A RAPOSA E A CEGONHA

A RAPOSA E A CEGONHA I – 28 jul 12

(Folclore francês, do ciclo de Renard, recontado em versos por

William Lagos)

A RAPOSA E A CEGONHA I

Existe fábula bastante conhecida

sobre a Raposa que queria comer uvas,

mas não podia, ao encontrar videira

num girau presa, que estava bem crescida;

para os pássaros, serviam como luvas,

mas a Raposa, por mais fosse ligeira,

não alcançava, ao esforçar-se por pular

ou pelo tronco subir fosse tentar!...

A fábula, contudo, concluía

que a Raposa, já bem desiludida,

acabava por deixar o seu intento;

essas uvas que ela nunca conseguia

alcançar, mesmo depois de tanta lida

e que tanto cobiçara, em tal momento,

estavam verdes! acabou por decidir:

se entalariam na garganta, ao deglutir!

São assim as palavras que consolam

a quem se esforça, porém sem obter

do coração seu sonho de consumo...

As pessoas “se matam” e se esfolam

mas fica o alvo lá em cima, a se mover,

num chamariz que as tira de seu rumo...

E finalmente, a si mesmas se confortam,

dizendo que, no fundo, não se importam...

Mas na verdade, quem o sonho beija,

e não alcança, no seu viver real,

nunca fica inteiramente consolado.

Bem ao contrário, consome-se de inveja

de quem alcança o gozo material

desse objeto que tanto havia cobiçado

e usa o ditado das antigas gentes:

“Deus dá nozes a quem não tem dentes!...”

A RAPOSA E A CEGONHA II

Mas a Raposa deste poeminha

era teimosa e buscou a amizade

de uma Cegonha, que voava por ali,

e que via a deliciar-se em cada uvinha,

pois pousara, com a maior facilidade

e muitas uvas debicava para si...

E a Raposa só cuidava, lá debaixo:

que lhe caísse, ao menos, um só cacho!

Mas a Cegonha comia com cuidado,

sem que caísse sequer uma semente;

ignorava a Raposa, com seu olhar pidão,

de boca aberta, a olhar para seu lado,

em seu ciúme, toda descontente

de não ter asas, para subir do chão!...

E foi assim até o terceiro dia:

fingia a Cegonha que nada percebia!...

Chegou o terceiro dia e, finalmente,

pediu a Raposa a ajuda da Cegonha:

“Corte um cachinho de uvas para mim!”

Disse a Cegonha, com ar indiferente:

“Você me toma por qualquer pamonha?

Coma galinha!... Não prefere assim?”

Disse a Raposa: “Também gosto de fruta,

corte um cachinho, veja se me escuta...”

“São as frutas dos pássaros e avezinhas!

Para isso nos dotou a Natureza

de um par de asas, que você não tem!

As raposas só fazem mal às vinhas,

são as uvas das cegonhas, com certeza!

Para as pombinhas e os pardais também!

Você foi feita para comidas diferentes:

depois as aves ficam descontentes!...”

A RAPOSA E A CEGONHA III

A Raposa, porém, era matreira...

Se a outra entrara na conversação

é que, talvez, se deixasse convencer...

“Cegonha, cresceu muito essa parreira!

Quando ficava mais rente do chão

muitas uvinhas já cheguei a comer!...

E nesses anos, adquiri o gosto;

não posso mais e fico no desgosto”...”

Disse a Cegonha: “O problema não é meu:

não tenho nada mesmo a ver com isso!

O que é que eu ganho, no caso de ajudar?

Já percebi que essa árvore cresceu,

mas tenho asas e meu bico espicho:

fica bem fácil para eu me alimentar...

Se um cacho eu der, fica menos para mim.

Por que, então, vou ajudá-la assim?...”

“Ora, eu sou muito boa cozinheira

e lhe preparo uma comida deliciosa...

Não passo fome, essas uvas são desejo...”

Então falou a Cegonha, interesseira:

“Eu sou vegetariana e acho pavorosa

a carne crua que a comer a vejo...”

“Dona Cegonha, eu faço bolos de cereal!

Se for provar, duvido que ache mal...”

Cansou a Cegonha de se fazer rogada

e disse: “Muito bem, quando é o jantar?”

“Amanhã às seis, em frente à minha toca...”

Falou a Cegonha, ainda meio desconfiada:

“Mas por que foi escolher esse lugar?

Para alguma armadilha me convoca...?”

“Mas é claro que não, Dona Cegonha!...

Fazer-lhe mal nenhuma raposa sonha...”

A RAPOSA E A CEGONHA IV

“Pois muito bem. Então pegue suas uvas...”

Cortou-lhe um cacho com uma só bicada

e as uvas se espalharam pelo chão...

Para a Raposa, serviram como luvas:

devorou até as pevides, encantada

e a Cegonha se encheu de compaixão

e cortou das gavinhas outro cacho,

que a Raposa aparou no seu regaço!...

Depois, lambeu os beiços e olhou

para cima, esperando ganhar mais,

mas a Cegonha lhe disse: “Chega agora,

nosso jantar ainda não começou;

não vou-lhe dar sobremesa por demais...

Amanhã, não é mesmo? Qual é a hora?”

“Eu já lhe disse,” falou a Raposa, insatisfeita,

“Às seis da tarde, se a senhora aceita...”

E assim, já estando a data combinada,

troteou a Raposa de volta para casa...

Queria comer algumas uvas mais...

Essa Cegonha é mesmo uma esganada!

Tanto trabalho e ainda estou de pança rasa!

Mas amanhã não vai comer demais...

Vou-me vingar da Cegonha convencida,

nem que seja uma vez na minha vida!...

E preparou, então, um mingau de aveia,

que ficou muito gostoso, por sinal!...

E o espalhou sobre uma pedra lisa...

Chegou a Cegonha, ainda um pouco se arreceia,

olhando à volta, mas sem ver qualquer mal,

até o momento em que essa mesa visa...

“Viu só, Dona Cegonha? Fiz comida

vegetariana... Por favor, seja servida...”

A RAPOSA E A CEGONHA V

E então se pôs a lamber avidamente

o mingau que sobre a pedra se encontrava:

“Não tem carne, Dona Cegonha, vamos, coma!”

Mas a Cegonha percebeu, bem descontente,

que aqui seu bico em nada a ajudava!

Só um bocadinho, numa longa embroma,

ela podia pegar de cada vez...

E a Raposa queria rir, mas não o fez...

A Cegonha ficou toda atrapalhada:

o bico ela enfiava nessa papa,

fazia um risquinho, para os lados a espalhar!

E a Raposa só lambia, deliciada...

“Dona Cegonha, está fazendo um mapa?

Em vez de comer, prefere desenhar?...”

E a Cegonha esfregou o bico de lado,

sem conseguir melhorar o resultado!...

Finalmente, ela sentou-se para trás,

louca de fome, seu bico a lamber,

de passar a língua curta desistindo...

“Dona Cegonha, mas isso não se faz!

Foi por desfeita que veio me atender?

Achou tão ruim o meu mingau tão lindo?”

“Estou sem fome,” a Cegonha então mentiu.

“Como eu, então, pois ora já se viu!...”

“Olhe, eu quero retribuir a cortesia;

amanhã às seis, embaixo do meu ninho:

tenho uma pedra lisa, igual à sua...”

E a Raposa aceitou, com alegria,

sentindo até um certo remorsinho...

“Bem, vou-me embora, já saiu a Lua,”

disse a Cegonha, suas asas espalhando.

“Não vá esquecer!” E depois, saiu voando.

A RAPOSA E A CEGONHA VI

A Raposa lambeu todas as sobras,

não havia razão para desperdiçar

e se pôs a pensar sobre o convite:

decerto havia ali “cobras e obras”...

E uma que outra providência foi tomar,

alguma coisa que a prudência dite...

Chegou às cinco perto do pinheirinho

em cuja copa da Cegonha estava o ninho...

Esperou por uma hora, calmamente:

outras cegonhas não viu nas cercanias...

Mas a Cegonha preparara sopa:

sobre uma pedra lisa, realmente,

colocara a esfriar suas iguarias...

E então uma coisa muito estranha topa,

quando da pedra, enfim, se aproximara:

ela servira em grossos gomos de taquara!

Pois a Raposa pregar peça lhe queria,

como na véspera a Raposa lhe fizera!

Seu bico a afastara do mingau,

mas agora, nesses tubos, lhe servia,

bem enfiados numa fenda, à sua espera,

tão difíceis quanto as uvas no girau!...

E a Raposa foi chegando, a examinar,

Com palavras bem alegres a saudar...

E a Cegonha cordialmente a recebeu:

“Dona Raposa, preparei-lhe uma sopinha;

vai ser bem fácil para a senhora lamber...”

A Raposa olhou a taquara e remexeu,

mas estava bem calçada e tão presinha,

que nem com a língua conseguiu beber,

enquanto a Cegonha, bem tranquilamente,

seu bico enfiava fundo, facilmente!...

A RAPOSA E A CEGONHA VII

Só que a Raposa já viera prevenida,

pois no caminho, passara num trigal

e colhera três ou quatro canudinhos,

quebrando haste de espiga mais crescida...

Enfiou as palhinhas, num gesto natural

e a sopa inteira foi tomando aos chupõezinhos...

E de propósito, ao chegar no fundo,

fez um barulho de chupar, profundo...

“Dona Cegonha, a sua sopa me agradou!

Estava realmente saborosa!...

Será que pode me servir repetição...?”

E assim a Cegonha se desapontou:

a sopa estava, realmente, deliciosa,

mas perdeu o apetite, na ocasião...

E a Raposa inclinou-se, num assomo:

“Se a Sra. não quer mais, deixe que eu tomo...”

E enfiou os canudinhos novamente,

chupando toda a sopa da taquara...

Fez de propósito um vasto barulhão:

“É uma grande cozinheira, realmente!

Isso é comida que jamais enfara!

Pode me convidar, noutra ocasião...

Mas a Sra. me guardou, tenho certeza,

umas uvinhas, para a sobremesa...?”

Logo depois, porém, se despediu:

havia um brilho nos olhos da Cegonha!

E aquele bico bem a podia machucar!

E então no mato se enfiou e fugiu,

deixando a outra com cara de pamonha,

sem saber de que jeito se vingar...

Por isso as cegonhas, com miolos de galinhas,

olham com raiva para todas as raposinhas!...

OUÇA O CONSELHO, SEM SE QUEIXAR DEPOIS:

QUEM SE PREVINE, VALE MAIS QUE DOIS!

William Lagos
Enviado por William Lagos em 29/07/2012
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