O VENTO E OS SAPATEIROS

O VENTO E OS SAPATEIROS

(Conto de Hans Christian Andersen, versificado por William Lagos, 30/12/2011)

O VENTO E OS SAPATEIROS I

Se à lareira no inverno me sento,

fico a escutar essa canção do vento,

que zumbe alegre pelas chaminés,

pois para ele tudo é brincadeira

e um arrepio já me percorre os pés;

sobre os chinelos ajeito o cobertor

e para os netos recordo, com amor,

dos velhos tempos história corriqueira.

O vento antigamente era gentil

e só brincava, sob o céu de anil;

remexia dos campos as mil flores,

arteiro nessa burla de criança

e remexia o trigo em mil fulgores

o vento adolescente, em seu bailar;

igual que as ondas crespas sobre o mar,

o vento jovem, cheio de esperança.

E o vento adulto vinha até a cidade,

a divertir-se, com mais voracidade,

arrancando das cabeças os chapéus,

senhores sérios botando em correria;

das mais devotas arrancava os véus,

elas corriam, a tropeçar nas saias

e os malandros lhes davam muitas vaias,

no seu troçar de toda a romaria.

Porém era melhor nos dias de chuva:

ele enroscava nos punhos cada luva

e se atirava em busca das sombrinhas,

guarda-chuvas e até dos guarda-sóis,

invertia o rodopio das ventoinhas,

fazia as capas virar pelo contrário,

entortava o guarda-chuva, atrabiliário,

tapava com as nuvens arrebóis!

O VENTO E OS SAPATEIROS II

Antigamente, havia tabuletas,

mostrando, nas figuras mais diletas,

onde se achava cada profissão;

havia umas nas alfaiatarias,

outras mostravam onde era a confissão,

cada açougueiro ostentava a sua,

nas barbearias, uma navalha nua,

bolos com velas nas confeitarias!

Então o vento, em noites de folguedos,

arrancava a cada uma seus segredos:

tirava esse cartaz da prefeitura

e o colocava na porta de algum bar!

No salão de beleza, a rapadura,

no tribunal punha do hospício a placa,

diante da igreja, o desenho de uma vaca

e a da escola maternal junto ao bilhar!

E na casa de uma velha faladeira,

ele afixava: “Vende-se estrumeira”;

em frente à escola havia gritaria,

ao enxergarem os dizeres do cartaz:

“Vendemos peixes”, era a frase que dizia

e no hospital havia a placa do açougueiro,

na ferraria, o cartaz do confeiteiro

e num asilo: “Pensão para Rapaz”!

No cemitério: “Temos ossos para sopa”,

na estrebaria, dizia: “Aqui se poupa”,

na sacristia, constava: “Vendo Pão”;

anunciava-se quermesse na cadeia,

diante do clube, o mais negro caixão,

na peixaria se anunciavam curas,

no boticário: “Vendem-se Verduras”;

no cirurgião: “Convite para Ceia”!...

O VENTO E OS SAPATEIROS III

Porém naquele tempo, a Confraria

dos Sapateiros em desfiles reluzia;

as fábricas não haviam começado

e quem de novos sapatos precisava,

ia ao oficial encomendar calçado;

eram eles os donos dos curtumes,

determinavam as modas e os costumes

e até fortuna a maioria acumulava!

E no dia do padroeiro, São Simão,

organizavam uma bela procissão

os curtidores e mais os sapateiros;

das oficinas traziam as tabuletas

e saíam pelas ruas, bem ligeiros,

carregando os cartazes e as imagens,

fantasiados uns de reis, outros de pajens,

e de outras vestimentas mais completas.

Diante da Guilda todos se reuniam,

que era o seu clube e muito alegres riam,

ostentando ferramentas e aventais

de couro, que chegavam às canelas

e organizavam belos carnavais;

bem na frente de todos, ia o palhaço,

um pé de gesso balançando no regaço,

reunido o povo nas calçadas e janelas!

Logo atrás do palhaço, ia a fanfarra;

eram cordões de sapato cada amarra

dos uniformes espalhafatosos;

somente eles podiam fazer tambores

e os casacos de couro mais vistosos

e junto a eles marchavam os açougueiros,

pois forneciam o couro aos sapateiros,

todos vestidos de variegadas cores!

O VENTO E OS SAPATEIROS IV

A procissão acabava numa igreja,

mas antes dela, a cerimônia enseja

que chegasse a parada à prefeitura

e lá se ia aquela gente toda,

as bordadeiras de chinelos, com doçura;

os ferreiros que faziam as tachinhas;

os fabricantes de presilhas e esporinhas

e todos os seus filhos, numa roda.

Iam jogando no caminho flores,

cada um a mostrar os seus pendores,

a carregar a tabuleta retirada

das argolas que ao vento balançavam,

para alegria de toda a criançada

e eles batiam nas sovelas e martelos

enquanto entoavam os cânticos mais belos

e pelas ruas todos aclamavam!

E num palanque, frente à prefeitura,

havia uma corbelha, em ferradura,

porque estas são os sapatos dos cavalos

e para ali subia o Presidente

da Guilda, entre foguetes e estalos,

já preparado para fazer discurso

e anunciar qual o tema do concurso

que escolheria o melhor dentre essa gente!

Mas enquanto o Presidente discursava,

lá no palanque, o palhaço o acompanhava,

fazendo troça de cada sentença

e a banda inteira aumentava a barulhada,

porque existia entre eles velha crença:

que dava azar falar no realizado

e muito mais no que fora planejado,

o melhor mesmo era não se escutar nada!

O VENTO E OS SAPATEIROS V

Naquele ano, o vento foi safado:

deixou o préstito todo atrapalhado,

sobre as cabeças rugia ferozmente

e repuxava cada platibanda!

Arrancava os chapéus de toda a gente,

arrepelava os aventais e as saias,

assoviava e zunia em longas vaias

e roubava as baquetas dessa banda!

As tabuletas contras as outras já batiam,

as sovelas voavam e sumiam

e nem a banda se escutava assim,

até os cães entraram na zoeira!

E mal se ouviam os toques do clarim

e quando o vento roubava esses cartazes,

corriam atrás deles dez rapazes,

todos felizes com essa brincadeira!

Não se importaram com isso os sapateiros,

escolhiam dias de vento, os mais certeiros,

porque queriam era mesmo essa arruaça!

Suas tabuletas eram de madeira,

mas os cartazes ficavam pela praça...

Escreveu o seu discurso o Presidente,

numa faixa que mostrou a toda a gente,

mas o vento esfarrapou-a toda inteira!

E terminado o vasto festival,

foram todos a rezar na catedral,

para lá agradecer a São Simão,

que era o padroeiro de toda a confraria.

E depois de tomarem comunhão,

saiu da igreja aquele mar de gente:

passaram todos, muito alegremente,

a noite inteira na cervejaria!...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 08/04/2012
Código do texto: T3600926
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