O Menino

Tão displicente e maltrapilho

Ele andava na calçada deserta

Em passos incertos de andarilho

Olhar de quem cedo pro mundo desperta.

Olhou-me assim tão tristemente

Revelando angústia e sofrimento

Por que passava no momento

Mas depois sorriu alegremente.

Num pranto sufocado e melancólico

Reclamou rapidamente do sofrimento,

Num sotaque singelo de menino bucólico,

E da fome danada que sentia no momento.

Reclamou do seu modo de vida

Do seu jeito de andar imundo

Sempre vagando pelas ruas do mundo

Devido à pobreza ingrata e atrevida.

Abriu-se pra mim tão displicente

Como se eu fosse seu confessor

Folheou seu diário de menino inocente

Como se o folheasse a um professor.

Criticou brevemente as classes sociais

Por não lhe darem nem um pouco de atenção

Muito menos sequer lhe estenderem a mão

Por isso vivia perdido, como os marginais.

Reclamou da brutalidade dos pais

Da polícia que não protege os meninos

Dos mendigos, dos bebuns e dos marginais

Que judiam sem dó e piedade dos pequeninos.

Abusando da impunidade, maltratam os rebentos

Transformando-os em bastardos, bandidos e briguentos

Perseguem os menores e batem neles até que piram

E algum pouco que ganham, desse pouco eles tiram.

- Se eu quisesse, seu moço - desabafou

- Saía pelo mundo fazendo maldade

Mas não sou disso, não, seu moço - e até chorou

- Porque dentro de mim só existe bondade.

- Mas se eu fosse mau, seu moço, queria ver a cara deles

Batia neles. Iam me mandar pra onde, pro Carandiru?

Ah! Eu fugia de lá, voando que nem peru

Voava pra bem longe e depois só ria da cara deles

Eu ia lhe dizer que peru é ave que não voa

Melhor seria se voasse nas asas de um condor

Mas achei que não seria nem um pouco uma boa

A piada que faria, pois não abrandaria sua dor.

Preferi rir por vê-lo engraçado

Também para que se alegrasse

Pensando num meio, se é que encontrasse

De tirá-lo desse destino desgraçado.

Condoído tristemente com sua dor

Descobri que igualzinho a ele eu sou

Seguir meu caminho agora eu vou

Pobre desse menino que não tem amor.

- Agora vou circular por aí, vou vagar – disse ele

Vou pedir esmola a esse mundo ingrato

Foi bom, seu moço, te encontrar por aqui

Me livrou da fome, me pagando um prato.

De comida quentinha que faz dia eu não via

Ainda bem que o sinhô não é dessa gente ingrata

Que nada dá pra menino comer e ainda maltrata

Não escuta menino de rua e, com medo dele, desconfia.

O lugar onde durmo é lá bem longe, seu moço

Onde passa o trem, debaixo de um viaduto

Lá muito barulho seu moço, a toda hora eu ouço

E sinto água gelada que pinga em meu rosto, de um duto.

Que me deixa com frio e todo molhado

E de madrugada acordo e com medo espio

Pra ver se não tá subindo a água do rio

Porque quando ela sobe eu fujo, apavorado.

Antes de ir-me embora eu me despedi do menino

Que vive sozinho na rua, sem comer e sem estudar

Perdido entre arranha-céus, seguindo o destino

Que a vida (ou a sorte) lhe quis reservar.

José Guimarães e Silva
Enviado por José Guimarães e Silva em 14/02/2007
Reeditado em 22/03/2007
Código do texto: T380752