O VEADO E A TARTARUGA
O VEADO E A TARTARUGA – 20 JUL 12
Folclore baiano, de origem iorubá, relacionado com a fábula de La Fontaine, recontado em versos por WILLIAM LAGOS
O VEADO E A TARTARUGA I
Houve tempo em que animais viravam gente
E a gente se virava em animais;
Desse modo, não havia nada demais
Que se casassem entre si; e era frequente
Que algum bicho pedisse em casamento
Alguma jovem bonita e, em pagamento,
Trouxesse um belo dote para o pai!...
Podiam o dote ser cabras ou vacas
Ou mesmo alguns pedaços de metal,
Couro de jacaré, de onça ou de pacas
Ou muitas conchas de valor real,
Chamadas caoris... E quem pagasse
O maior dote (ou o primeiro que chegasse)
Levava a noiva para a sua cabana.
Ora, uma moça ficou muito bonita
E encontrou uma porção de pretendentes.
A disputa por ela então se agita:
Queriam-na os guerreiros mais valentes!
E aconteceu que dois desses guerreiros
Se dispuseram a pagar dotes verdadeiros
E as suas propostas disputavam em leilão!
E como os dois eram donos de riqueza,
Suas ofertas se igualavam totalmente,
Até que Ajapá, com esperteza,
Chamou Galá à parte, calmamente...
“Esse velho Aladá é muito esperto,
Seu nome é Porco e tem focinho bem aberto:
Está jogando para nos empobrecer...”
O VEADO E A TARTARUGA II
“Esse dote já está alto demais:
Vinte conchas de caori e doze vacas
Vinte cabras e dez quilos de metais
E quanto mais ofereço, mais empatas!
A esta altura, todos sabem da disputa,
Vai perder face quem perder a luta,
Irão pensar que acabou o seu dinheiro!”
“Pois agora que entramos em leilão,
O que perder, não perde só a formosa,
Perde o prestígio com a população!...
Pois te proponho uma saída honrosa:
Como há empate, disputamos na corrida,
A mão da moça será assim obtida
E o que perder, conserva o quanto tem!”
“Nenhum de nós irá perder a honra
E os dois podemos bons amigos continuar!
Eu sou mais alto, e não será desonra
Se na corrida eu o for ultrapassar!...
Então, que acha? Chamamos Patapá,
O sábio Burro e então ele julgará
Entre nós dois o que chegou primeiro!”
Porém Galá, cujo tótem era o veado,
Enquanto o de Ajapá era a tartaruga,
Fico dessa proposta desconfiado,
Franziu a testa, numa profunda ruga
E então falou: “Vou correr como animal,
Se quiser, corra do seu jeito natural!”
Disse Ajapá: “Mas não é justo assim.”
O VEADO E A TARTARUGA III
“Se você vai correr como animal,
Sou obrigado a correr do mesmo jeito!”
“A tartaruga é lenta!” “Não faz mal,
É uma questão pura e simples de respeito!”
Galá ficou alegre com a proposta
E até pensou que Ajapá, naquela aposta,
Queria um pretexto para desistir...
Só assim não desgastava a sua fortuna...
E concordou. “Mas como vamos ver,
Correndo pelo mato ou pela duna,
Qual de nós dois se encontra já a vencer?”
Dizia assim por pensar que, facilmente,
Deixaria para trás o seu oponente,
Porque veado é mais veloz que tartaruga!
“Ora, Patapá vai marcar nosso caminho
E nós podemos uma música cantar,
De vez em quando, para o seu vizinho,
Indicando o lugar em que chegar...”
Disse o veado: “Pois eu canto o Laculê.”
“E eu o Gulugubango Bangolê!...”
E assim os dois se acertaram, bem contentes.
Patapá aceitou e seu caminho demarcou,
Determinando a hora da corrida;
Para as sete da manhã os convocou;
Odidé, o Papagaio, avisaria da partida.
Durante a noite, Ajapá reuniu os parentes
E combinaram a trapaça, bem contentes:
De longe em longe foram todos se esconder!
O VEADO E A TARTARUGA IV
E Ajapá foi num matinho se esconder,
Bem pertinho da linha de chegada;
E na partida foi por ele aparecer
Um irmão nascido da mesma ninhada!
Eram os dois, realmente, parecidos
E facilmente seriam confundidos,
No lusco-fusco, no escuro da alvorada!
E quando os dois se apresentaram na partida,
O falso Ajapá fingiu estar com medo:
“Fácil demais será levar-me de vencida,
Mas a vitória, assim no mais, não cedo!
Só lhe peço que me dê uma boa dianteira,
Cinco minutos, a mata é bem rasteira...”
Galá ficou com pena e consentiu...
“Você não quer correr na forma humana?
Mesmo assim, sendo veado, eu corro mais,
Mas a desvantagem será bem menos tirana...”
E disse o irmão:“Vamos correr como animais,
Igual que inicialmente combinamos;
Não é correto que outra coisa nós façamos:
Só me dê cinco minutos de vantagem!...”
“A aldeia inteira está ao longo do caminho;
Lá no final nos espera o Patapá;
Nossa noiva nos aguarda, com carinho,
E desconfiado o nosso sogro está!...
Só não se esqueça de a música cantar,
Que pretendo responder sem lhe faltar,
Para mostrar o ponto em que cheguei!...”
O VEADO E A TARTARUGA V
“Está certo... O Laculê eu cantarei,
De vez em quando, para descansar...”
“Gulugubango eu lhe responderei,
Para mostrar qual é o meu lugar...”
E os dois depressa assim se transformaram:
Em veado e tartaruga se mudaram,
Esperando que Odidé lhes desse aviso...
E o papagaio soltou um currupaco
E prontamente Ajapá pôs-se a correr,
Já enfiando o seu corpinho bem retaco
Entre os matinhos, para se esconder...
Logo o perdeu de vista o bom Galá,
Só via as ervas mexendo-se acolá;
E esperou cinco minutos, calmamente...
Então, para avisar que já partia,
Cantou: “Laculê, laculê, laculê!...”
E mais adiante outra vozinha ouvia:
“Gulugubango, bangobango, lê!...”
Saiu andando, até bem devagar,
Pensando que logo o haveria de alcançar,
Sem precisar se mover muito depressa...
Daí a cem metros, parou para pastar
E cantou: “Laculê, laculê, laculê!...”
Mas se espantou de à frente já escutar
“Gulugubango, bangobango, lê!...”
Está claro que cantava outro parente
Da tartaruga, em trapaça inteligente,
Mas o veado ficou muito surpreendido.
O VEADO E A TARTARUGA VI
Ajapá é mais rápido que eu penso!
Mas não demora o irei ultrapassar!...
E num momento, o corpo inteiro tenso,
De um salto, pulou fora do lugar
E correu mais cem metros, sem parar,
Para depois, outra vez, pôr-se a cantar
Seu “Laculê! Laculê! Laculê!...”
E para seu espanto, logo adiante,
Ouviu “Gulugubango bangobango lê!...”
Correu o veado, mas a cada vez que cante
Seu “Laculê! Laculê! Laculê!...”
Sempre se ouve a resposta mais à frente!
Também surpresa ficava toda a gente
Que se juntara para a corrida ver!
Está claro que eram muitas tartarugas,
Perfeitamente escondidas nos matinhos...
Os rostos se franziam em muitas rugas:
Estavam assombrados os vizinhos!...
E a cada vez que a alguma ultrapassavam,
Elas de novo em gente se viravam,
Qual se estivessem ali desde o começo!
Era fácil, ao ficarem para trás
Das árvores, lá no meio, se mudar...
Logo a seguir, aparecia outro rapaz,
Sem que ninguém lhe visse o transformar,
Pois todos ao veado é que vigiavam
E a longo do percurso acompanhavam,
Sem notar o que às suas costas se passava!
O VEADO E A TARTARUGA VII
E o coitado do veado se esfalfava,
Correndo já o mais ligeiro que podia
E a cada vez que o “Laculê!”cantava,
Mais adiante o “Gulugubango!”respondia!
E como todos escutavam a cantoria,
Pensavam que era Ajapá que mais corria
E ia deixando Galá, o veado, para trás!
E finalmente, já morrendo de cansaço,
Galá bufou mais uma vez o “Laculê!”
Quando faltava já bem pouco espaço
E “Gulugubango bangobango lê!”
Escutou mais uma vez, à sua frente!
E a Tartaruga se transformou, toda contente,
Para cruzar a linha de chegada!...
Galá ficou muito acabrunhado,
Porém reconheceu a sua derrota
E aceitou também ser convidado
Para a festança e foi beber sua quota...
Chegando em casa, dormiu por mais de um dia.
Só uma coisa em seu consolo havia:
É que pudera conservar todos os bens!...
Fora Ajapá que a fortuna desgastara,
Para pagar aquele imenso dote
E o pai da noiva é que se aproveitara,
Gastando apenas nesse convescote!
Mas que havia muitas jovens, era um fato,
Cobrando um dote muito mais barato!...
E assim Gala descansou, tranquilamente.
O VEADO E A TARTARUGA VIII
De manhã cedo, porém, foi acordado
Pelo chamado de uma velha tia,
Que lhe contou no outro dia ter notado
Mais de uma tartaruga que fugia
E se escondia na beira do caminho,
De onde, depois, surgia um rapazinho,
Só que, na hora, não lhe dera atenção...
Mas depois, ao comentar com uma amiga,
Ela lhe disse também ter visto outro animal
E logo as duas desconfiaram dessa intriga:
Fora tão estranho da corrida esse final!
A tartaruga, depois de transformada,
Nenhum sinal mostrara de cansada,
Enquanto o veado mal ficava em pé!...
Galá então pensou em se vingar
E foi buscar sua faca e a longa lança,
Mas sua tia se esforçou até o acalmar:
“Não, meu sobrinho, não é dia de vingança!
Estabanado é Pelebi, o pato...
Seja esperto como o é Eku, o rato,
Faço a coisa sem ninguém se aperceber!”
“Essa trapaça ofendeu a todos nós,
Que pertencemos ao tótem do veado!
Se você for da tartaruga empós,
Ficam as outras todas do seu lado!
E nós teremos de a seu lado combater,
Será uma guerra que nos vai enfraquecer
E ninguém sabe qual lado irá ganhar!...”
“Minha amiga e eu traremos lenha para banho
E iremos juntas chamar o Ajapá;
Vai ficar feio se demonstrar acanho,
Pois levaremos uma tina a Ojolá,
Essa mulher jiboia que roubou seu coração!
E igualmente um grande caldeirão,
Para aquecer a água bem fervendo!...”
O VEADO E A TARTARUGA IX
“Ele não sabe que sei fazer feitiço
Que o irá impedir de transformar;
Mas é capaz que desconfie disso
E vai querer então na tina se banhar,
Deixando o caldeirão para Ojolá,
Mas é grande demais para entrar lá:
Vai tomar banho igual que tartaruga!”
“A Ojolá não vai sofrer má sorte,
Mas Ajapá sentirá a água aquecer
E quando perceber o calor forte,
Para sair, virar gente vai querer!
Só que não pode, por causa do feitiço!
Vai ferver até virar-se num chouriço!
E nós botamos cada vez mais lenha!...”
“A esta altura, todos sabem da trapaça
E vão achar que recebeu algum castigo
Que seu poder de transformar desfaça!
Não vão poder te apontar como inimigo...
E ninguém sabe que conheço esse feitiço,
Vamos as três fazer um rebuliço,
Sem conseguir segurar a borda da tina!...
E foi assim. Ojolá tomou seu banho
No caldeirão, sem sofrer o menor mal,
Mas apesar desse calor tamanho,
Ajapá continuou sendo animal!...
A tia e a amiga fizeram um alarido!...
O fogo apagaram, mas já estava cozido
Inteiramente o malvado trapaceiro!...
EPÍLOGO
E Ojolá ficou viúva nessa hora!
Seu pai já recebera o dote enorme
E Galá a reclamou na mesma hora:
Contra outro dote a lei era conforme,
Porque Galá lhe fazia até um favor
Ao se casar com a viúva, sem rancor...
Mas três cabritas para a tia ele mandou!