sofrera a maldição!

Äiti invocou a imensa multidão

das criaturas,

mas nem pássaro, nem planta em brotação,

nem animal, nem peixe, compaixão

mostraram dela...

Mas, finalmente, tem pena da mãe velha

uma pequena e insignificante abelha,

que lhe promete

subir aos céus de luminosa telha,

cruzar dos astros a intrincada relha,

para ajudar.

E assim cumpre o prometido a abelhinha,

zumbindo as asas, até que se avizinha

das nuvens brancas.

Galgando o céu azul que atrás continha

o céu de Ukko e ainda a criaturinha

sobe mais alto.

No ombro de Órion se põe a descansar,

da Grande Ursa na cauda vai pousar

e voa mais além,

até a mansão de Jumalla demandar,

que céus e terra um dia quis criar

e que os conserva.

O Cisne de Tuonela XVIII

Porém nem vê a abelha o Criador:

ocupado demais no seu labor,

sequer a escuta.

Mas a abelhinha prossegue, em grande ardor,

até encontrar, pelo faro e por sabor,

jarrão de mel.

Logo sabe ser aquele o Mel da Cura

e nas patinhas da frente traz, segura,

uma só gota...

E voa então, através de dor e agrura,

pelas estrelas, pelo céu e à sepultura

do Inferior Mundo.

Pousa então, já exausta, a abelhinha,

sobre a testa daquela fiel mãezinha,

trazendo o mel.

Äiti Elitha reconhece a criaturinha

e abre a boca do filho que mantinha

junto a seu peito.

E a abelha ali depõe a gota de mel,

reluzente e dourada de ouropel,

o Mel da Vida...

E Lemminkäinen perde a cor de fel

e a um rosado nessa hora dá quartel

seu rosto forte.

O Cisne de Tuonela XIX

Seu corpo recupera o movimento,

já lhe bate o coração, recobra o alento

e então acorda...

Mas neste instante lhe retorna o pensamento

e solta longo brado de lamento

por Tuonela.

Porque sua vida lhe traz o conhecimento

e recorda exatamente o sentimento

que ouviu do cisne.

A vida inteira, em seu ressentimento,

as buscas vãs e todo o julgamento

de seu destino...

Conhece os sonhos da Ilha da Morte,

toda a amargura que reveste a humana sorte

e o sofrimento.

Já reconhece da tristeza o porte

e ao cisne então perdoa que lhe aborte

suas ilusões...

Para no instante final desesperar

de seu amor pela bela Leviatar,

mulher sem alma;

vê que de nada lhe valera seu penar,

sem vida ou morte ainda querendo conquistar

a mão da fada.

Epílogo

E o caçador para a Terra retornou,

de braço dado com a mãe que tanto o amou,

muito mais sábio.

Muitas mulheres ainda conquistou,

mas para o amor para sempre conservou

vazio o coração.

Até que um dia a Tuonela retornou,

após cumprir todo o fado que o tocou.

E lá se encontra

ainda o cisne que tudo lhe mostrou

e a cada humano que chega ainda sondou

com sua canção.