OS DOIS LABIRINTOS
OS DOIS LABIRINTOS
(lenda árabe, recontada por william lagos)
(homenagem a jorge luis Borges)
(25 mar 12)
OS DOIS LABIRINTOS I
O sultão de Babilônia construíra
Sob o palácio, um grande labirinto
E a ele os conselheiros conduzira.
Más intenções, contudo, não lhe sinto,
Pois sua capacidade decidira
Conforme a habilidade que lhes pinto:
Quem conseguisse sair, permanecia
No seu conselho e aos outros demitia.
É claro que, passadas umas horas,
Mandava os servos que o conheciam bem,
Mostrar-lhes o caminho, sem demoras,
E havia sinais a indicar também
A saída para quem, nesses outroras
Fosse capaz de resolvê-lo, sem
O resgate desses servos bem treinados
E conservasse seus sentidos aguçados.
Acreditava o sultão assim provar
Dos conselheiros a capacidade,
Pois ele mesmo se atrevera a penetrar
E chegara a se perder, na realidade.
Quisera antes a seus servos ordenar
Que não agissem com desonestidade,
Mas que o deixassem por um dia abandonado:
só depois disso seria resgatado...
E foi assim. Ao ver-se então perdido,
Ele invocou a proteção de Alá
(clemente e misericordioso o seu ouvido!)
E percebeu se achar mais acolá
Um sinal que não havia percebido.
Do labirinto pode sair já,
Bem antes que tivesse se esgotado
Esse prazo para si determinado.
OS DOIS LABIRINTOS II
Contudo, embora um verdadeiro crente,
Não empregou nos sinais letra divina
Que no alcorão santo se apresente,
Mas preferiu uma inscrição latina,
Os números romanos dessa gente,
Que ao verdadeiro crente não se ensina,
Desprezado a real caligrafia
Com que Alá ao povo santo conduzia.
Talvez quisesse agradar embaixadores
Que lhe chegassem dos países infiéis,
Que mesmo pretendendo ser doutores,
Eram movidos por djinns, os mais cruéis.
Não aprendiam do árabe os lavores,
Suas feias línguas falando nos quartéis,
A desprezar de Alá a santa escrita,
De todas línguas realmente a mais bonita.
Ele então desafiava os estrangeiros
Para em seu labirinto penetrar.
E sem querer ofendê-lo, iam ligeiros
E tais números lhes permitiam decifrar
Para a saída os atalhos mais certeiros.
Poucos, porém, conseguiam triunfar,
Embora houvesse archotes em torchais,
Na falta de suas luzes naturais.
Assim a fama do labirinto se espalhou,
Os estrangeiros bastante impressionados.
Mas a ninguém a excursão prejudicou
Que enquanto estavam nos caminhos encerrados
Sempre um servo do sultão acompanhou,
Às escondidas, os infiéis embaraçados,
Apresentando-se quando era preciso,
Para indicar o caminho mais conciso.
OS DOIS LABIRINTOS III
Até a Arábia chegou a estranha fama
E um emir dos emires apressou-se
Nessa empreitada que sua fé empana,
Pois, por orgulho, assim descontrolou-se:
Quis enfrentar o dédalo que irmana
Em confusão os infiéis. E abalou-se
A percorrer a mais antiga trilha,
Sobre a qual o sol de Alá eterno brilha.
Recebeu-o com honras o sultão.
Do labirinto a fama comentou,
Mas tomado de vaidade e de ambição,
Que fosse tão difícil duvidou,
Pois conhecia do simum a duração
Que peregrinos nas areias enterrou,
Em sua busca pela santa Meca:
Aos pecadores o vento assim resseca!
LOUVADO SEJA ALÁ, que lê os corações
E corta a vida dos que têm imperfeições!...
E o sultão destarte o convidou
A seu famoso labirinto experimentar,
Mas do outro a pretensão o enfadou:
Não permitiu a ninguém o acompanhar.
Pior ainda, só de pérfido, ordenou
Dos corredores os archotes retirar.
“Eu consegui sair em meio dia,
Que seja a habilidade então seu guia!”
E dito e feito: o emir entrou no escuro
E facilmente nas entranhas se perdeu.
Mas na vaidade de seu coração duro,
Buscou em vão cada caminho que escolheu,
Raiando o medo no seu peito impuro,
Até que a luz de Alá o converteu
E acreditando ser da prece a hora,
Prostrou-se humildemente, como outrora.
OS DOIS LABIRINTOS IV
Após a prece, Alá mostrou-lhe o dedo
E o caminho iluminou-se, prontamente...
Alá conhece até o menor segredo,
Allahur akbar! Ele é clemente
E misericordioso em teu degredo
E à prece não se mostra indiferente,
Desde que seja feita com fervor:
Louvai-o sempre e respeitai o seu amor!
Assim achou o caminho facilmente o emir
E jurou para si mesmo à prece não faltar
E a nenhum dos preceitos infringir
Do quran ou que a shariya apresentar.
Chegou à porta e se apressou a sair.
Veio o sultão para o cumprimentar.
“Inshallah! Você venceu meu labirinto
E o grande orgulho que por ele sinto!”
“Percebo agora que é um sábio emir!...”
Mas este respondeu-lhe, de imediato:
“não fui eu o teu caminho descobrir,
Porém Alá, o deus a quem acato!”
“Allah ilallah!” disse o sultão ao ouvir.
“Só existe um deus e meu orgulho abato!”
Mas disse o emir: “a minha terra
Labirinto bem maior que o teu encerra.”
“Eu te convido para o ires visitar...”
“Infelizmente, não poderei sair,”
Disse o sultão. “meu palácio é um bom lugar,
Dentro dele nada pode me ferir,
Já estou velho e não quero viajar,
Seu labirinto não pode me atrair...
Não deixe Alá e não permita a sorte
Que algum dia me afaste de minha corte!...”
OS DOIS LABIRINTOS V
Falando assim, era o sultão que blasfemava,
Ao comparar Alá com a falsa sorte
E do emir a testa se enrugava,
Mas a hospitalidade e a lei da corte
O proibiam de dizer o que pensava:
“Alá é maior até que a própria morte!
Por que o comparava esse sultão
Ao destino de caprichosa duração...?”
Mas despediu-se, para seguir viagem,
Depois de prazo mais ou menos respeitável,
Sem se deixar levar pela voragem
De qualquer emoção desagradável.
“Bismillah!” Pensou consigo, com coragem,
“Chegará um dia para todo o miserável!”
“Hamdulillah!”, pensou, “Assim será:
Tudo se cumpre como o quer Alá!...”
Mas só fingiu voltar para sua terra.
Foi acampar-se num caravançará.
Durante a prece, sem cruzar a serra
Que o levaria a seu oásis já,
Pensou vingança, mas sem provocar guerra,
Na inspiração que só provém de Alá.
E nessa noite, todos embuçados,
Retornaram ao castelo disfarçados.
E como Alá apoiava essa empreitada,
Os guardas dominaram, sem matar,
E subiram até a câmara enfeitada,
Em que estava o sultão a descansar.
Sob mordaça, não pode gritar nada
E igual que um saco o puderam carregar,
Voltando assim até o caravançará
Antes da aurora – bendito seja Alá!
OS DOIS LABIRINTOS VI
E assim por muitos dias viajaram,
Sem se deixarem conhecer pelo sultão;
Nos albornozes ocultos, o vigiaram,
Deram-lhe tâmaras, água, sal e pão.
E sua mordaça apenas retiraram
Nesses momentos para sua refeição,
Pois na hora das preces recusava
E com eles a oração não partilhava!
E assim chegaram ao meio do deserto
E do camelo nesse instante o apearam.
A mordaça lhe tiraram, a céu aberto,
Suas ligaduras totalmente desataram.
De imediato, o emir chegou mais perto
E os disfarces finalmente retiraram.
“Você é o emir!” reconheceu o sultão,
“Por que me trouxe para esta vastidão?”
“Porque quero lhe mostrar meu labirinto
E ver se sua saída pode achar.
Porém, sultão, no coração pressinto
Que para sempre aqui há de ficar.
Talvez Alá o ajude, porém minto
Se nesse auxílio eu posso acreditar,
Que nosso deus reprovará as suas ações,
Pois nem ao menos quis fazer suas orações!”
E o deixaram sozinho no deserto,
Onde acabou de morrer, de fome e sede.
Maktub! Nosso deus sempre está perto,
Mas só protege, com sua divina rede,
Quem o recebe de coração aberto
E ao apóstata a sua graça não concede.
E embora ocupe do universo cada plano,
Habita em cada coração humano.
Salaam aleikum! Para ti, meu caro amigo,
Hoje desejo que a paz seja contigo!