ILUSTRE HABITANTE*
Ela era uma típica cidadezinha do interior, com suas matas, árvores frutíferas e igarapés – cada um melhor do que o outro –; levávamos aproximadamente uma hora e meia para chegarmos até lá.
Uma parte dos melhores momentos de nossa infância foram passados ali. Costumávamos ir eu, meu primo Elson, e meu amigo Felipe, filho da proprietária da casa, dona Raimunda.
A casa era simples, como a maioria das casas do interior. O que nos motivava a ir até lá eram os terrenos com muitos cajueiros, biribazeiros, ingazeiras e outras frutíferas, além dos banhos nos igarapés. Também nos chamavam a atenção os habitantes da casa.
Dona Raimunda era sempre muito alegre e com uma característica particular: a voz. Falava alto, mas, sempre que Felipe lhe chamava atenção, mudava de tom rapidamente, falando tão baixo que se tornava incompreensível, só se ouvia uns chchchcchchchch, o que causava muitos risos, principalmente em mim e meu primo.
Seu Deucimar era o compadre inseparável de D. Raimunda e seu Afrozino, que participou como combatente na Segunda Guerra Mundial. Como dizia, seu Deucimar era tão abnegado aos compadres que, quando seu Afrozino morreu, não mediu esforços para ficar com a viúva, pois dizia: – Compadre Afrozino me fez jurar em seu leito de morte que não abandonaria a comadre Raimunda por nada nesse mundo.
Olinda era a filha mais nova de dona Raimunda. Na verdade de linda só tinha o nome. Era totalmente desprovida de beleza, chegando mesmo a ser sem graça nenhuma, mais parecia uma garça, tamanhas eram as canelas.
Porém o morador que mais chamava atenção não era humano. Seu aspecto inicialmente causava repulsa. Mas logo que o conheciam a má impressão desaparecia. Muitos vinham de outras paragens só para ver tão ilustre figura.
Era chamado carinhosamente de Bu. Ele se afeiçoou de tal maneira à família que passou a fazer parte dela. Sentia ciúmes quando um de nós tentávamos nos aproximar de dona Raimunda. Logo aparecia tentando, com suas bicadas, nos afastar dela.
De tanto irmos ali, também passamos a fazer parte do rol de amigos do Bu, de tal maneira que passou a nos ver como um dos da casa.
Um belo dia de sol, quando mais uma vez fomos visitar aquele lugar, ficamos assustados. De longe avistamos uma multidão em frente à casa de dona Raimunda. Era um alvoroço só. Gente entrando e saindo. Felipe correu para ver o que acontecera. Ficamos mais atrás, pois estávamos com algumas bagagens. Quando, de repente, ouvimos lá de dentro. - Ele morreu! Ele morreu! Aí corremos também para ver do que se tratava. Para nossa surpresa, o motivo de tanto alvoroço era Bu, que havia recebido um tiro de algum caçador perverso.
O lugarejo parou para acompanhar os funerais de um dos seus mais famosos habitantes. Houve até banda de música e discurso diante do caixão improvisado do morto. Foi uma choradeira só. No cemitério, Dona Raimunda desmaiou várias vezes, dizia não suportar a ausência do amigo. Nem quando seu Afrozino morreu a viúva chorou tanto. Seu Afonso ficou até meio enciumado com tanta dedicação.
Depois da morte do Bu a casa de dona Raimunda não foi mais a mesma.
* COSTA, LAIRSON. INSANIDADES, Belém: L & A Editora, 2002.