O menino que assistiu ao fim do mundo e o gato que devorou a Via-Láctea
Para Ariadne, a Fada-Amora, e Dionísio, seu príncipe guerreiro.
“‘O espelho falso’ de Magritte é um olho. Um olho que observa quem está diante de si. O olho enorme é o próprio olho de quem olha. Um olho que devolve ao olhar que o observa aquilo que os olhos de quem olha quer ver. Seja belo ou hediondo. Seja plácido ou a visão de um tormento. O espelho falso”.
Dionísio escreveu tais elucubrações em seu caderno de criança. A foto de um skate na capa do fiel companheiro. Magritte na cabeça. E sonhos que não cabiam em 140 folhas. O gato Madagascar olhou-o de soslaio. Pensou sem emitir nenhum miado “Menininho esperto”. Dionísio olhou o gato. Duas sensações: querer acariciar o dorso do felino e fazer-lhe uma pergunta, “Amigo meu, o que mais deseja desta existência de gato que come, ronrona e dorme?”. Madagascar, como se compreendesse o que a criança inquiria, respondeu com olhos fixos no vago mundo vasto, “Gostaria de ser um poderoso monstro que voaria ao céu e devoraria a Via-Láctea. Ela deve ter gosto de gemada ou de algodão doce”. Dionísio contemplou a cara do gato. Coçou a cabeça e disse, “A Via-Láctea é conhecida também como o caminho de São Tiago. Eu não sei por que, mas vou descobrir, pois tem uma palavra chamada ‘pesquisa’. Quando você a põe em ação as coisas deixam de ser um mistério”. Para Madagascar, o mistério residia no fato do menino dar pouca importância ao desejo inusitado de alguém querer devorar a Via-Láctea. Dionísio encarou o gato e confirmou com a com a cabeça que entendia a angústia dele, “Calma, amigo meu. Devorar a Via-Láctea não é nada comparado a assistir ao fim do mundo. É o que eu quero. Ser skatista, pintor, escritor, professor de piano, astronauta, ter a minha própria banda de rock, ter uma horta, dar a volta ao mundo, casar com Anne Hathaway, ser um tenista famoso e assistir ao fim do mundo”. O gato olhou atentamente o semblante de Dionísio e percebeu o sorriso que escapava pelo canto da boca. Madagascar, enfim, disse, “Assistir o fim do mundo? Tudo acaba e ponto. Agora comer a Via-Láctea é outra coisa. Tem consequências. O que todos pensarão, farão? Eis a questão”. A criança sorriu para o gato. Havia no largo sorriso um segredo. Madagascar não decifrou o significado. Dionísio o olhou e revelou, “O que há no fim do mundo é justamente a falta de pensamentos, frases, julgamentos a respeito do que ocorreu. O fim é o fim. E depois passa a ser o novo. O fim não cede espaço para consequências, apenas para o desejo de construir tudo do zero. O importante é sobreviver”. Enigma. Era a conclusão do gato. Os dois se olharam. Dionísio começou a imaginar que os olhos são espelhos. E voltou a pensar em Magritte. O gato miou mal disfarçando o orgulho, “Esse é o meu menino”. A mãe de Dionísio entrou no quarto e disse, “Não. Este é o nosso menino!”. Era hora do jantar. A imaginação deu lugar à fome. E como nos ensina a célebre frase anônima, “A fome é o tempero do alimento”. O menino sorriu para a mãe e pensou, “Tudo isso dá um belo poema”.