O DEUS SEDUTOR
O DEUS SEDUTOR – 16 JAN 12
(Mitologia Suméria, cerca de 6.000 a. C. – Versão Poética William Lagos
O DEUS SEDUTOR I
Há muitos séculos, recém formado o tempo,
Quando as quatro estações foram criadas,
A Primavera para o grande nascimento,
O Verão, em proteção do crescimento,
Tempo de Outono para as folhas descartadas,
E enfim o Inverno, no descanso do retempo,
Muito antes que os homens caminhassem
Por sobre a Terra, em seus curiosos passos
Vieram deuses e criaram dois jardins:
Eddin, também chamado Eridu, nos confins
E Dilmun, a leste do Éden, em seus compassos,
Para que os deuses neles descansassem.
Em Eddin ou Éden habitavam Enlil,
O Deus do Ar, que soprava a poeira seca,
E seu irmão Enki, das Águas Doces o senhor,
Mas em Dilmun governava, com favor,
Nimmursaya, a grande deusa que não peca,
Que sobre a Terra gerou os seres mil.
Nimmursaya ou Nimhursag, a Mãe Suprema,
Mais exaltada dentre todas as deidades,
Rainha excelsa e mãe de toda a Terra,
Dominava em Dilmun, antes que a guerra
Manchasse o mundo com suas calamidades,
Doença ou morte ou qualquer outro mau esquema.
O DEUS SEDUTOR II
E lá viveu Nimmursaya uma estação,
Enquanto a Roda do Ano ia girando,
Com suas servas Annunaki a costurar
Esse tapete que o mundo faz flutuar
Sobre as águas de Nammu, projetando,
Sem se perder ante o caos da escuridão.
Urdu, a Terra, permanecia adormecida,
Enquanto Nimmursaya ia fiando
Cada detalhe da sutil tapeçaria,
Em que morte e doença não incluía
E não havia a velhice perturbando;
Leões e lobos não caçavam pela vida.
Não se escutavam das viúvas o lamento
Nem dos feridos e aleijados o gemido,
Mas toda a Terra de pedra era formada,
Salvo os jardins, sem a relva ser criada.
Para si os deuses sempre haviam provido,
De nada mais precisavam no momento.
Enki, no entanto, era o Deus das Águas Doces,
Dominador de toda a mágica e magia,
Conservador de toda arte e da cultura,
Que um dia aos homens mostraria a agricultura;
E sobre os rios perpétuos se movia,
Senhor cioso de todas as suas posses.
O DEUS SEDUTOR III
Um dia porém, quando Enki ia passando
Entre o Éden e Dilmun, despreocupado,
Foi transformado para sempre, doravante
Pela visão mais magnífica e empolgante
Que jamais encontrara em seu passado,
Viu Nimmursaya quando estava se banhando!
A formosura dessa deusa o conquistou:
Por entre as águas se pôs a cortejá-la;
Nimmursaya, que ainda era solteira
E que em Dilmun só tinha serva e companheira,
Foi seduzida ao galanteio de sua fala:
Também por Enki então se enamorou...
E esse beijo da Mãe Terra o transformou;
Ele que fora impetuoso e violento
Aprendeu o valor de águas tranquilas,
Pelas correntes da emoção, fiéis ancilas
De Nimmursaya, no poder do sentimento,
Tornou-se calmo e sua fúria se aquietou.
E ao mesmo tempo, Nimmursaya descobriu-se
Envolta em bruma do mesmo encantamento.
Foi nesse instante que nasceu o Amor,
Que ao mundo todo difundiria seu calor,
Amor dos deuses, no mesmo pensamento;
No amor das almas cada corpo desvestiu-se...
O DEUS SEDUTOR IV
E nesse amor, a Deusa Terra dissolveu-se,
Na maravilha da umidade desse amante.
Nimmursaya misturou-se em seu abraço,
De sua dureza apagou-se cada traço
E desejou possuir, no mesmo instante,
Esse gosto de água e assim perdeu-se...
E disse a Enki: “Escutei teu coração,
Como o bramido das águas matutinas;
Vejo Urdu, a Terra, meu corpo, árida e seca,
Porque sem água ela sofre e tanto peca?
Assim concede-lhe as tuas bênçãos peregrinas:
Que a Terra inteira se dissolva em igual paixão!”
“O que é um campo que não tem lagoas?
Que é uma cidade que não tenha poço?
E o que é um rio que não possui um cais?
Dá-me tua essência, então, e muito mais:
Abre nascentes entre a rocha, em cada fosso,
Pelo murmúrio das águas que me entoas...”
Foi assim Enki tomado de surpresa,
Pois já lhe dera a essência de sua alma,
Mas não lhe dera a vida que hoje encerra
O corpo dessa deusa: toda a Terra!...
E então o deus se diluiu em calma,
Lançando as águas sobre toda a Natureza.
O DEUS SEDUTOR V
E assim declarou Enki a Nimmursaya:
“Dilmun é a terra que convém à minha senhora
E para ela abrirei fontes e canais
E lhe darei quanta umidade mais
Que a sede abrandar possa a toda a hora,
Mesmo quando chuva alguma aqui recaia...”
Enki então seu companheiro convocou,
Isimude, que era o Deus da Luz do Dia:
Juntos fizeram do chão brotar neblina,
Dos cursos de água toda a força que se inclina
Urdu, a Terra, fez-se fértil e até ria
O seu reflexo nos cem lagos que formou.
Que é de Enki que fluem os quatro rios
Que cercam Dilmun e Eddin: o rio Pison,
Que desce desde a terra de Havilá;
O Hidekkel também se encontra lá,
O grande Eufrates e ainda o rio Gihon,
Suas águas cálidas até nos dias mais frios.
Nimmursaya alegrou-se em tal proeza:
“O toque doce de tuas águas, meu amado,
Trouxe a essência de Nammu desde o céu!
Sinto pulsar em mim o branco véu
Dessa neblina que tem a Terra fecundado!
Todo o meu corpo, a rocha e a Natureza!...”
O DEUS SEDUTOR VI
“E desde agora, adotarei o apelido
De Nintur, do Nascimento a Dama,
Ventre das terras que se estendem junto ao rio,
Com tua umidade, a vida inteira eu crio
E eternamente cantarão a nossa fama,
Por todo o Bem que temos concebido!...”
E disse Enki, tomado de paixão:
“Para mim, és Damgalunna, a Grande Esposa,
Que de delícias minhas águas encherá.
Meu coração jamais te olvidará,
Dentre todas as deusas a mais formosa,
Senhora plena de meu coração!...”
E assim, tomada pelo mesmo amor,
Nimmursaya recebeu Enki nos braços
E nove dias depois, sem qualquer dor,
Teve um parto com pouquíssimo labor
E deu à luz Ninsar, nos seus abraços,
Deusa das Plantas e de todo o seu verdor!
E então a nova deusa toda a Vegetação
Fez brotar a partir da água do rio,
Surgiram folhas e lâminas de grama
E de mil flores a Terra criou cama,
Porque Ninsar tirou da rocha o frio
E tudo encheu de intensa brotação!...
O DEUS SEDUTOR VII
Enki encantou-se com essa garotinha,
Cuja beleza se mostrava tão perfeita,
Cujo sorriso os campos revestira
Desse verde que o mundo ora cobrira,
Tão plenamente lhe fora a água aceita
Pela Terra que só rocha antes continha!
A Grande Dama, com Ninsar nos braços,
Beijou Enki nos lábios, com carinho:
“Em breve tempo, terei de partir,
Para o hemisfério sul preciso ir...
Mas voltarei em breve ao nosso ninho:
Ninsar me chama e me atraem teus abraços!”
“Minhas servas cuidarão dela em Dilmun:
Aonde eu vou perigo existe a uma criança;
Os mares vou cruzar, em meu navio,
Porém terás de ficar, amado rio!...
Mas tuas águas no mar dão-me esperança:
Não nos trará o tempo mal algum...”
Levou consigo Nimmursaya bilha de água:
Com ela a vida para a região meridional...
Enki ficou vogando no seu barco,
A pescar peixes ou caçando com seu arco
E assim Ninsar cresceu sem qualquer mal;
Sofria Enki, porém, saudade e mágoa...
O DEUS SEDUTOR VIII
Ele cumpria o seu dever sagrado:
Das águas as enchentes controlar
E por artérias e canais as distribuir,
Para a relva e os cereais assim nutrir.
Deixou Dilmun para a terra renovar
Ansiando sempre Nimmursaya de seu lado.
Mas Enki era volúvel, como as águas
Que se acham em perpétua agitação
E só obedecem à voz de Sin, a Lua,
Essa bandeja de prata, toda nua
Que a cada noite, de sua alta mansão
Observa e tranquiliza tantas mágoas.
E em nove dias Ninsar já era mulher
E se tornou uma deusa mui formosa,
Cuidando os prados e a vegetação...
No dia décimo, ao regar a brotação,
Enki avistou-lhe a beleza majestosa
E aproximou-se, igual quem nada quer...
E logo a jovem também se enamorou
E se abraçaram felizes sobre a margem.
Enki pensara que fosse, inicialmente,
Nimmursaya retornada, alegremente...
Depois do amor, passada sua voragem,
Que seu rosto era diverso constatou...
O DEUS SEDUTOR IX
Mas em tudo parecia Nimmursaya
Essa filha da terra fecundada:
Apenas era seu sorriso diferente
E o Deus das Águas amou-a plenamente,
Toda a Verdura pela Água enamorada
E a água sobre a relva assim se espraia...
E como poderia, afinal, reconhecer
Que fosse filha sua essa donzela,
Que nos braços, alegre, ele tivera
Dez dias antes, apenas? E nem soubera
Ninsar que Enki pudesse o pai ser dela,
Pois nunca adulta o conseguira ver!
E o volúvel Enki a contemplou de dia,
Sem compreender o que o atraíra tanto,
Pois agora parecia ter perdido
A substância que o havia seduzido...
Ela era linda e feminina, no entretanto,
Apenas sombra da Nimmursaya a quem queria.
Sem dúvida esta é alguma das criadas,
De quem tirou o nome de Ninsar...
Por Nimmursaya ela foi educada,
Por isso lhe é tanto assemelhada,
Tão gentil e tão formosa de se olhar...
São parecidas as adagas e as espadas!
O DEUS SEDUTOR X
Contudo, permaneceu Enki com ela,
Porque seu ventre já continha sua semente;
De fato, em gravidez, por sua magia...
E Ninsar deu à luz no nono dia,
A Ninkura, de beleza permanente,
Que Nimmursaya se refletia nela...
Também Enki se alegrou na filha nova:
Seria a Deusa dos Pastos das Montanhas;
Sobre Ninkura derramou o seu afeto
E como a chuva, sobre o chão dileto,
De seu sorriso saem bênçãos tamanhas
Que a relva cobre cada vale e cova!...
Mas Ninsar compreendeu logo, tristemente,
Que nos olhos de Enki está a saudade...
Não é a mim que ele ama, é outra mais,
Que não conheço e saber não vou jamais...
Quero alguém que me ame de verdade,
Pelo que sou, por mim, inteiramente...
E assim a Vegetação falou ao Rio
Que se fosse, em busca de sua amada.
E Enki sobre os montes fez-se em chuva,
Cada montanha e vale, como luva,
Serviu nos dedos da água consagrada:
Brotou a erva do solo, em verde fio!...
O DEUS SEDUTOR XI
E Ninkura também cresceu rapidamente:
Com dois dias já galgava suas montanhas;
Onde pisava, deixava essa umidade
Que herdara de seu pai, fertilidade
Luxuriante de sua mãe e nas entranhas
Brotaram flores e trigo finalmente...
Após mais nove dias, já donzela,
Ninkura foi beber água de um poço
E lá do fundo subiu rapaz formoso.
Ela o tomou para si, com grande gozo...
(Era o Deus das Águas Doces esse moço,
Que demonstrou grande atração por ela...)
Ficaram juntos por outros nove dias,
Mas por mais que a recordasse, ela não era
Sua Nimmursaya, cuja falta sofria tanto...
Porém Ninkura, na paixão desse entretanto
Engravidou e deu à luz, pois gera
Outra menina, sem do parto as agonias.
Chamou-a Uttu, a Aranha, a Tecelã,
A Senhora dos Destinos e Desejos...
Enki, o Volúvel, após beijar a criança,
Partiu de novo, empós a sua esperança
De reencontrar os verdadeiros beijos,
Já temendo que essa busca fosse vã...
O DEUS SEDUTOR XII
Nesse entrementes, Nimmursaya retornou,
Após beijar o Sul com a Primavera,
Ansiosa por reunir-se a seu amante,
Saudosa pelo amor da filha infante
E que surpresa dentre o seio gera,
Ao ver a neta... e a bisneta que chegou!
Não teve dúvidas no seu coração
De que Enki aproveitara de sua ausência,
Que suas águas fertilizaram as pastagens,
Que abrira fontes nas partes mais selvagens
Dos altos montes, em úmida potência...
E a Grande Deusa controlou sua emoção.
Afinal, de que forma saberiam
As Águas Doces que a donzela da montanha
Era sua filha com a Vegetação?
Era para Enki irresistível a paixão!...
Ninkura era inocente em tal patranha:
Ninsar e ela seu pai não conheciam...
Porém reuniu as três e as advertiu:
“Não deixem Uttu chegar perto do rio!
Em nove dias, ela será donzela,
Enki é volúvel, terá paixão por ela
E não querem que ela sinta o mesmo frio
Desse abandono por quem as seduziu!”
O DEUS SEDUTOR XIII
Ninsar e Ninkura prontamente concordaram
E lastimaram ter cedido à sedução
Das Águas Doces por que se enamoraram...
Mas as flores e pastagens não murcharam
E os cereais ainda ondularam no verão,
Que suas lágrimas mais ainda os fecundaram!
Porém Uttu foi muito bem recomendada
E não a deixavam ir banhar-se a sós,
Embora a mãe e as avós ainda cumprissem
Os seus deveres e ao mundo transmitissem
As Águas Doces e a Fertilidade após...
Pelas suas servas era Uttu acompanhada.
Porém um dia, andando nas pastagens,
Uttu encontrou um homem muito belo,
Que lhe trouxe maçãs, cachos de uvas
E pepinos sustentados pelas chuvas,
Que lhe contou trazer de seu castelo,
Mas que cresciam do Éden nas paragens!...
E novamente, o volúvel Deus das Águas,
Que do retorno de Nimmursaya não soubera,
Porque ela se envolvera em seu rancor,
Revoltada contra o deus tão sedutor,
A jovem Uttu se enamorar fizera
E lhe trouxera amor falso e muitas mágoas!
O DEUS SEDUTOR XIV
E a Deusa dos Destinos e Desejos,
Embora dele sua identidade suspeitasse,
Teceu sua teia para capturá-lo
E recebeu as Águas, sem abalo,
Para que o próprio destino lhe agradasse
E por desejo de Águas Doces e seus beijos!
Mas de manhã, Shamash, o Sol, abriu um talho
Por entre o véu esbranquiçado do nevoeiro
E Enki a contemplou, firme nos olhos
E novamente se lhe ergueram os antolhos:
Tampouco nela encontrou seu amor primeiro
E abandonou-a, transformado em orvalho...
Uttu, magoada, chorou lágrimas preciosas
E jurou não se prender às Águas Doces...
Alguns destinos seguiram os desertos,
Desejos áridos foram então despertos,
Que do Fado e do Porvir não tomam posses
Nem sequer as divindades poderosas!...
E retornou a Nimmursaya, tristemente,
Dizendo acreditar-se fecundada
Por toda a sedução das Águas Doces...
“Eu te ordenei que sozinha ao rio não fosses!”
“Eu não fui, mas pelas chuvas fui achada...”
“Então enterra no solo a tua semente!...”
O DEUS SEDUTOR XV
“Minha Terra Fértil tua semente acolherá,
Que até mesmo na montanha há de brotar,
Porque existem males que surgem para o Bem:
Por Enki me deixei nutrir também...
Correm as águas, em seu doce sussurrar,
Mas sem elas, todo o globo secará!...”
“Agora, eu te darei um bom conselho,
O mesmo dado à tua mãe e à tua avó,
Pois já tive a alegria e senti dor,
Sem essas duas, nunca existiu amor:
Nunca se deve satisfazer a um só!
Deve o Desejo ser reflexo de um espelho!”
“Deve haver troca em cada relação:
O que o Desejo dá, deve pedir;
O que o Destino traz, igual recebe,
Quem na água se banha, a água bebe,
Quem relva come, a relva há de nutrir;
Sem intercâmbio, só haverá separação!...”
E assim Uttu saiu com Nimmursaya,
Por Ninsar e Ninkura acompanhadas.
Oito sementes de Uttu retiraram
E nas planícies e montanhas enterraram,
Distribuídas nas paisagens adequadas,
Para brotarem assim que a chuva caia...
O DEUS SEDUTOR XVI
Passados nove dias, Enki voltara,
Por Isimude, seu amigo, acompanhado
E percorreram os rios e os alagados,
Pelos pastos a passear, despreocupados.
Oito árvores ali haviam brotado
E um fruto novo de cada uma brotara...
Enki indagou então, de Isimude,
Que era seu vizir e conselheiro,
Que plantas eram, de alto e grande porte,
Trazendo frutos, cada qual de nova sorte;
Sentiu Desejo deles bem ligeiro;
Foi seu Destino que o amigo então o ajude.
Enki assim oito dos frutos devorou...
Mas de repente, surgiu-lhe Nimmursaya,
Pelo seu ato totalmente enraivecida
E antes de ser por ele seduzida,
Sua voz o repreendeu como azagaia
E por todos seus desmandos o exprobou.
“Tu não te contentaste com a Mãe Terra!
Não te bastou possuir a Vegetação!
Tomaste os picos e vales da Montanha!
E fecundaste até mesmo a Deusa Aranha!
E agora os frutos tomaste na tua mão!...
Pois doravante, eu te declaro guerra!...”
O DEUS SEDUTOR XVII
“Irás sentir em ti mesmo o teu castigo!...”
E Nimmursaya, então, desapareceu,
Deixando Enki totalmente dividido,
Sentindo medo no coração partido;
Só de revê-la, o seu amor cresceu,
Mas seu ardor tornara-se inimigo!...
E logo Enki adoeceu de sofrimento,
Oito órgãos de seu corpo já afetados
E parecia até que iria morrer,
Ânu, o Deus do Céu, o veio socorrer,
Enlil, o Deus do Ar, sopros alados,
Mas ninguém pode abalar o encantamento.
“Só Nimmursaya o cura,” disse a Lua.
Shamash, o Sol, saiu a procurá-la
E não a pode encontrar em parte alguma!
Sin, a Lua e Enlil, o Ar, como verruma,
Perfuraram a Terra, sem achá-la!...
Cada vez mais essa doença atua!...
E assim as Águas Doces se secaram
E da Terra toda a água já sumia,
Já não havia habilidade ou arte,
O mundo inteiro se perdia destarte,
Sem água doce, tudo está em agonia
E os deuses uns aos outros murmuraram...
O DEUS SEDUTOR XVIII
Mas Nimmursaya sob as rochas se escondera,
Lá onde a água doce nunca atinge
E embora ouvisse o vão clamor do ar,
O chamado da Lua, o som do mar,
Que não escuta o tempo todo finge,
Que em seu rancor firme permanecera...
Pois não era pelos frutos, certamente.
O coração lhe ardia é de ciúme!...
Quarenta e cinco dias só haviam passado
E três outras Enki havia namorado!...
E remordendo assim seu azedume,
Só queria que sofresse realmente!...
Mas a Raposa, que lhe era consagrada,
Pois morava sob a pedra, numa toca,
Foi relatar a Enlil seu paradeiro:
“Eu não a traio, Deus do Ar, bom companheiro,
Mas a sua indiferença não é pouca
E deixará a Terra inteira desolada!...”
Assim Enlil,o Deus do Ar, a descobriu,
Mas seu pedido recusou-se a ouvir.
Ânu, seu pai, também foi suplicar,
Foi Sin por uma fenda penetrar,
Shamash, com o calor, chegou a partir
Sua rocha... E mesmo assim, não consentiu!
O DEUS SEDUTOR XIX
E foi Ninsar com sua mãe argumentar:
“Sem Águas Doces, morrerá a Vegetação!
De que me serve assim ser a Senhora,
Se todo o verde do mundo for-se embora?
Também nutri por ele uma paixão!...”
Mas Nimmursaya recusou-se a escutar...
E foi Ninkura sua avó a convencer:
“Sem Águas Doces, os vales ressecaram,
As nascentes nos montes já não brotam,
Todas as fontes no calor se embotam...
As Águas Doces minhas entranhas fecundaram!”
Mas Nimmursaya fingiu não entender...
Também foi Uttu com a bisavó se lamentar:
“Por que persistes em tua indiferença?
Das Oito Árvores restam só os galhos,
Não as refrescam nem chuvas, nem orvalhos
E de que serve no Destino a crença?”
Nimmursaya, porém, nem quis falar...
E finalmente, aconselhou-a a Raposa:
“Mãe Nimmursaya, sou tua serva mais fiel,
Mas não deves continuar obstinada:
Enki chora e reclama por sua amada;
Mulher alguma lhe trouxe o mesmo mel...”
E a deusa disse: “Tua fala é ardilosa!”
O DEUS SEDUTOR XX
Mas Nimmursaya comoveu-se, finalmente:
“Está de fato Enki a me chamar?”
“Ele quer vê-la, um pouco antes de morrer...
Uma vez mais, para seu último prazer...”
“Minha Raposa, ele há de continuar!
Será um sedutor, eternamente!...”
“Ele o será, também,” disse a Raposa,
“Pois não são todas as águas inconstantes?
Só obedecem a Shamash e a Sin...
Mas o amor da Água à Terra é, outrossim,
Permanente até em momentos delirantes...”
E a deusa disse: “Tua fala é poderosa!”
E assim ergueu-se, finalmente, Nimmursaya
E foi aonde escutava as carpideiras;
O Céu e o Vento juntos se abraçavam,
O Sol e a Lua também ali choravam,
Suas deusas filhas prostravam-se em esteiras...
E disse a deusa: “Todo mundo saia!...”
Saíram médicos e os outros curandeiros,
Os mágicos e astrólogos se afastaram,
O Sol e a Lua ouviram a sua voz,
O Céu e o Ar os deixaram a sós
E os dois amantes longamente se miraram,
Enki prostrado nos seus travesseiros...
O DEUS SEDUTOR XXI
E disse Enki: “Enfim, amada minha!
Eu já te vi, posso morrer agora!”
“Não me chamaste para te curar?”
“Só te chamei para poder-te amar;
Eu sei que me chegou a final hora,
Dá-me um último beijo, minha rainha!...”
E Nimmursaya, com imensa ternura,
Pôs a cabeça de Enki no seu colo
E o envolveu com seu corpo inteiramente,
(Que a Terra oculta das Águas a nascente)
E o abraçou, sem mais rancor nem dolo,
Sua paixão retornando ainda mais pura.
E Nimmursaya perguntou-lhe: “Onde te dói?”
E disse Enki: “Meu corpo, inteiramente...”
“Porque engoliste os Oito Frutos iniciais!...
Não deixarei que te castiguem mais...
Em minha Abundância os tomarei completamente
E curarei todo o mal que hoje te rói...”
E disse Enki: “Sempre te amarei,
Ai, Terra minha! De pedra e de esperança...”
“Não, querido, não me jures mais amor,
Sei que sempre tu serás o sedutor,
Às águas amam a mulher e a criança,
Mas mesmo assim, hoje te curarei!...”
O DEUS SEDUTOR XXII
Enki não podia mexer sequer um dedo,
Mas já sentia dentro em si novo calor...
“Já retirei de ti uma semente
E Abu trouxe à luz, o deus clemente,
De toda a Medicina, filho do amor
Que nós dois conservamos em segredo...”
“Então, me diz agora onde te dói...”
“Meu queixo dói e mal posso falar...”
“Dei Nintulla à luz, teu filho e irmão,
Será o Deus da Fala e Elocução...”
E os dois meninos puseram-se a brincar,
Pois Nimmursaya a doença, aos poucos, mói.
“Onde te dói agora, meu querido?”
“Doem-me os dentes, de tanto mastigar...”
“Dei à luz Ninsutu, a Deusa do Moinho,
Que o pão inventará, com seu carinho,
Para toda a humanidade alimentar...
Meu pobre amado, como tens sofrido!...”
“Qual é o lugar de tua outra dor?”
“Minha boca dói,” Enki lhe respondeu.
Nimmursaya em plena boca deu-lhe um beijo
E outra deusa trouxe à luz, no mesmo ensejo,
Ninkasi, Deusa do Gosto, apareceu,
Um novo fruto de um verdadeiro amor...
O DEUS SEDUTOR XXIII
“E onde mais te dói, querido amor?”
“Eu sinto dor ainda na garganta...”
“Pois à luz dei a deusa Azimua,
Que sempre cantará à luz da Lua,
Deusa da Música, que o coração encanta
E que aos poetas inspira o seu louvor...”
“Diz-me, querido, onde te dói ainda?”
“Eu sinto dor nas pernas e nos braços.”
“Teus membros eu agora te livrei
E o Deus Enshágue ao mundo libertei,
Para aos atletas conceder os seus abraços
E aos guerreiros dar resistência infinda!...”
“Onde é que ainda sentes qualquer dor?”
“Eu sinto dor ainda nas costelas...”
“Pois trouxe à vida Ninti, que o pulmão
Protege e igualmente ao coração...
Ela abre agora para a vida tuas janelas,
Estás curado de todo o teu ardor!...”
“Acabaram-se tuas dores desta sorte,
Pois agora te curei inteiramente
E nunca mais te lançarei a maldição,
Por infiel que seja a tua paixão
E viverás agora, eternamente,
Que dei à luz Ereshkigal, o Deus da Morte.
O DEUS SEDUTOR XXIV
Então Enki saiu de seu abraço
E face a face com Nimmursaya se estendeu,
Porque seu rosto ele queria perceber:
Viu Nimmursaya quase desfalecer,
Pois com sua vida ela o fortaleceu,
O cansaço refletido em cada traço...
Enki entendeu o bem que lhe fizera:
“Tu lançaste no meu corpo a própria alma
E parte de minha alma retiraste,
Por isso, firmemente me enlaçaste...
Só agora compreendo, em plena calma,
Que somente por ti minha vida espera.”
“Busquei no rosto das donzelas a tua imagem
E era impossível achar igual beleza
E por isso eu as deixava, sem calor:
Somente em ti se encontra o meu amor,
Amada minha, Mãe da Natureza,
Qualquer outra que não tu uma miragem...”
“Mas não te prenderei contra a vontade,
Amado meu, sei que és um sedutor,
A mulher e a donzela amam as águas,
A elas se entregam, sem temor das mágoas...”
“Mas sempre torno a ti, meu grande amor...”
E assim cumpriu-se seu destino, na verdade!
O DEUS SEDUTOR XXV
Anos passaram e então encheu-se a Terra
De mil árvores de fruto e de sabor,
Até que Ânu se decidiu a criar
O Homem e a Mulher para O adorar
E assim lhes concedeu o dom do amor,
Com toda a dor e alegria que ele encerra...
E também lhes conferiu o dom da morte,
Que assim soubessem suas limitações.
Da Terra e da Água brota toda a vida,
Que sob a terra a voltar é compelida,
Do mesmo modo, todas as emoções
São avassaladas ao sabor da sorte!...
E Uttu, a Aranha, senhora dos Destinos,
Ainda tece suas teias, sem piedade,
Força a vida a surgir, desde o antanho
Só ela conhece do porvir todo o tamanho
E os Desejos conhece à humanidade,
Porém ao preço do tanger dos sinos!...
Que os deuses são perpétuos, porém nós
Não somos mais que sombras passageiras,
Embaladas pelo amor, nos verdes anos,
Embutidas depois nos seus arcanos,
Para essa teia a retornar, ligeiras,
Até escutarem outra vez a eterna voz...