BRANCA DE NEVE VERSUS PRETA DE CARVÃO

PRETA DE CARVÃO – 6 MAR 2012

William Lagos

PRETA DE CARVÃO I

Vivia na Baviera uma condessa

em um castelo arruinado, em condições

da mais completa e mais triste pobreza;

comia mal, seu lamento nunca cessa:

a guerra destruíra as plantações,

fugiram os servos para outras regiões,

por fome e frio perdera sua beleza.

Seu pai e a maior parte dos guerreiros

que haviam lutado pelo Imperador

tinham sido em batalha massacrados.

Seus dois irmãos alvejados por arqueiros,

Vivia pobre e só Dona Malwitha,

querendo a morte, sentindo-se maldita,

sua juventude e atrativos já passados.

E precisando trabalhar na horta,

armadilhas armando para a caça,

horas pescando à beira de seu rio,

mantendo sempre bem trancada a porta,

a se esconder de cada um que passa,

amaldiçoando a sorte que a trespassa,

as mãos e as faces estragadas pelo frio,

sua pele se queimou, ficou curtida,

vestia as roupas de uma camponesa,

grossos calos trazia em cada mão.

Passada a guerra, retornou a vida,

suas melhores terras roubaram em crueza

e quem a via, a chamava, com vileza:

“Quem vai ali é a Preta de Carvão!...”

PRETA DE CARVÃO II

“Era assim mesmo que me chamavam os ladrões

que se haviam apossado de minhas terras

e aqueles que minhas minas exploravam,

mas os piores eram os Sete Anões:

mortos meu pai e meus irmãos nas guerras,

seus servos dispersados pelas serras,

ouro e diamantes de minhas minas retiravam.”

“Mas o que eu podia fazer? Sem ter soldados,

vivendo entre as paredes arruinadas

desse meu arremedo de castelo?

Sem ter ao menos o apoio de criados,

ficando velha e feia, desgrenhadas

as minhas madeixas, minhas vestes esgarçadas,

se só desperta compaixão um rosto belo...?”

“O próprio Imperador já me humilhara,

depois de se servir de meus soldados,

meu pai e irmãos morrendo a seu serviço,

meus camponeses restantes retirara,

de uns fez escravos, de outros seus criados,

os meus apelos jamais sendo escutados,

pois já perdera da mocidade os viços!...”

“Eu era apenas a Preta de Carvão,

ninguém em mim reconhecia a herdeira;

se não tiraram meu castelo, no final,

é que ninguém tinha dele precisão

e era assombrado, diziam pela feira,

e sendo eu sua moradora derradeira,

só poderia pertencer ao mal!...”

PRETA DE CARVÃO III

“De fato, me chamavam feiticeira,

mas o castelo fora já saqueado

buracos feitos no sótão e no porão,

em busca de riqueza alvissareira:

algum tesouro por meu pai abandonado,

qualquer baú de joias enterrado,

coisas roubadas pela Preta de Carvão!”

“Mas nada acharam e perderam o interesse;

caso eu fosse possuidora de algum bem,

até teriam me queimado na fogueira!

Mas como se saquear nada pudesse,

deixaram-me no fim em paz, também;

fiquei vivendo só do que provém

de minha horta, a trabalhar jornada inteira...”

“Passava o tempo e me amargava a sorte,

sem sequer lenha para me aquecer,

tão só gravetos para cozinhar;

e a cada noite considerava a morte,

sem ter motivos para sobreviver,

melhor seria minha vida interromper,

caso morresse, poderia descansar!...”

“Quando acordada, evitava o devaneio...

Por que lembrar meus tempos de criança,

quando meus pais viviam e eu tinha tudo?

Mas ao dormir, desfazia-se o receio

e me voltava de outros tempos a lembrança,

luxo e criados, joias e abastança

e me acordava a gemer em pranto mudo...”

PRETA DE CARVÃO IV

“Porém um dia me apareceu Gertrude,

que fora minha babá, antigamente,

veio bater-me à porta do castelo.

Reconheci-a por seu rosto rude,

ela me olhou, seu dó bem aparente:

O que fizeram contigo? tristemente

Me perguntou... Seu rosto era tão belo!...”

“Contei-lhe então a minha triste história;

ela assentiu e disse tudo recordar...

Que havia sido pelo rei escravizada,

mas me escondera, do porão na escória;

somente agora se pudera libertar,

voltara então para me acompanhar,

que eu usufruísse vida assim mais abençoada.”

“Eu a abracei e então, juntas choramos,

vendo o castelo assim abandonado;

ela jurou que nunca mais me deixaria

enquanto viva fosse e começamos,

a pouco e pouco, a deixar tudo organizado;

porém o teto já furara de estragado

e tudo se alagava, se chovia...”

“Porém Gertrude encontrou um livro velho,

em que havia relação de encantamentos;

como o chamavam os antigos, era um grimório

e descobriu o paradeiro de um espelho,

bem escondido nos compartimentos

que ficavam junto à adega; e a passos lentos,

desenterramos o aposento merencório.”

PRETA DE CARVÃO V

“Retiramos os mil cacos de garrafas

que ali restavam desde o tempo da pilhagem

e até achamos uma botija intacta!...

A porta presa nas enferrujadas gafas

puxamos juntas, com força e com coragem:

ela girou e então, qual em miragem,

cobriu-nos pilha de ossadas, bem compacta!”

“As duas recuamos, assustadas e tremendo,

mas eram somente os ossos de esqueletos,

sepultados talvez há gerações!...

Gertrude abriu o grimório e ficou lendo,

os esqueletos continuaram quietos,

ossos secos apenas, sem afetos,

eram os restos das antigas guarnições!...”

“Logo a seguir, Gertrude me afirmou:

Há uma porta depois da sepultura

e é lá que o que buscamos se achará.

Com cuidado, o vinho antigo destampou

e as duas tomamos, em nervosia pura,

para os ossos remover, tarefa dura,

que haviam jogado ali, ao deus-dará!...”

“Desentupimos logo um corredor

e, sem dúvida, encontramos outra porta,

sob os olhares vazios dessas caveiras!

A fechadura arrombamos, com ardor,

meio temendo que por trás dessa comporta,

houvesse apenas outra gente morta...

As instruções, porém, eram certeiras...”

PRETA DE CARVÃO VI

“Havia até uma pequena janelinha,

por onde entrava um mínimo de sol;

envolto num farrapo, estava o espelho;

havia também uma arca pequeninha

e um chifre multicor como o arrebol,

potes e frascos e um estranho rol

de manuscritos cheirando a mofo velho...”

“Gertrude deu um passo e retirou

do grande espelho a gasta cobertura

e lá vimos duas moças bem formosas

que o vidro desse espelho projetou,

faces louçãs, olhar de expressão pura,

que eu encarei, tomada de amargura,

suas roupas belas como pétalas de rosas...”

“Ao ver as duas jovens, eu recuei

e percebi também que uma recuava.

Gertrude declarou: Éramos nós,

antes que houvesse essa traição do rei...

E a cada gesto com que ela acenava,

igual ademane a figura nos mostrava:

meu coração gemeu de dor atroz...”

“Mas de que serve me contemplar assim?

Sei que estou velha, escura e muito feia!

Você é mais velha ainda, minha Gertrude...

Para nós é zombaria, em nosso fim,

ver como era a beleza que incendeia,

a juventude gravada em face alheia:

trago nas mãos um mapa que se estude...”

PRETA DE CARVÃO VII

“Não, minha filha, respondeu-me a ama,

aqui não existe nenhuma zombaria!

O espelho nos guardou a juventude

e somente um encantamento se reclama

para criar sobre nós a fantasia:

guarda o espelho a feiura, que ironia!

Mas de beleza o nosso rosto ilude!...”

“Gertrude abriu seu livro novamente

e pronunciou um charme incompreensível.

Fui então envolvida num clarão!

E quando pude enxergar completamente,

duas velhas eu vi, de rosto horrível

e até meus trapos, por menos seja crível,

se transformaram num vestido de salão!...”

“Eu era jovem novamente! Quis dançar,

mas o meu corpo ainda não me obedecia...

Gertrude, bela, contemplou-me tristemente:

Querida, está o espelho a nos mostrar,

por um glamour, somente, a fantasia:

todo o mundo jovens e belas nos veria,

mas somos velhas e feias realmente...”

“E não se pode tornar isso permanente?

Mas é claro que sim, mas só no aspecto,

por dentro, continuamos como dantes...

Só se quisermos, poderemos realmente

mostrar ao mundo um exterior infecto,

enquanto o espelho guarda esse dileto

parecer, até o pedirmos, triunfantes...”

PRETA DE CARVÃO VIII

“Mas há coisas melhores nesta sala,

falou Gertrude, pois o livro lhe dizia

que uma surpresa acharíamos nessa arca.

Pois vamos ver se a gente se regala...

E para o chifre a seguir se dirigia

e outra frase do grimório lia:

súbita luz a cornucópia marca...”

“E começou a vomitar estranha massa,

que a seguir se condensou em alimento:

bolos e tortas, aves e assados...

Disse Gertrudes, nessa língua: Passa!

Logo a seguir, interrompeu-se o movimento,

mas sobre o solo permaneceu o portento,

os alimentos sobre pratos colocados.”

“E as duas comemos até nos empanturrar...

Queres agora pedir a sobremesa?

Não, Gertrude, comi até demais,

há muito tempo não me podia fartar;

meu estômago não é capaz de mais proeza,

está estufado inteiramente, com certeza...

Mas não é outra ilusão e nada mais...?”

“Não, Malwitha, é a Cornucópia da Abundância

e as iguarias que produz são verdadeiras,

só não sei como é que tira algo do ar...

Retoma o que sobrou da substância!...

proclamou nessas palavras estrangeiras

e as vitualhas sobradas, bem certeiras,

foram de volta ao chifre penetrar!...”

PRETA DE CARVÃO IX

“Fomos então ver o que havia na arca.

A chave estava ali, na fechadura

e Gertrude foi virando, com cuidado.

Maravilhei-me com o que o cofre abarca:

eram diamantes de qualidade pura,

outras joias de lapidação segura

e um saquitel de couro, bem atado.”

“Estava cheio de moedas de ouro,

cunhadas pelo antigo imperador...

Isto também se renova, sem parar?

Não, minha senhora, é um único tesouro,

aqui guardado pelo conde, meu senhor,

seu pai defunto, um dote em seu favor,

quando partiu para nunca mais voltar...”

“E aqui temos também o caldeirão

que pertenceu à condessa, sua avó:

foi com ela que aprendi toda a magia.

Nele é possível preparar poção,

filtro de amor, de permanente nó,

filtro de morte ou de doença só,

remédio certo para o mal que a alguém feria...”

“E aqui se acham também os condimentos,

os bálsamos e os pós e as ervas de poder

e o nosso livro ensina todo o seu preparo...

Porém, senhora, aproveitemos os momentos,

enquanto a luz do sol nos aquecer;

não nos convém aqui permanecer

depois de finda a luz do dia claro...”

PRETA DE CARVÃO X

Assim as duas o espelho transportaram

para a copa, em que estava o alçapão

e onde se abria uma escada para a adega.

Depois o cofre, com esforço, carregaram,

a Cornucópia da Abundância e o caldeirão;

trouxeram engradados do porão,

para o transporte dos ingredientes que ele emprega.

Numa das torres, a em melhor estado,

foram guardar o espelho e o caldeirão;

um espaço sob as lajes encontraram,

em que o cereal antigamente era guardado;

era uma tulha, ao lado do fogão.

Ficou ali o cofre e, em precaução,

achas de lenha sobre a laje colocaram.

A cornucópia, porém, elas puseram

sobre uma mesa que Malwitha consertara

e lhe pediram uma nova refeição...

Lavaram-se depois, como puderam

e Gertrude outro pedido comandara:

lençóis e cobertores vomitara

a Cornucópia da Abundância, em profusão.

No outro dia, o charme aprofundaram:

Gertrude invocou glamour de proteção

e as duas foram de novo até a adega.

As tochas acenderam que encontraram

e juntas recitaram a encantação,

sentindo forte bater o coração,

pelo temor desse feitiço que se emprega!

PRETA DE CARVÃO XI

“Gertrude fez-me mesmo repetir

uma dúzia de vezes o encantamento,

até poder declamar tudo sem errar.

Nós desejávamos tudo reconstruir,

precisávamos de operários no momento

e de soldados fiéis em juramento,

para essa obra poder-se realizar...”

“E assim, velhas palavras entoamos,

na linguagem esquecida desde antanho

e demos talhos em alguns dos dedos;

sobre as ossadas o sangue assim pingamos,

e acometeu-me então um temor tamanho

de executar esse ritual estranho,

mas Gertrude conhecia os seus segredos...”

“Um som estranho percorreu o aposento

e os archotes expeliram novas chamas,

de resina a exalar o seu perfume...

E assim que se cumpriu o encantamento,

eu vi se unirem os ossos sob as flamas,

criando carne como crescem ramas,

até serem corpos completos sob o lume!...”

“Gertrude e eu, as duas recitamos

as palavras do final deslumbramento

e os corpos se acordaram e se ergueram;

seus farrapos como roupas enxergamos,

mas demonstravam muito pouco sentimento,

meio estonteados, vazios de julgamento.

Disse Gertrude: Eles não sabem que morreram.”

PRETA DE CARVÃO XII

“Reconheci alguns de minha infância,

outros ainda de minha adolescência,

eram criados e guardas do castelo,

pareciam bem reais em substância;

veio um deles prestar-me continência,

beijou-me a mão, com toda a reverência,

seus lábios quentes e seu rosto belo.”

“E um a um perante mim chegaram,

para prestarem-me idêntica homenagem,

enquanto as chamas das tochas crepitavam.

Sem hesitar, todos eles se ajoelharam.

Gertrude demonstrou plena coragem;

saímos por entre os restos da pilhagem

e atrás de nós todos, em fila, caminhavam.”

“Contra as paredes do salão se enfileiraram

e eu lhes disse: Consertem as cadeiras

e a mesa para fazerem a refeição...

As antigas ferramentas encontraram;

cem homens vivos eram as caveiras

de uniforme ou librés, ainda, ligeiras,

meu comando a obedecer sem discussão.”

“Na cozinha, falou Gertrude nova ordem

e a mesa ficou cheia de alimento,

refeição forte, de grande substância.

Os criados carregaram, sem desordem

e assim serviram a todo o regimento;

vinho e cerveja surgiram, num momento,

sem ninguém lhes questionar a sua constância.”

PRETA DE CARVÃO XIII

“Todos comeram, saciando a fome intensa;

foram os guardas para o antigo alojamento

e os criados recolheram cada sobra,

buscaram água e lavaram, com paciência,

depois deitaram-se por sobre o pavimento,

sete dias sem fazer um movimento,

que a vida um preço novamente cobra.”

“Passada essa semana, despertaram,

veio o mordomo a pedir-me as instruções

e lhe falei das reformas necessárias.

O mordomo e o intendente inspecionaram,

nós lhes servimos novas refeições,

organizaram-se conforme as profissões

e se ocuparam das mil tarefas várias...”

“As carruagens e carroças consertaram;

levou Gertrude uma moeda até a aldeia

e meia dúzia de cavalos adquiriu.

O capitão e dez soldados a escoltaram,

o ouro era bom e o povo se arreceia,

meia dúzia de cavalos a gente arreia;

para o castelo essa manada conduziu.”

“Foi aprestado depressa um carroção,

eu fui montada numa égua baia,

Gertrude na boleia, com o intendente.

Compramos todo o material de construção;

dera-me o chifre um manto e nova saia,

mas só nos dava comida e roupa gaia,

de louça e copos ainda havia o suficiente.”

PRETA DE CARVÃO XIV

Em um mês se completou a construção,

todo o castelo reconstruído e até pintado,

dragado o fosso, consertada a levadiça...

Os ressurretos trabalhavam com paixão,

não se queixavam de esforço tão pesado,

o aqueduto foi a seguir reativado

e logo ergueram sobre a horta uma treliça.

E já cresciam macieiras e parreiras,

a horta produzia muito mais,

foram comprar suínos e galinhas

e Malwitha e Gertrude, bem faceiras,

adquiriram móveis e enxovais;

alguns diamantes venderam, ademais,

sem que os ourives enganassem as mocinhas.

Logo a notícia foi levada ao rei

de que o castelo foram reocupado

e mandou a inspecioná-lo o senescal,

que pretendia impor força da lei,

mas cada posto de defesa viu ocupado,

até um canhão por soldados manejado

e se portou com humildade artificial.

Malwitha apresentou-lhe os documentos

que a cornucópia facilmente produzira,

provando neta ser do velho conde,

apresentando até seu testamento;

e o senescal em tudo consentira,

mas afastou-se, tão logo permitira

a cortesia que a hospitalidade ronde.

PRETA DE CARVÃO XV

O senescal foi ao rei logo informar:

“Ela provou descender do velho conde

e me mostrou os devidos documentos;

certa riqueza certamente foi encontrar

que em algum ponto do castelo inda se esconde,

vou enviar um espião que em tudo sonde

algum criado da taverna nos momentos.”

“Mas o castelo está bastante defendido,

vi até nas ameias um canhão:

transformou-se em verdadeira fortaleza;

não será fácil que por nós seja invadido

e já iniciaram a cuidar da plantação,

são servos próprios, não chamou nenhum aldeão;

mas, Majestade, ela tem grande beleza...”

“Então é bela?” indagou-lhe o rei.

“Extremamente bela, Majestade,

boa companheira para a sua viuvez

e se casar, consoante a antiga lei,

seu dote irá trazer e é bem verdade

que para as guerras tereis necessidade...

Quem sabe dá-lhe um herdeiro desta vez?”

“Porque sua filha, segundo nossa lei,

não poderá jamais ser só a rainha,

mas com alguém terá de se casar...”

“Se tiver filhos, herdeiros eu terei...”

“Mas meu rei ainda tem uvas na sua vinha,

não precisa depender da princesinha...

Nunca se sabe o que um consorte há de aprontar.”

PRETA DE CARVÃO XVI

Assim o rei enviou outro emissário

e comitiva carregada de presentes,

pedindo a mão à Condessa Malwitha,

querendo saber se havia algo em contrário...

Malwitha respondeu que seus parentes

haviam morrido, por motivos diferentes

e as batalhas do Império a seguir cita.

Pediu então uma semana em que pensar

e depois que o emissário já partira,

foi pedir o conselho de Gertrude.

Que a verdadeira imagem iria mostrar

aquele espelho a cada um que o mira,

falsa a beleza assim que lhe confira...

“Porém, senhora, a qualquer um ilude...”

E assim, quando o emissário retornou,

Malwitha concordou com o casamento

e na semana seguinte veio o rei,

com grande séquito no castelo penetrou,

e demonstrou grande contentamento,

ao ver a abundância do alimento,

que satisfez-lhe plenamente toda a grei.

Dentro de um mês, realizou-se o casamento.

Malwitha, com riquíssimo enxoval,

levou seu cofre de joias como dote...

Mas ao se verem, desde esse momento,

Branca de Neve portou-se muito mal,

demonstrando uma aversão inatural:

gritou, insultou, chorou e deu pinote!...

PRETA DE CARVÃO XVII

“Essa mulher é velha e é feiticeira!...”

acusou-a, só de a ver, Branca de Neve.

Mas estava seu pai cego de amor.

Deu uma ordem e a ama, bem ligeira,

a carregou nos braços, como deve...

E a corte inteira pensou: “Como se atreve

essa menina a insultar El-Rei Senhor!...”

O casamento celebrou-se em grande festa

e todos se encantaram com a beleza

de Malwitha, muito em especial o rei,

que seu aspecto de modo algum contesta.

Amou-a com paixão e com nobreza,

afirmando a seguir ter a certeza

de ter cumprido o ritual da antiga lei...

Que com Malwitha gerara, nessa noite,

o herdeiro que esperava para o trono...

Mas a condessa sabia ser impossível

e com Gertrude aconselhou-se, afoite,

enquanto o rei roncava no seu sono

e a ama respondeu-lhe, com entono:

“Vamos fingir o mais que for possível!...”

Com Branca de Neve, Malwitha foi gentil,

não tinha por que odiar a princesinha,

mas ela a via com seus olhos de inocência

e enxergava seu real aspecto vil,

sempre fugindo, com medo da rainha

e a ofendê-la, com intenção mesquinha,

gritando a todos sua maledicência.

PRETA DE CARVÃO XVIII

Mas quem a poderia acreditar?

Todos achavam ser só por ciúme,

que não queria ganhar qualquer irmão,

enquanto o rei não cessava de afirmar,

embevecido pelo seu perfume,

que a mulher mais bela que se assume

era a rainha do seu coração!...

“Não sei por que a implicância da menina:

és a mulher mais bela desta terra

e sei que me darás o meu herdeiro;

em ti encontrei a mais perfeita sina:

tenho certeza de que teu ventre encerra

um rapaz forte que seguirá a minha guerra

e vencerá a cada exército estrangeiro!...”

“A cada noite, depois que ele dormia,

eu ficava a matutar no meu futuro,

ao descobrir que não podia dar-lhe o herdeiro!

Já dirigi aos céus a maior prece,

mas sou velha demais, isso é seguro:

ele é feroz e meu destino é obscuro!

Por que há dez anos não me encontrou primeiro?”

“Mas com a ajuda de Gertrude, eu vou fingir

que já me encontro a iniciar a gravidez;

farei com que se expanda minha barriga...

Quem sabe ela consegue descobrir

algum nenê, ao chegar meu nono mês,

fingindo o filho que o rei nunca me fez?

Ah, se a menina não fosse minha inimiga!...”

PRETA DE CARVÃO XIX

“Aqui estou desprotegida e sem soldados,

mas quem sabe se um aleive vou inventar,

usando justamente essa menina...?”

E com as saias e vestidos estufados,

ela buscou Branca de Neve ir abraçar,

mas a menina se debatia, em seu gritar,

e um pontapé lhe deu, fúria assassina...

Porque somente ela percebia sua feiura

e em sua inocência, enxergava-lhe a velhice

e das piores intenções lhe via o segredo...

Malwitha foi queixar-se, em amargura:

“Chutou meu ventre aos olhos de quem visse!

Querer com que eu aborte ela me disse!...

De perder o meu nenê eu tenho medo!...”

E nessa noite, começou a gritar

e o rei chamou Gertrude bem depressa

e retirou-se para outros aposentos.

Sangue de ovelha foram derramar

e um macaquinho bem novo, a toda a pressa,

colocaram na cama, feia peça!...

Para enganar do rei os julgamentos...

Naquele tempo, não havia ciência

e acreditaram ter o nenê morrido...

Para o rei, ela mentiu ser um menino...

Branca de Neve, porém, com impaciência,

garantiu que ninguém havia nascido,

que um animal fora substituído:

todos pensaram ser um desatino...

PRETA DE CARVÃO XX

Porém, quando seu pai a repreendeu,

ela afirmou estar muito feliz,

pois sua madrasta era uma feiticeira!

Em sua fúria, o rei quis-lhe bater,

mas ela deu-lhe bofetada no nariz;

esconder-se na floresta depois quis,

por puro medo da punição certeira.

O rei mandou procurá-la os caçadores,

mas logo após, apareceu um lenhador,

trazendo restos consigo, ensanguentados...

E declararam os que eram tidos por doutores

que eram os órgãos dela, em puro horror!

O rei se arrependeu e, com louvor,

mandou enterrar os restos mastigados...

“Porém Branca de Neve conhecera,

já que passear pela floresta costumava,

sete pequenos salteadores e ladrões...

A mina de meu pai, quando morrera,

Schlaubig, seu chefe, agora explorava

e seu local a ninguém mais contava,

salvo aos outros malvados seis anões!”

“Que o chamavam de Mestre, mas seu nome

era “ardiloso”, malvado e espertalhão;

mas Schlaubig, que fingia ser amigo

dessa menina que na floresta some,

a colocou a limpar seu casarão,

a cozinhar e a dormir no seu porão

e até tentou fazer troca comigo...”

PRETA DE CARVÃO XXI

“Se eu desistisse da posse de minha mina,

a filha do rei eles assassinariam

e nunca mais me causaria desgosto...

Mas só queriam aproveitar-se da menina

e como os falsos abortos continuavam,

que não podia ter mais filhos murmuravam,

pensei salvá-la para dar ao rei um gosto.”

“Mas eles eram maus, esses anões...

Eu percorria a mata, às escondidas,

para ajudá-la, embora ainda me odiasse,

pois era escrava desses brutalhões,

que a amarravam, durante suas saídas,

a cerzir as suas roupas mais puídas,

que de suas garras fugir nunca pudesse.”

“De uma feita, encontrei-a sufocada

e quase morta pela forte amarração:

eu lhe afrouxei o cinto e a convidei,

mas tinha medo de mim a desgraçada,

pôs-se a gritar tal qual fosse o Papão!

O lenhador me ajudou a fugir, na escuridão

e em vão contra os anões a aconselhei...”

“Enquanto isso, os tais doutores afirmavam

que aquele aborto estéril me tornara:

mãe de um herdeiro, jamais podia sê-la!

O rei se entristeceu com o que falavam,

mas em seu leito, à noite, me afirmara

que eu seria a sua esposa muito cara,

enquanto fosse das mulheres a mais bela!...”

PRETA DE CARVÃO XXII

“E eu que sabia ser uma velha feia!

De vez em quanto, olhava-me no espelho,

que da eterna ilusão me garantia:

Minha senhora, não sei do que receia,

No meu cristal eu lhe guardo o corpo velho;

sua beleza conserva e eu só eu engelho:

você é a mais formosa, em sua harmonia.”

“De outra feita, encontrei Branca de Neve,

com um pente nos cabelos encravado,

como castigo desses Sete Anões,

só porque um dia a pentear-se ela se atreve!

Eu a curei e vi que havia mudado,

mesmo que o rosto estivesse descuidado,

já era bela de partir mil corações!...”

“Mas o cruel Schlaubig surpreendeu-me,

os seus asseclas armados de seu lado:

Cresceu bastante, como a senhora vê...

Um ultimato nesse instante deu-me:

O que dirá o seu marido dedicado,

quando essa bela mulher tiver olhado?

Não quererá trocá-la por você...?”

“Dê-me essa mina de papel passado,

caso contrário, a vestiremos com carinho

e a deixaremos mais bela que uma estrela.

Pensa o rei ter sua filha já enterrado,

ela nem mais se recorda do paizinho...

É coisa certa ser aceita no seu ninho...

Será você do reino inteiro ainda a mais bela?”

PRETA DE CARVÃO XXIII

“Que mais então eu poderia fazer?

Ela passava mais com fome que saciada;

e já não tinha tanto medo mais de mim...

Alguma fruta desejaria comer

e eu confesso que levei à esfomeada

essa maçã que a deixaria narcotizada

do mau lugar poder tirá-la, enfim!...”

“O lenhador outra vez me ajudaria

e a levaríamos para um lugar distante

em que a casaríamos com conforto...

ou, quem sabe, ao rei eu revelaria

ter descoberto, após busca incessante,

com dó de ver seu lamentar constante,

que em outro país sua filha ainda vivia...”

“Na verdade, no castelo havia um retrato,

por um pintor de renome executado,

de sua mãe, a rainha falecida...

E eu constatara, em verdadeiro fato,

que em rosto e corpo parecia ter copiado

os traços de sua mãe, e com cuidado,

eu a levaria para ser reconhecida...”

“De fato, o lenhador me conduziu,

como ele sempre na mata protegera

e fiz com que comesse a tal maçã...

Mas o destino novamente interferiu,

Os Sete Anões me perseguiram feito fera:

de modo algum minha razão os convencera

de que seguia saudável e louçã...”

“Mas tinham medo de meu forte lenhador

e eu mesma lhes lancei encantamento

de invisibilidade a proteger nós dois.

Logo perderam todo o seu ardor

e devagar volveram ao alojamento,

conservando na cabeça o pensamento

de qualquer lucro a conseguir depois...”

PRETA DE CARVÃO XXIV

“E então esses malditos se vingaram:

colocaram-na em um ataúde de cristal

ao perceber que só estava adormecida.

Contudo, acordá-la nem tentaram;

pérfido plano arquitetaram, afinal,

para poderem me fazer o maior mal

e me levarem a ser mais perseguida.”

“Pois descobriram o pedaço dessa fruta

de Branca de Neve preso na garganta

e a conduziram até o país vizinho,

em que a instalaram escondida numa gruta.

E o herdeiro desse trono ali se encanta,

que com um beijo a acordasse não se espanta:

era romântico o tal principezinho!...”

“Porque o pedaço se maçã deslocaria

um suspiro provocado pelo beijo...

E sobre mim levantaram falsidade...

O ingênuo príncipe facilmente se iludia,

um matrimônio combinou-se, nesse ensejo;

e o rei seu pai a aceitou, sem pejo:

de sua mãe morta fora tio, na realidade.”

“Enquanto isso, Gertrude falecera

e com ela, meu castelo se arruinara,

as ameias cobertas de esqueletos...

A Cornucópia da Abundância se perdera,

o meu dote meu marido já gastara,

nada mais que o velho espelho me restara,

guardado em aposentos bem secretos...”

PRETA DE CARVÃO XXV

“Mas os anões o esconderijo descobriram;

que a cornucópia eles tinham-me furtado:

meu espelho deram para Branca de Neve!

Os seus lábios num sorriso se partiram;

finalmente sua vingança havia encontrado

e num canto do salão fora ocultado,

para servir a seu objetivo em breve!...”

“E quando nós entramos no salão,

ela tratou-me com a mais meiga falsidade

e afirmou para meu rei ter um presente.

Fez que sentasse em dourado cadeirão;

noutra cadeira ao lado, por maldade,

fez que eu sentasse, em sua perversidade:

meu coração uma armadilha já pressente!”

“Então os anões trouxeram meu espelho,

coberto em veludoso cortinado...

Branca de Neve o cordão então puxou

e vi meu rosto encarquilhado e velho,

o esqueleto de Gertrude do meu lado...

E enquanto o rei olhava, apavorado,

Branca de Neve meu espelho então quebrou!”

“Foi um relâmpago e a dor mais excruciante,

ao se quebrar, ao mesmo tempo, o encantamento:

eu era velha e feia em minha cadeira!...

Outros anões me acorrentaram, nesse instante,

e ela contou ao meu rei, nesse momento,

falsa versão de cada acontecimento

e eu já aguardava a morte, bem certeira...”

PRETA DE CARVÃO XXVI

“Branca de Neve foi muito mais cruel:

dois sapatos de ferro me trouxeram,

avermelhados por um fogo de carvão!...

E nesse ódio pior que qualquer fel,

com tenazes em meus pés eles meteram:

dor maior sei que vocês nunca sofreram;

queimaram-me até os ossos na ocasião!”

“E depois, numa fingida caridade,

mandaram que na mata me jogassem:

que me salvasse a vida a Providência!

Quase morri pela desumanidade,

até que meus dois pés se desmanchassem

e os tornozelos apenas me ficassem,

depois de dias inteiros de inconsciência...”

“Mas fui achada por meu fiel lenhador,

que ao rei levara os órgãos de animais

e em seus braços, levou-me à sua cabana,

alimentou-me e tratou-me com amor:

fez-me dois pés de madeira e ainda mais,

duas muletas com galhos especiais

e ensinou-me a andar, em sua choupana...”

“E assim, no fim de tudo, vivo ainda...

Ele me trata como sua companheira

e sou grata por sua terna compaixão,

embora sinta permanente dor infinda,

Cirzo e cozinho, sou trabalhadeira,

na luz do sol me queimei, coisa certeira,

sou novamente a Preta de Carvão!...”

PRETA DE CARVÃO XXVI

“Contudo, esses malditos Sete Anões

algumas vezes por aqui ainda passam

e me tratam com constante zombaria...

Troçam de mim esses espertalhões:

que não lhes dei a mina ainda retraçam

a que ninguém, hoje em dia, eles repassam,

qualquer minha reclamação aceitaria!”

“Hatschi é o pior, pois passa-me rasteira;

Pimpel e Glücklig vem apenas gargalhar,

Schlafmütze dorme quase o tempo inteiro.

E uma outra coisa ainda tenho por certeira:

Jäger e Brummbär até queriam me matar,

mas Schlaubig me prefere conservar,

para ser vítima de seu tripúdio derradeiro...”

“Jogam moedinhas a meu protetor

e dizem estar pagando o aluguel

dessa mina que roubaram de meu pai...

Ele recolhe os cobres, sem rancor;

eu engulo amargamente todo o fel,

meio encolhida em meu grosso burel:

a vida passa e com ela o sonho vai...”

“E muitas vezes, sou forçada a repetir,

a cada vez que recontam nossa história,

essa versão de meu conto de fadas...

De Branca de Neve a mentira a seduzir

e após o esforço para escapar da escória,

mal relembro aqueles anos de vitória,

enquanto como as migalhas de meus nadas.”

William Lagos
Enviado por William Lagos em 06/05/2012
Código do texto: T3653137
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