O peru de Natal

Nunca havia visto um peru, isto é, um que estivesse vivo, até que, um dia, foi ao sítio do seu colega de escola.

Ali, surpreendeu-se com toda aquela vegetação, minas de água perenes, e muitos animais que nunca havia visto ao vivo, só na televisão.

A começar por uma vaca, um bicho enorme, verdadeira montanha ambulante de carne de leite que magicamente brotava de suas tetas, como uma mina.

Marrecos, patos e garças agitavam um açude onde, dizia o seu amigo, havia peixes. E um peru.

O peru era o animal mais estranho de todos. Grande e feio, tinha cara de malvado e uma espécie de bolsa vermelha no pescoço. Olhando melhor, via-se um pouco de azul naquele saco. Vai ver é por isso que se chama peru. Porque tem saco!

Saiu dali com pena do peru e de todos os perus do mundo, e nunca mais pensou neles, até que na ceia de Natal sua mãe trouxe um pratinho com umas fatias de carne branca dizendo que era... peru.

Olhou com um pouco de nojo a carne. Havia alguns fios de ovos juntos. Comeu os fios doces e separou o peru com cuidado.

O seu pai olhou o prato e disse:

-Ué, não vai comer o peru não?

Meteu a mão no prato e agarrou uma fatia, colocando-a na boca e mastigando com gosto.

Restava uma fatia. “Bem”, pensou, “se papai comeu acho que não deve ser ruim”.

Colocou um pedaço na boca e mastigou. Não, não é ruim.

Foi até a mesa e pediu mais ‘a sua mãe. Disse:

- Bota mais um pouco de peru, mãe. Só não quero se for a parte do saco.

PS:

O texto acima acabou de receber um comentário de desagrado que transcrevo:

""20/12/2006 15h57 - ronaldo

Não sou moralista, mas acho deprimente que alguém pense ser engraçado escrever um conto infantil fazendo analogias entre o saco do peru e as partes da anatomia masculina vulgarmente conhecidas como tal. Sou do tempo em que literatura infantil servia para ensinar valores positivos para crianças. Mas o mundo atual acha bonito a erotização infantil, então o que se vai fazer? Depois reclamam da prostituição infantil...""

Acho que as opiniões são livres e todas pertinentes. E elas revelam facetas de cada um que existem e são válidas. No entanto, percebo no comentário um certo amargor injustificável. Achar que a simples analogia de "peru e saco com certas partes da anatomia vulgarmente conhecidas como tal" seria uma erotização infantil! Que idéia mais esdrúxula. Os garotos sabem que têm peru e as meninas sabem muito mais de peru e sapa que para eles não tem conotação especial, é uma parte do corpo como outra qualquer, do que a velha geração que vê erotização em tudo. O texto acima não tem erotismo nenhum. Relacionar o texto com a prostituição infantil? Aonde? Por que? Enfim, cada um bota o que está na própria cabeça. E cada um julgue por sí.

No entanto o Ronaldo tem razão em um certo aspecto. As histórias destinadas ao público infantil devem ser claras, pois as crianças talvez não entendam o duplo sentido das palavras. E, com certeza, não acharão engraçada a história contada acima, que, inclusive mobiliza certas angústias infantís na esfera psicológica. Poderia ser lida por crianças com estrita supervisão de adultos para esclarecer os pontos que ficassem obscuros para elas.

De resto, devo lembrar que a confusão entre os significados da palavra peru é notória e muitas crianças não comem peru por causa disso.

'A propósito de literatura infantil, há um bom artigo de Lêda Dantas, "Literatura Infantil e Ética: uma experiência na escola pública", em http://www.proext.ufpe.br/cadernos/educacao/liter.htm

Jax Levin.