O HOMEM PEQUENO

O HOMEM PEQUENO

(Folclore nordestino, de provável origem holandesa,

recolhido por Sílvio Romero e Monteiro Lobato.)

Recontado em Versos por William Lagos, 17 JUL 12)

O HOMEM PEQUENO I

Era uma vez um príncipe chamado Dom João,

que costumava ir caçar com seus amigos.

Um dia, na mata, encontraram um raposão

de pelagem bem vermelha e ainda maior

do que em geral costumam ser tais animais...

Mas a caçada continuava mais e mais

e o príncipe D. João, que não temia perigos,

tomou a dianteira, pois seu cavalo era o melhor.

E desse modo, D. João pela mata se internara,

sem conseguir alcançar esse animal.

Só não sabia é que, na real, se disfarçara

um primo seu, fingindo ser raposa...

Dos companheiros assim se separava

e então, por mágica, em raposo se virava,

chamando o príncipe, para lhe causar mal:

trocando a pele por bruxaria poderosa!...

Montava então, de novo, em seu cavalo

e avisava ao príncipe: “Foi correndo para ali!...”

Dom João galopava sobre raiz e sobre valo,

porque o raposo ele entrevia de relance...

Mas o seu primo os caçadores enganava,

para outro lado da floresta os orientava.

Mal se escutava o toque do “halali!”

das outras trompas, por estar fora de alcance!

Ora, acontece que o rei era doente

e muitas vezes, já parecia estar à morte;

D. João único filho e seu herdeiro aparente;

mas o rei tinha uma irmã (que era sua tia)

e ela queria ganhar a coroa para o primo:

se fosse rei, se tornaria o seu arrimo;

e assim aleives maquinava de má sorte,

querendo ver se o reino para o filho conseguia!

O HOMEM PEQUENO II

Essa tia era sem dúvida filha de seu avô,

mas à raça dos gigantes a mãe dela pertencia;

só meia-irmã de seu pai, que lhe contou

que numa guerra seu avô a conhecera,

quando os gigantes em combate derrotaram

e para o alto das montanhas expulsaram;

mas a giganta morrera, durante noite fria

seu avô, de pena, essa menina recolhera...

E a trouxera para morar em seu castelo;

ao retornar, sem demora, se casou;

e fez a filha se casar com um jovem belo,

que falecera em outra guerra, infelizmente.

Ela tivera só um filho do rapaz:

dera-lhe o nome do marido, Barrabás,

que foi crescendo no castelo e ali ficou,

ansiando o rei se tornar, naturalmente.

Porém as leis que a sucessão determinavam

faziam de João o verdadeiro herdeiro;

à tia, Dona Urraca, e a seu filho descartavam.

Só poderiam aspirar à coroação

se não houvesse algum herdeiro masculino;

Pelo sobrinho tinha rancor quase assassino,

e, se pudesse, o mataria primeiro:

que não pudesse ascender à sucessão!...

Assim seu filho Barrabás ela criou

de forma a ser do primo um inimigo;

muitas vezes o seu mal ele intentou,

mas não podia fazê-lo abertamente.

Assim o levava para duelos e caçadas,

que alguma fera, com dentes ou chifradas

o poderia matar; mas pretendia ser amigo

e até o fingia proteger, frequentemente.

O HOMEM PEQUENO III

Mas ocorria que, apesar das armadilhas,

o Príncipe D. João sempre se dava bem;

Barrabás o levava às piores trilhas,

mas ele tinha sorte e era valente.

E como Barrabás jamais tentasse

e abertamente nunca o prejudicasse,

D. João confiava nele: e assim, também,

todos o achavam seu amigo, realmente.

Mas Dona Urraca também tinha um outro irmão,

pela parte da mãe e outro gigante:

imenso e feio, mas de bom coração,

a quem pedia ajuda para se “desfazer”

do jovem príncipe... Mas seu irmão dizia

que esse rapaz ele somente mataria

se tivesse uma razão bem provocante:

um bom motivo para a morte lhe trazer.

“É a vida dele razão mais que suficiente!”

insistia Dona Urraca. “Ao seu sobrinho,

ele é que impede que no trono um dia assente!”

Mas o gigante, cujo nome era Adamastor,

afirmava que os gigantes tinham lei,

que só evitar que D. João virasse rei

não era motivo para matar o pobrezinho!

E sacudia a cabeçorra, em puro horror!...

Mas era muito insistente a Dona Urraca

e, finalmente, conseguiu-lhe o assentimento,

por sua firmeza e aleivosia de bruaca!...

O pobre Adamastor não era inteligente;

mas mesmo tolo, demonstrava boa intenção;

não tinha queixas contra o Príncipe D. João;

e mesmo concordando, em pensamento

era contrário a assassinar um inocente!...

O HOMEM PEQUENO IV

Foi Dona Urraca que a trama inteira urdiu

e bem depressa a seu filho Barrabás

na realização dos planos conduziu;

e foi assim que ao rapaz ela encantou,

para virar-se e desvirar-se de raposa,

fazendo o primo cruzar a mata portentosa,

deixando o quanto conhecia para trás,

até que toda a segurança abandonou...

Chegou assim até a orla da floresta

e cavalgou por verdejante pradaria...

Ficou aliviado e passou a mão na testa,

ao ver ao longe as muralhas de um castelo...

Pensou primeiro que da mata dera a volta,

quando a raposa perseguira à rédea solta;

porém notou que a muralha que assim via

bem mais alta era que a de seu palácio belo...

Não obstante, era um lugar civilizado

e seu país com nenhum se achava em guerra...

Não havia perigo!... E troteando, sossegado,

seguiu em direção à tal muralha,

que parecia, aos poucos, se afastar,

mesmo obrigando seu cavalo a galopar!...

E já estranhava essa bizarra terra,

em que a distância aos poucos mais se espalha!

Mas o tempo foi passando... E percebeu

que não era a distância que aumentava...

Que o castelo é que era imenso compreendeu,

cinco ou seis vezes o palácio de seu pai!

Mas mesmo assim, ele foi se aproximando,

todo o perigo que encontrava, ia enfrentando...

Era um rapaz cuja bravura combinava

com sua linhagem... E pela ponte cruzar vai!

O HOMEM PEQUENO V

Mas no momento em que o portão se abriu,

com um barulho que parecia uma cachoeira,

imenso homem ante seu olhar surgiu:

era o dono do castelo, Adamastor!...

Porque seu primo Barrabás o instigara

justo naquela direção; e a floresta atravessara

e sem notar, cruzara uma fronteira

para esse reino gigantesco de esplendor!...

Adamastor já se havia até esquecido

desse mau trato que fizera com sua irmã;

e ao ver o príncipe a cavalo, surpreendido

ficou ao ver como sua altura era normal

e lhe indagou: “O que queres, homenzinho?”

Disse-lhe o príncipe: “Me perdi de meu caminho,”

com a mão na espada, embora achasse vã

qualquer batalha com o oponente colossal...

Mas o gigante, que batia com a cabeça

no alto do portão, então lembrou

que tinha feito à sua irmã uma promessa,

mas a criaturinha não lhe faria qualquer mal!

“Caro amigo, deixe em paz a sua espada!

Se eu quiser, posso matá-lo a bofetada

ou chutá-lo deste ponto em que eu estou...

Entre em minha casa, traga também seu animal...

E Dom João, vendo até que seu cavalo

nem ao menos se empinava, se acalmou;

cruzou a ponte que atravessava o valo

e se encontrou dentro de um pátio imenso.

Disse o gigante: “Meu nome é Adamastor,

fique tranquilo, não lhe guardo algum rancor,

O meu avô com o seu a paz firmou

e às leis da hospitalidade eu sou propenso.

O HOMEM PEQUENO VI

Falou o príncipe: “Pois meu nome é Dom João

e sou o morgado e o herdeiro de meu rei!...”

“Fique sabendo que é meu parente, então,

pois sua tia, Dona Urraca, é minha irmã...”

Ficou o príncipe bastante surpreendido;

de um tal parente nunca havia ouvido!...

“Porte-se bem, que eu seguirei a lei:

Para os gigantes, a hospitalidade não é vã!...”

Os seus criados eram também gigantes

e o príncipe foi tomar banho num dedal!...

Depois serviram-lhe alimentos abundantes,

mas foi preciso que sobre a mesa se assentasse...

Logo depois da refeição, chegou a Infanta

Dona Guimara, que também era giganta

filha caçula do gigante... E é natural

que o belo príncipe logo a interessasse...

“Papai, você me trouxe outro brinquedo!...”

E estendeu a mão para o agarrar!...

Com a espada, Dom João furou-lhe um dedo

e Adamastor levantou-o pela gola!...

“Como se atreve a machucar minha princesinha?”

E ela falou: “Papai, foi só uma esfoladinha!”

Mas de seu trato Adamastor fora lembrar

e assim o príncipe ele encerrou numa gaiola!

Dona Guimara, que gostara do rapaz,

falou: “Papai, o buraquinho já fechou!”

“Pode até ser, mas tal maldade não se faz!

Vai ficar ali preso até aprender

como é sagrada a hospitalidade

e não se faz quanto se tem vontade!”

Assim Dom João em sua gaiola ele trancou,

Dando-lhe água e só alpiste de comer...

O HOMEM PEQUENO VII

Enquanto isso, como Dom João não retornasse,

fizeram longas buscas pela mata,

embora Barrabás logo explicasse:

“Certamente, alguma fera o devorou!

Ele correu muito depressa à nossa frente,

gritei bem alto, mas ficou indiferente...

Sempre foi temerário, até esta data:

fez imprudência e a besta-fera o derrotou!...”

O tempo foi passando e não o acharam,

mas Dona Urraca queria ter plena certeza;

chamou o filho e, de noite, viajaram

até o castelo em que morava seu irmão.

E ao ver na gaiola o rapaz adormecido,

ela indagou por que não havia ainda morrido;

e respondeu-lhe Adamastor, com gentileza:

“Para matá-lo, não encontrei qualquer razão.”

“Adamastor, mas você me prometeu

que desse príncipe se iria desfazer!...

Mas o gigante nem assim se convenceu.

“Pois então? Está preso na gaiola!...

Eu trato dele como de um passarinho

e Guimara lhe mostrou muito carinho;

não lhe quero causar um desprazer:

é minha caçula, minha pombinha-rola!...”

Mas Dona Urraca insistiu ainda mais,

porque a bondade do gigante percebera.

“Dê-me essa chave e garanto que jamais

impedirá que suba ao trono Barrabás!...

Posso esmagá-lo na palma de minha mão!”

“Mas não permito!” respondeu-lhe o irmão.

“Então o entregue a Barrabás!” disse a megera.

“Com sua espada bem depressa o fim lhe traz!...”

O HOMEM PEQUENO VIII

Adamastor não se deixou influir:

“Sem um motivo, ninguém o vai matar!

E nada impede a Barrabás subir

ao tal de trono, porque não deixarei

que esse rapaz jamais saia daqui.

Fique tranquila... Mas de fato, só o prendi

que de Guimara foi um dedo machucar;

mas que o destrua, nunca lhe permitirei.”

Urraca, contudo, ainda o ameaçou:

“Se não nos ajudar, assim que o rei morrer

e Barrabás subir ao trono, então eu vou

convencê-lo a destruir o seu castelo!...

Pouco me importo com qualquer tratado;

os homens não respeitam o assinado

e a matar gigantes sê-los-á fácil convencer!

Você verá que eu saberei como fazê-lo!...”

“Mas você é uma gigante, igual que eu!...”

“Porém meu filho é totalmente humano!...”

E finalmente Adamastor reconheceu

ser um perigo conservar D. João com vida...

“Mas não vou assassiná-lo, assim no mais;

a hospitalidade não quebrarei jamais:

ele terá de me dar um motivo soberano,

para ser morto no interior de minha guarida!...”

“Pois trate de encontrar o tal pretexto!

Ou você pensa que terá dele gratidão

depois de o manter preso nesse cesto?

Se em algum momento puder fugir daqui,

ao rei seu pai ele o denunciará,

com grande exército aqui retornará

para vingar-se de seu tempo na prisão:

não fica pedra sobre pedra por aqui!...”

O HOMEM PEQUENO IX

Adamastor não sabia que Guimara,

durante as noites, se fazia pequeninha,

que por D. João ela já se apaixonara...

Um certo dia, a chave lhe roubou

e lhe mostrou o castelo inteiro com orgulho,

mas o gigante se apercebeu do esbulho

e surpreendeu o rapaz com sua filhinha!...

Na mesma hora quase o assassinou!

Porém Guimara, de mãos postas, suplicou;

jurou-lhe o príncipe que nunca fugiria

e Adamastor novamente se abrandou...

Sua esposa disse que a filha se apaixonara

e não queria que se casasse com um humano!

De sua filhinha sentiu ciúme insano:

Razão tinha a minha irmã!... Ela sabia!

Esse bandido quer roubar a minha Guimara!

Desde então, foi procurar um bom motivo,

pois não queria que sua filha se zangasse;

passou a dar voltas à bola como em crivo,

mas sua cabeça sempre andava devagar...

E vendo a filha com o rapaz andando junto,

teve um clarão afinal no seu bestunto,

que o inspirou a que um motivo ele criasse

para o coitado do rapaz poder matar!...

Enfim uma ideia aparecera em sua cabeça...

Adamastor chamou o príncipe Dom João:

“Os meus criados o ouviram fazer promessa

de que limparia o fosso do castelo

em uma noite só e que o encheria

com água limpa que ao sol reluziria...”

“Não, meu senhor, não tenho essa pretensão!

Mas se for ordem, tentarei com todo o zelo!...”

O HOMEM PEQUENO X

“É ordem, sim! E trate de cumpri-la,

para aprender a não ser um mentiroso!

Ou pegarei minha tesoura de esquila

Para cortar sua cabecinha do pescoço!”

E o rapaz, que também se apaixonara,

foi contar a conversa à sua Guimara...

“Ora, não se apoquente, meu formoso,

esta noite o ajudarei a limpar o fosso!...”

E dito e feito! No outro dia de manhã,

estava o fosso limpo e reluzente...

A desculpa do gigante fora vã,

porque Guimara também era feiticeira...

“Mas como foi que tão depressa conseguiu?

Foi minha Guimara que o ajudou?” E ele mentiu.

Não poderia agir de modo diferente,

caso contrário, a sua morte era certeira...

Desse modo, ganhou folga por um mês,

em que passou namorando a sua Guimara.

Mas outro aleive o gigante logo fez...

Mandou chamar de novo a Dom João:

“Você disse aos criados que um belo jardim

lá na colina, iria plantar para mim...?”

“Não, meu senhor, nada disse eu afirmara,

Mas se for ordem, lhe darei toda a atenção!”

“Mas veja bem! Terá de fazer sozinho

e quero pronto amanhã pela manhã!...

Não peça a ajuda de Guimara, homenzinho!

Se eu desconfiar, esmago-lhe a cabeça!

E complete nesta noite o seu mandado,

pois se amanhã estiver inacabado,

vou pendurá-lo na minha barbacã!...

Não é ameaça, estou fazendo uma promessa!...”

O HOMEM PEQUENO XI

Mas é claro que Dom João falou a Guimara

e ela disse que lhe resolveria tudo.

“Vamos juntos à colina,” aconselhara,

“mas desta vez precisará trabalhar duro!

Eu vou deixar na minha cama uma miragem

e meu pai se enganará com essa imagem;

e o resultado fará que fique mudo,

mesmo que o pai não enxerga bem no escuro!”

E toda a noite trabalharam no jardim,

que ficou pronto até a madrugada...

Por artes mágicas, mil mudas de jasmim,

roseiras e estrelitzias eles plantaram,

além de gloxínias, tulipas, margaridas,

azaleias, glicínias, begônias floridas,

hemerocálides e maravilha constelada

e todo o tipo de flor ali deixaram...

Quando o gigante veio ver o resultado,

encontrou Dom João todo sujo de barro,

sobre um canteiro ainda debruçado...

Foi ver Guimara, que encontrou toda limpinha,

saindo de seu quarto e bocejando...

Adamastor foi-lhe direto perguntando:

“Você o ajudou?” “Sim, emprestei-lhe o carro;

as ferramentas; e dei as mudas que já tinha...”

E assim falhou esse segundo aleive...

Adamastor ficou muito desconfiado

e colocou os seus miolos em alqueive,

sem descobrir como o fizera Dom João.

“Eu já encontrei a terra fofa e trabalhada,

foi fácil capinar com a minha enxada,

trouxe as mudas do lugar que foi indicado,

passei a noite realizando a plantação!...”

O HOMEM PEQUENO XII

E o gigante se lembrou que no outro ano

tinha mandado plantar ali um milharal

e que a filha tinha almácegos... Mas que humano

conseguisse fazer a obra tão ligeiro...?

Esse resultado era coisa de magia!...

E sua dúvida se transformou em agonia:

Seria o príncipe um feiticeiro natural...?

Era trabalho para um mês inteiro!...

Acho mesmo que minha irmã tinha razão

e o melhor para mim é dele “desfazer-se”,

como ela diz... Mas vai contra a religião

que há milênios seguem todos os gigantes!

No mínimo, precisava de que o desobedecesse

e assim ordenou que sua muralha erguesse

por mais três metros, sem de ameias esquecer-se,

por toda a volta, em proteções pujantes!

“Mas esta noite Guimara vai dormir comigo!

Vou garantir que não lhe dê qualquer ajuda!...”

Mas enquanto ressonava, sem perigo,

ela deixou o simulacro em seu lugar

e saiu a ajudar Dom João nessa muralha,

que estava pronta de manhã, sem falha!

E como a força da magia sempre a escuda,

de madrugada já voltou a se deitar!...

Manhã bem cedo, acordou-se Adamastor

e viu Guimara deitada na outra cama.

Perguntou à sua mulher: “Querido amor.

ficou Guimara em nosso quarto a noite inteira?”

E a giganta respondeu, estremunhada:

“Não está vendo? Ela ainda está deitada!”

E Adamastor viu Dom João sujo de lama,

as mãos cortadas, empoeirada a cabeleira!...

O HOMEM PEQUENO XIII

E nessa noite, acabou por decidir

que Dom João representava um grão perigo

e que teria, realmente, de o ferir,

tão logo o sol marcasse o amanhecer!...

Porém Guimara lhe leu o pensamento

e percebeu só haver um comportamento:

soltou Dom João da gaiola, em gesto amigo,

montaram no cavalo e se puseram a correr!...

O cavalo galopava uma légua a cada hora,

mas duas léguas eram os passos do gigante...

Então Guimara transformou-se, sem demora,

em um riacho, Dom João em negro velho,

virou os cavalos num canteiro de cebolas,

os dois alforjes em duas pombas-rolas,

a sela em um carvalho verdejante

e a espada transformou em escaravelho!...

Quando o gigante chegou a esse lugar

viu o negro velho a tomar banho no riacho

e lhe indagou: “Você não viu atravessar

pelo riacho um cavalo com um casal...?”

“Plantei essas cebolas, mas não sei se saem boas!”

disse o negro, repetindo as mesmas loas

a cada pergunta do gigante, resmungando baixo,

rosnando feito besta, com jeito de animal...

Depois andou até a beira da floresta,

sem encontrar os rastros do cavalo

e sem nem cumprimentar aquela besta,

voltou para o castelo, em desaponto...

Mas a mulher lhe disse: “O tal negro era D. João!

Guimara era o riacho e as cebolas que lá estão

são o cavalo!... Besta é você! O resto, já lhe falo,

são a sela e os alforjes! Volte logo, velho tonto!”

O HOMEM PEQUENO XIV

Porém quando retornou Adamastor,

Guimara e o príncipe já haviam partido!...

Mas ao verem o gigante, em seu furor,

Guimara fez um novo encantamento:

transformou-se, depressa, numa taba

e a Dom João no seu morubixaba!

Virou o cavalo num indiozinho despido,

Sela, espada e alforjes em potes, num momento!

E quando o gigante chegou à aldeia,

foi perguntar ao pajé encarquilhado:

“Você não viu passar, numa peleia,

um cavalo, com um casal montado...?”

E o morubixaba apenas resmungou:

“Anhangá estremeceu, Tupã falou!...”

E a cada vez que era perguntado,

respondia do mesmo jeito arrevesado!...

E lá se foi o gigante, até o mato,

sem os rastros do cavalo discernir;

quebrou umas árvores, só por desacato

e voltou para o castelo, sem olhar

para as cabanas que formavam essa taba,

nem tampouco cumprimentar o morubixaba!

Disse-lhe a mulher, após a história ouvir:

“Paspalho idiota! Não consegue nem pensar?”

“Não entendeu que Dom João era o pajé

e que Guimara se virou naquela aldeia...?

Mas que gigante mais burro você é!...

Os potes e indiozinhos eram as selas,

os alforjes e os outros objetos!...

Você é mais tolo que quaisquer insetos!

Volte depressa e veja se incendeia

a taba inteira! Mate o pajé, sem mais balelas!”

O HOMEM PEQUENO XV

Com o fogo, Guimara se transforma

e terás morto esse patife do Dom João;

com ele morto, nossa filha se conforma!...

Só não vou junto, que não posso andar depressa,

meu reumatismo não me deixa mais correr...”

Voltou o gigante, para a filha não perder,

mas já Guimara concluíra a aparição

e galopava com Dom João, na maior pressa!

Quando ele chegou, a aldeia já sumira,

mas viu ao longe um cavalo pequenino:

correu depressa como o mundo gira!...

Porém Guimara percebeu que seu pai vinha

e se virou depressa numa igreja;

Dom João num padre, que sua hóstia beija,

O cavalo em altar, a sela em sino,

alforjes em velhas a cantar a ladainha!...

E pela porta o gigante se encolheu

e perguntou ao padre que rezava

junto do altar e das velas que acendeu:

“Não veio aqui um cavalo, com um casal?”

“Dominus vobiscum!...” foram as únicas respostas

do padre falso, sempre a dar-lhe as costas...

Logo em seguida Adamastor já se enfadava,

deixando o padre a ler o seu missal...

Mais uma vez a seu castelo retornou,

mas quando sua mulher ouviu a história,

“Ai, que gigante bem idiota!...” reclamou.

“Você não viu que a igreja era Guimara

e que esse padre era o mesmo Dom João?

Volta depressa lá, seu paspalhão!

Se entrarem na floresta, é a sua vitória!

A tua burrice a coisa alguma se compara!...”

O HOMEM PEQUENO XVI

Só que quando os alcançou Adamastor,

Já de há muito se desfizera o encantamento

e haviam entrado na mata, em seu pavor!...

Foi o gigante atrás, fazendo estrago,

mas as árvores lhe atrasavam a passagem

e o cavalinho se desviava com coragem...

Daí a pouco, ele enxergou um movimento

do outro lado da floresta, junto a um lago!...

O gigante deu três pulos fabulosos,

sem se importar em ficar todo arranhado!

Atravessou a floresta, com berros pavorosos,

cheio de raiva por ter sido ultrapassado!

Mas quando estava os dois quase alcançando,

um pote de cinzas Guimara foi jogando,

que se viraram em um nevoeiro encantado:

Adamastor não viu mais nada e foi logrado!

E retornou a seu castelo, finalmente,

correndo sangue das feridas, machucado,

sem que a mulher o curasse, descontente,

porque sua filha não conseguira buscar!

Mas como tinham outros filhos, consolou-se;

Adamastor alguns presentes depois trouxe

e quando viu como ele estava acabrunhado,

ficou com pena e deixou a raiva terminar...

Os fugitivos ao palácio retornaram

e descobriram que o rei estava bem doente;

mas os remédios de Guimara lhe aplicaram

e o velho rei depressa melhorou...

Porém a tia de Dom João ficou furiosa,

queria expulsar dali a jovem formosa...

Mas desta vez, fez a coisa diferente:

outro feitiço depressa ela aprontou!

O HOMEM PEQUENO XVII

Passou um veneno nas costas de sua mão

e a estendeu para Dom João beijar!

Porém Guimara desconfiou de sua intenção

e não deixou cair o noivo na trapaça!...

“Você já fez maldades por demais!...

Vai voltar a ser giganta e nunca mais

sua forma humana poderá recuperar!”

E a carregaram, amarrada, até a praça...

Ela cresceu até o tamanho de gigante,

gritou por Barrabás, veio este em sua ajuda!

Dom João venceu-o com um golpe fulminante:

pediu perdão diante da espada do inimigo!

Dona Urraca foi expulsa, em desafeto,

mas Barrabás era um ser humano completo

e a forma de gigante não o escuda...

Guimara, então, lhe aplicou outro castigo!

“Meu noivo enganou, em forma de raposa!

Pois em raposa irá também se transformar!...”

E como sua mágica era muito poderosa,

no mesmo instante ele virou em animal

e em direção à floresta foi fugindo,

com a matilha de cachorros perseguindo...

Dona Urraca foi ao irmão se apresentar,

que a expulsou, tal como era natural!...

“Por sua causa, eu perdi a minha Guimara!

Você só irá meus outros filhos corromper!

Não quero nunca mais ver a sua cara!...”

E Dona Urraca saiu dali, como uma fera

e foi forçada a ir morar em uma caverna

como castigo por sua inveja eterna

e na maior pobreza foi morrer,

desperdiçando o quanto o pai lhe dera!...

EPÍLOGO

Guimara nunca mais virou giganta

e se casou com o príncipe Dom João;

tiveram filhos que sua vida encanta

e quando o rei, finalmente, faleceu,

subiu Dom João ao trono, em seu lugar,

com todo o reino, alegre, a festejar!...

Só quem não veio assistir à coroação

foi Barrabás, que no mato se escondeu!

William Lagos
Enviado por William Lagos em 18/07/2012
Reeditado em 30/07/2012
Código do texto: T3785307
Classificação de conteúdo: seguro
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