A CINDERELLA DE JOHANN STRAUSS JÚNIOR

A CINDERELLA DE JOHANN STRAUSS JR.

(Baseado no libreto em prosa de Carl Colbert para o balé de StrauB,

em versão poética de William Lagos, 8 AGO 12)

CINDERELLA I

No Carnaval de mil e novecentos,

havia em Viena um ateliê de costura,

em que faziam mil e um ajustamentos

nos vestidos que então eram vendidos

na grande loja de departamentos

denominada de As Quatro Estações,

por seu dono, Gustav Holz, bem geridos

e frequentados por grandes multidões...

Gustav Holz era um jovem empreendedor

que recebera uma pequena herança

e a multiplicara com grande labor,

até virar um verdadeiro milionário;

seu irmão Franz era só um gozador:

desperdiçara a sua parte com paixão,

em seus caprichos bastante atrabiliário,

vivendo agora sustentado pelo irmão.

As empregadas do estabelecimento

precisavam se esforçar mais nessa época;

numa semana chegaria o momento

de festejar em Viena o Carnaval:

era uma época de grande movimento,

em que ajustavam chapéus e fantasias

e os “dominós”, indumentária natural,

que pelos bailes então em geral vias...

Eles cobriam dos pés à cabeça,

enquanto o rosto escondiam com a máscara.

Era costume divertir-se, pregar peça

ou namorar, durante a mascarada,

sem revelar-se a identidade dessa

pessoa, que se sentia protegida,

mesmo estando por baixo fantasiada:

dava o ajuste dos vestidos grande lida...

CINDERELLA II

A gerente da oficina de costura,

Madame Leontine, era viúva,

com duas filhas e tratava com agrura

a jovem Grete, que era sua enteada.

Do marido se lembrava em amargura,

pois lhe deixara bem pequena herança...

Tratava a jovem como sua empregada

e lhe cortava o menor fio de esperança.

Fora forçada Leontine a trabalhar

e como o pai de Gustav fora amigo

de seu marido, o fora procurar,

explicando a situação em que se achava.

Gustav se dispôs logo a ajudar

e ofereceu-lhe o emprego de gerente,

dizendo que as três moças contratava,

pois precisava mesmo de mais gente....

As duas irmãs acompanharam Grete

para o serviço executado na oficina.

Muito feia era Francine e mais Yvette,

mas para a mãe não o eram realmente,

que as tratava a pão-de-ló e confete,

porém a Grete com desprezo e ironia,

pois sua beleza era a todos evidente,

chamando sempre a atenção aonde ia.

Desse modo, a pobre Grete trabalhava,

sem que Leontine se mostrasse satisfeita

e de quanto ela fazia, reclamava;

sempre vestida em pano cinza, de algodão,

a própria Gata Borralheira recordava...

E assim as irmãs a chamavam Cinderella,

pelo despeito de seu coração...

Pegou o apelido na pobre da donzela!...

CINDERELLA III

Mas embora a chamassem Cinderella

e de muito boa vontade ela atendesse,

suas colegas gostavam muito dela,

por seu bom gênio e disponibilidade.

Já as duas irmãs repassavam para ela

todo o serviço que deviam executar

e se portavam com as outras, na verdade,

qual se tivessem todo o direito de mandar!

Assim, elas atendiam às clientes,

mas os consertos repassavam para Grete

e se as medidas saíssem diferentes,

era só dela Leontine a reclamar...

Passavam o resto do tempo bem contentes,

os vestidos e os chapéus experimentando;

e se alguma das outras fosse reclamar,

com demissão ia Leontine ameaçando!

Mas a beleza de Grete logo atraia

a atenção de Franz, o gozador.

Com galanteios ele sempre a seduzia,

sem acreditar ser por ela rejeitado;

e por todo o ateliê a perseguia

e por mais isso Leontine reclamava:

que seu trabalho estava sendo abandonado

e com variadas punições a ameaçava!...

Pois preferia as outras duas empurrar

para Franz, que não estava interessado;

o espertalhão sabia bem admirar

da pobre Grete a grande formosura

e também de Cinderella a quis chamar,

porém no bom sentido, em galanteio:

“Ressalta o cinza a sua beleza pura!...”

Mas em Grete despertava só o receio...

CINDERELLA IV

E como a bela Grete se escondesse,

Madame Leontine foi-lhe apresentar

Francine e Yvette, pois talvez se desse,

que uma delas despertasse sua atenção...

Sem conseguir que o rapaz se demovesse,

pois quanto mais Cinderella se esquivava,

mais o rapaz insistia em sua paixão;

contudo Grete em nada o entusiasmava...

Mas antes de sair, revelou Franz

que seu irmão Gustav daria um baile,

destinado só às mais belas e elegantes

e que enviaria a Grete o seu convite...

“Mas vestidos eu não tenho interessantes...”

“Pois lhe prometo mandar a fantasia!”

Na sedução que o coração lhe agite,

ficava Grete sem saber o que fazia...

Mas Leontine saltou na mesma hora:

“E os convites de Yvette e de Francine?”

O jovem Franz prometeu-lhe, sem demora,

que para todas convites mandaria;

mas bem depressa foi saindo embora,

porque teria de convencer o irmão...

quatro convites ele jamais conseguiria

e se metera em outra bela confusão!...

Pouco depois que Franz se afastou,

bateram de leve à entrada da oficina;

e quando a porta foi aberta, penetrou

Piccolo, o valete de seu proprietário,

com três convites, que lhes apresentou

para o baile do sábado, mais três dominós

para as três moças; mas em gesto atrabiliário,

Leontine disse que suas filhas não iam sós.

CINDERELLA V

E que o terceiro convite seria dela!

Ficou o valete de Gustav atrapalhado:

“Mas um é para a Senhorinha Cinderella...”

“As minhas filhas eu irei acompanhar;

e um convite seria inútil para ela,

pois não dispõe de um vestido para ir!”

“Mas aqui mesmo não pode um arranjar?”

“São das clientes e não se pode prescindir!”

O criado saiu bem desapontado

e mais ainda ficou a pobre Cinderella.

As duas irmãs troçaram dela um bom bocado

quando suas lágrimas começaram a escorrer.

“Pensou que Franz estivesse apaixonado...?”

“Piquei o dedo, por isso estou chorando...”

“Pois então trate de mais cuidado ter,

senão acaba esse vestido me manchando!...”

Chegou o sábado e, ao cair da noite,

foram embora as outras costureiras...

“Você espere na oficina, sem afoite,”

disse Leontine, “até a tarefa terminar!

“Caso contrário, vai conhecer o meu açoite,

que costumo guardar atrás da porta!

E só depois vá para o sótão se deitar,

mas veja bem como sozinha se comporta!...”

Mas o valete também trouxera chinelinhos

de pano de ouro, acompanhando os dominós:

dois pares grandes e uns mais pequenininhos,

que nos pés da madrasta não serviram,

pois eram feitos na medida dos pezinhos

da jovem Grete, que era pequena e delicada...

Então as irmãs pela janela os dois atiram

e Cinderella ficou sozinha e abandonada...

CINDERELLA VI

Foi à vidraça e olhou pela janela;

as sapatilhas de ouro rebrilhavam

sobre a calçada, muito longe dela...

E se as pegasse? Mas de nada adiantaria:

não tinha roupa de baile a Cinderella...

Somente seus vestidos de algodão,

naquele cinza triste, permitia

a sua madrasta em qualquer ocasião.

Mas pousaram então no peitoril

pequenas pombas cinzentas que cuidava

e ela contou-lhes seu destino vil...

Saíram as pombas, numa revoada

e lhe trouxeram, em arrulhante ardil

as duas sapatilhas até a janela!...

Grete ficou bem comovida e encantada,

que ambas serviam exatamente nela!...

E começou a dançar pela oficina,

esquecido seu vestido tão grosseiro,

meio conforme com sua triste sina...

Tomava como par os manequins...

Mas no momento em que ante o espelho inclina

novas batidas à porta a assustaram!...

Tirou os chinelos e calçou seus borzeguins,

enquanto as pombas se assaralhufaram...

“Quem é?” ela indagou, diante da porta.

“A minha madrasta me trancou aqui...

Volte depois, se a senhora não se importa,

Não tenho chave e não lhe posso abrir...”

Mas seus protestos voz de homem corta:

“Acontece que eu possuo a duplicata...”

E logo Piccolo penetrou, a sorrir:

“O meu patrão a sua ausência não acata...”

CINDERELLA VII

Em um dos braços duas caixas lhe trazia;

uma continha um belo dominó

e na segunda, um vestido se escondia,

de uma princesa egípcia encantada,

enquanto um novo convite lhe estendia...

“Foi Franz que o mandou?” perguntou ela,

sentindo-se ainda bastante encabulada.

“O Amo Gustav é que mandou à Cinderella!...”

Ora, Gustav era sua paixão secreta,

mas não pudera por um instante ousar

que para ele pudesse ser dileta:

um homem rico e, afinal, o seu patrão!

Falou o criado, para sua alegria completa:

“Ele disse que quer dançar só com a senhora,

que há tempo a guarda em sua imaginação...

Ponha o vestido, que já está na hora!...”

A bela Grete se trocou muito depressa

e pôs por cima do vestido o dominó:

capuz e máscara ocultavam-lhe a cabeça...

Então Piccolo, com respeito, deu-lhe a mão;

na rua aguardava já uma caleça,

com dois cavalos negros e um cocheiro;

trazia nas portas de Gustav Holz o brasão...

E o coche disparou, já bem ligeiro...

A pobre Grete nem sabia o que pensar:

nunca tivera um vestido assim bonito!

Estava na caleça do patrão a viajar,

com seu criado a lhe mostrar tal deferência!

E logo as luzes da mansão viu a brilhar;

subiu a escada nas sapatilhas douradas,

o valete a acompanhá-la, em imponência

e as damas todas ficaram admiradas!

CINDERELLA VIII

“Mas quem é esta que chegou, toda elegante?”

E logo se ajuntaram os cavalheiros,

a lhe pedirem uma dança, nesse instante;

tomou nota de seus nomes num carnê,

como era o costume então reinante...

Mas veio Franz a tentar monopolizá-la,

fantasiado de pirata, porém ela fácil vê

quem é aquele que pretende conquistá-la...

E se recusa, indicando-lhe suas irmãs...

Mas vem Gustav e aceita-lhe o convite...

Franz retorna, em tentativas vãs,

e a bela Grete se afasta deles dois,

o dominó lança ao ar, para seus fãs,

mas Piccolo é o primeiro a segurar

e ela se põe a dançar, logo depois,

usando um véu, para o rosto não mostrar...

E naquela fantasia resplendente,

um solo executa, como escrava egípcia

e enfim se arroja ante Gustav, bem contente...

Franz de novo procura levantá-la,

mas só ao amparo de Gustav ela consente...

Franz se afasta com as irmãs para o bufê,

mas ela fica, com Gustav a contemplá-la,

que lhe ergue o véu e seu rosto logo vê...

Gustav, então, lhe confessa seu amor,

mas antes que responda, os outros chegam...

Como Rainha do Baile, com vigor,

eles a aclamam e ela então é conduzida

ao redor do salão, com todo o ardor

dos cavalheiros que estão em seu carnê...

Mas a seguir, por Gustav é requerida,

seu irmão cheio de inveja, já se vê!...

CINDERELLA IX

Gustav, então, a leva até o balcão,

onde procura, por sua vez, beijá-la...

Mas segue Franz atrás de seu irmão,

cheio de raiva por ter sido rejeitado;

para arrancar-lhe o véu estende a mão,

porém Gustav o impede, firmemente,

e Franz o ataca, já meio embriagado...

A pobre Grete assiste a briga, descontente...

E num impulso, sai correndo do salão,

deixando para trás a sapatilha,

porém Piccolo já a aguarda no saguão

e a conduz, de dominó, até a caleça...

Gustav e Franz atravessam a multidão,

mas só enxergam as lanternas da traseira...

Porém Gustav se ajoelha, bem depressa,

e se apodera do chinelinho, a mão certeira...

Leontine a tudo assiste, enciumada

e o baile acaba ao soar da meia-noite!

Entra com as filhas na carruagem alugada

e as três voltam para casa, bem depressa...

Não é que esteja de Grete desconfiada,

mas sua raiva descontar nela queria:

se descobrisse ainda faltar alguma peça,

com seu açoite na enteada bateria!...

Grete chegara ainda mais depressa,

que estava ansiosa para acabar o seu labor!

Olhando em torno, a surpresa nunca cessa,

pois suas pombinhas haviam feito sua tarefa!

Piccolo trancou-a de novo e, sem mais essa,

ela escondeu o vestido e o dominó

e no regaço colocou a última peça,

para fingir que completara tudo só...

CINDERELLA X

Logo depois, a coitadinha adormeceu,

para acordar a seguir, num sobressalto,

quando os passos da madrasta percebeu,

que girou a chave na porta, bem depressa...

“Está dormindo? Do trabalho se esqueceu?”

“Não, madrasta, já está tudo terminado...”

E Leontine, apesar de sua promessa,

não pôde usar o chicote pendurado...

Mas o serviço examinou com atenção,

sem conseguir encontrar um só defeito...

“É, mas só fez a sua obrigação!...”

E foi subindo para o seu apartamento,

que ficava logo em cima do salão,

em que Gustav a recebera, de favor,

embora a ingrata, no seu ressentimento,

nunca dissesse uma palavra em seu louvor...

Grete esperou que as três adormecessem

e com um pacote subiu a seu quartinho,

esperando que depressa se esquecessem:

levou o vestido, o dominó e os chinelinhos,

esperando que os sonhos a aquecessem...

Soprava o vento pelas fendas do seu teto,

seu cobertor era cheio de furinhos

e dormia encolhida e sem afeto...

Durante a noite, sonhou com casamento,

que Gustav a pedira em matrimônio,

seu vestido do mais fino acabamento,

a igreja cheia de muitos convidados...

Mas no momento de prestar o juramento,

a pobre se acordou, num sobressalto;

piara um corvo por cima dos telhados:

fora apenas um sonho, sem ressalto...

CINDERELLA XI

No outro dia, se levantou bem cedo,

pois precisava preparar o café...

De se atrasar sempre tinha um certo medo,

porque a madrasta se acordava em mau-humor

e a puniria pelo menor enredo...

Mas era domingo e acordaram tarde;

ela limpou o apartamento com vigor,

mas sem fazer barulho e sem alarde...

Contudo, ao soar do meio-dia,

bateram à porta e lá se foi ela atender:

mas eram Piccolo e Gustav que ela via!?

“A madrasta ainda está dormindo...”

Mas Leontine, que do quarto ouvia,

chegou depressa, para os cumprimentar.

Sem perder tempo, foi Piccolo pedindo:

“Traga as meninas, para experimentar...”

“A sapatilha foi no baile abandonada...”

“Mas as meninas ainda estão dormindo...”

“Pois o teste vou fazer, sem mais tardar!”

disse Gustav, bastante seriamente.

Ela chegaram, cada qual estremunhada,

mas o chinelo, naturalmente, não serviu.

E Gustav falou então, severamente:

“Que experimente Grete!” ele exigiu.

E é claro que assentou perfeitamente.

Gustav já chamara um escrivão

e o casamento se realizou rapidamente,

pois queria levá-la à sua mansão,

para tirá-la da madrasta, incontinenti...

Daí a um mês, casaram-se na igreja,

com toda a pompa e sacramentação

e tudo o mais que nas bodas se deseja!...

EPÍLOGO

Foi Franz sentar praça em regimento

e Leontine continuou como gerente,

obedecendo, após o casamento,

à bela Grete, que era agora a sua patroa...

De raiva, pôs as filhas num convento,

porém Gustav convenceu dois funcionários

a desposá-las, em troca de uma boa

recompensa, dotes extraordinários!...

Compraram casas, com dinheiro de contado,

mas lá tiveram de fazer todo o serviço!...

E ao se mudarem, cada uma para um lado,

Ficou Leontine morando só no apartamento!

Para ajudarem de seus filhos no cuidado,

Grete levou suas pombinhas à mansão,

Que retribuíram seu terno sentimento

Durante todos esses anos que lá vão!...