A greve
O problema maior de um escritor, acredito eu, é quando os personagens insistem em tomar o rumo da história. Tudo bem que a história é mesmo deles, mas se eu, seu Criador, não tenho o direito de decidir o que vai acontecer, qual será então o meu papel? Sim, eu sei, no mundo real existe uma coisa chamada livre arbítrio, que é o direito que todos temos de decidir o que fazer de nossas vidas. Mas esse direito não se estende a personagens de faz de conta, onde já se viu.
Por isso, baixei uma lei: nas minhas histórias, ninguém fala se eu não mandar. Até que isso vinha funcionando direito. Vinha, não vem mais. Nos últimos dias, os personagens resolveram fazer greve. Isso mesmo, greve. Dá para acreditar?
Tudo começou quando eu cheguei em casa, fui ao escritório e liguei o computador, pensando em escrever mais um conto. Computador ligado, chamei minha turma de personagens, para selecionar quem iria participar daquela história. Em vez de pularem de alegria, como sempre faziam, disputando para ver quem seria escolhido, eles simplesmente se sentaram lá na escrivaninha, de braços cruzados e cara amarrada.
– O que está acontecendo aqui? – perguntei, estranhando.
Nenhuma resposta. Nem mesmo um piscar de olhos.
– Vocês não querem trabalhar? Olhem que são papéis importantes – tentei eu, novamente.
Eles continuaram lá, mudos, como se não fosse com eles. Eu já não sabia se ficava irritado ou pagava na mesma moeda, ignorando–os também. Decidi insistir, mas me fixando em um deles em vez de falar com todos.
– Dom Raimundo, o senhor pode me dizer o que houve?
– Poder, eu posso, e já que você disse para eu falar, eu vou falar. Estamos em greve, e não trabalharemos até termos nossas reivindicações atendidas – respondeu o velhote de barba grisalha.
Fiquei perplexo, mas também um pouco divertido.
– E que reivindicações são essas, posso saber? – indaguei.
– Como não recebemos sequer salário, queremos ao menos o direito de escolhermos nossos papéis.
– E nossas falas – acrescentou Dona Joaninha.
– É isso aí – apoiaram os outros, em coro.
Eu fiquei parado, boquiaberto, olhando para eles . Será que adiantava tentar negociar?
– E não aceitamos contrapropostas – disse Dom Raimundo, como se estivesse lendo a minha mente.
– Se vocês escolherem as falas, vocês vão fazer a maior bagunça – argumentei.
– E daí? Então você pode nos meter nas maiores encrencas, e nós nem podemos bagunçar um pouco? – teimou Dona Joaninha.
Dom Raimundo aproveitou e abriu seu caderninho, onde anotara, na sua letra miúda, outra dezena de reivindicações. Seguro para quem atuasse nas histórias policiais e de terror, dublê para as aventuras, mais histórias passadas no Exterior e, por último, dos períodos de férias por ano.
– E desde quando alguém tira férias duas vezes ao ano? – reclamei.
– Nossos colegas que trabalham nos livros escolares tiram – retrucou Dona Joaninha, e os outros aplaudiram.
Sem saber o que fazer, eu apelei: tirei a língua para eles e disse que nada feito. Ora bolas, eu ira era procurar novos personagens para ocupar o lugar deles. Eles iam ver, esses personagens rebeldes.
Só que eu encontrei. Quer dizer, personagens existem aos montes por aí. O problema é que os que estão procurando um escritor são tão desaforados que os meus, ou ainda mais. Um deles chegou a me dizer que só atuaria nas minhas histórias se fossem romances, e não contos, e se ele ganhasse o papel de rei. Ah, tá, vai ganhar, mesmo, mas no dia de São Nunca.
Ou seja, voltei à estaca zero. Sem personagens, não tem histórias. Por isso, vou convocar uma nova reunião para daqui a pouco. Como não tenho escolha, vou aceitar os termos deles. Mas vou colocar um aviso em cada livro, em letras maiúsculas e bem grandes, para deixar claro: ESSA HISTÓRIA É DE RESPONSABILIDADE DOS PERSONAGENS. QUALQUER RECLAMAÇÃO, FALAR COM DOM RAIMUNDO OU DONA JOANINHA, NA PÁGINA TAL. E tenho dito.