SÃO JESUS DE ALGARVES
SÃO JESUS DE ALGARVES
(Lenda portuguesa do ciclo sebastianista, recontada por William Lagos, 3/7/11.)
SÃO JESUS DE ALGARVES I
Em uma aldeia chamada Nazaré,
que fica perto de Aljesur, uma cidade
do Reino de Algarves, em humildade,
vivia uma família (no sopé
do monte Fóia, que se erguia imponente
sobre os picos da Serra de Monchique),
tão pequena que ninguém sabe onde fique,
mas habitada por industriosa gente...
O marido era chamado de José
e sua mulher Maria, simplesmente.
Embora os dois se amassem ternamente,
filhos não tinham. Rezavam com muita fé
para tal bênção conceder-lhes Deus:
eram bem pobres, José um carpinteiro;
Maria criava galinhas no terreiro,
os dois de antiga linhagem de judeus...
Embora ambos nascessem portugueses,
viviam sob o domínio dos califas,
que moravam entre sedas e alcatifas,
num enorme palácio... Muitas vezes
seus aguazis vinham cobrar impostos
ou ordenavam José a consertar
seus carroções, mas sem nada lhe pagar,
gozando à farta todos os seus gostos...
SÃO JESUS DE ALGARVES II
Um dia, em que Maria trabalhava,
fazendo bolos, para depois vender,
diante da porta veio aparecer
um cavaleiro. Sua armadura cintilava...
Maria, no começo, se assustou,
porém logo lhe explicou o cavaleiro
que do Deus Jeová era mensageiro
e boa notícia lhe comunicou...
"Maria, hoje irás engravidar
e então terás o teu primeiro filho.
Da lei eterna seguirá o trilho
e a obediência a Jeová irá ensinar.
Não tenhas medo, tudo há de correr bem:
teu marido ficará muito contente!..."
E abrindo as asas, num clarão nascente,
ergueu-se aos céus, pois era anjo também!
Deu a notícia Maria a seu marido
e os dois rezaram, em agradecimento,
na alegria sã desse momento,
pois ter um filho os dois tinham querido...
E por maior que fosse sua pobreza,
pensou José tão só trabalhar mais.
Por mais despesas não lastimou jamais,
mas lançou-se à sua obra com firmeza!...
SÃO JESUS DE ALGARVES III
Ora, acontece que os maometanos,
que o Algarves nesse tempo dominavam,
por converter os judeus não se esforçavam:
só lhes cobravam mais que aos muçulmanos.
Pois dispensavam ao verdadeiro crente
de uma série de impostos e de taxas.
Sobre cristãos e judeus pesavam faixas
que tinham de pagar continuamente...
Mas um dia, o Califa de Granada
mandou fazer novo recenseamento,
conferindo de sua gente o pagamento
que sua riqueza mantivesse assegurada.
Como a família de José longe morava,
numa cidade chamada de Odeleite
e Maria ainda ao bebê desse seu leite,
essa viagem bem que os prejudicava!
Assim, Maria de sua mãe lembrou.
Ana morava em Lisboa. E decidiram
para o norte partir e, então, fugiram,
numa noite em que o luar não despontou!
Maria seguiu montada em um burrinho,
com dois surrões ainda carregado:
um de comida e o outro atopetado
com as ferramentas do carpinteirinho!
SÃO JESUS DE ALGARVES IV
O casal, durante a noite, planejava
cruzar o rio que sai do Lago Mira
e em direção ao Atlântico se vira,
que então fronteira com Portugal formava.
Mas descobriram uma guarda muçulmana,
a impedir do riozinho a travessia...
Então, José explicou à sua Maria
que iria acatar a ordem maometana.
Mudaram rumo, em direção ao Oriente,
a Serra de Monchique atravessando.
O Monte Fóia foram contemplando,
erguido à esquerda, nevado e imponente!
Passados muitos dias, chegaram, finalmente,
a Odeleite, para ali se registrar.
Mas seu sogro José pôde encontrar:
o bom Joaquim, que estava ali presente!
Ele falou que obedecera, sim,
porque ainda tinha ali uma propriedade,
mas que já a vendera, na verdade.
"Volto a Lisboa!" disse Dom Joaquim.
"E por que vocês dois não vêm comigo?
Minha mulher vai adorar ver o netinho!..."
Então os três encetaram o caminho,
pela serra desolada e sem abrigo...
SÃO JESUS DE ALGARVES V
Foram cruzar o Ribeiro de Vascão,
outra fronteira com o sul de Portugal.
Esse rio era mais longo e, no final,
eles passam por onde os guardas não estão!
Chegaram a Almodóvar, no outro dia,
aos pés do imponente Monte Mu.
Escalvado e vazio seu pico nu,
logo ao norte da fronteira ele jazia...
Seguiram então os três para Lisboa.
A neve pelos campos se estendia...
Eram poucas as fraldas de Maria,
já desgastadas pelo andar à toa...
Então chegaram à casa de Joaquim:
abriu sua porta, sorridente, Ana...
Com alegria seu neto ela reclama,
agradecida em conhecê-lo, enfim...
Eram pobres também, todos os dois,
mas sempre existe lugar para mais um!
A profissão de José era comum,
mas emprego encontrou logo depois.
Joaquim também tinha a profissão
de "carapina" e foram-se arranjando;
Ana e Maria uma à outra se ajudando,
como dizem as palavras da canção:
Nossa Senhora lavava,
São José estendia...
E o Menino chorava
do frio que então fazia...
SÃO JESUS DE ALGARVES VI
Pois nesse ano foi o inverno rigoroso,
porém na casa nunca faltou lenha.
Com cavacos de madeira e o que mais tenha.
José mostrou-se muito cuidadoso
e foi comprar no mercado alguns novelos
para que fosse tecer a boa Maria...
Dona Ana no tear também tecia,
pelo nenê perdidas em desvelos...
Nossa Senhora faz meias,
a linha é feita de luz...
O novelo é a Lua Cheia:
as meias são pra Jesus!...
Cresceu o menino, forte e bem robusto,
enquanto as guerras prosseguiam ao redor.
Demonstrou para a madeira ter pendor,
fazendo móveis de alto e baixo custo...
Mas um dia, encontrou três cavaleiros,
que subiam do Algarves e contavam
como os mouros aos católicos maltratavam,
de forma bem diferente dos primeiros...
Então Jesus saiu para a Cruzada,
pregando aos portugueses Reconquista.
Para que o povo em sua luta insista,
de boa madeira ele fizera longa espada.
E com ela tocava nos feridos,
que se curavam nessa mesma hora
e as tropas portuguesas, sem demora,
venceram cem combates desabridos!
SÃO JESUS DE ALGARVES VII
Jesus não foi general,
mas incitou bravamente
essa lusitana gente,
com grande vigor marcial.
E resolvido a contento
seu impulso triunfal,
quis afastar-se do mal
e foi morar num convento!...
Morto o rei dessa nação,
ao trono de Portugal
subiu seu filho, afinal,
o nobre Dom Sebastião!
Formou exército aguerrido
para os mouros derrotar.
Jurou Algarves conquistar
e seu voto foi cumprido!...
Mas o nome de Jesus era invocado
por todos os soldados portugueses,
nesses combates que levaram meses,
a cada dia se fazendo mais sagrado.
Seus menestréis então também cantavam
longas baladas sobre a vida de Jesus:
como impusera sobre o povo a cruz
e era deste modo que entoavam:
SÃO JESUS DE ALGARVES VIII
"Num humilde vilarejo,
dominado pelos mouros,
nasceu sem quaisquer tesouros,
mas acolhido num beijo,
um menino pobrezinho,
o filho de um carpinteiro,
que em busca de mais dinheiro,
encetou outro caminho..."
"Movido pelo seu medo,
José comprou um burrinho
e Maria e o menininho
levou, com todo o segredo,
às terras de gente boa,
em que pudesse ganhar,
dinheiro e os dois sustentar:
foram morar em Lisboa!..."
Mas decidiu El-Rei Dom Sebastião
tomar as terras que havia na outra margem.
Montou o exército e com máxima coragem,
velejou em poderosa embarcação!...
Por orgulho ou por vaidade castigado,
foi derrotado em Alcácer-el-Kebir!...
Os lusitanos tiveram de fugir
e o próprio rei morreu, em seu pecado!...
SÃO JESUS DE ALGARVES IX
Seu corpo foi transportado,
na armadura reluzente...
Foi viagem diferente
da que havia carregado
o jovem Dom Sebastião,
todo cheio de esperança,
que a vitória não alcança,
lanceado no coração!...
Com a morte de seu rei,
que nunca tivera filhos,
pelos domésticos trilhos,
conforme mandava a lei,
quem essa coroa ganha,
extinta a casa de Aviz,
um prêmio que sempre quis,
caberia ao Rei da Espanha!
Trazendo no peito a cruz,
os senhores lusitanos,
vestidos de negros panos,
vão em busca de Jesus...
Que morava no mosteiro,
nas terras de Trás-os-Montes,
com jardim cheio de fontes
e um pomar de limoeiro...
SÃO JESUS DE ALGARVES X
Recebeu então Jesus esses senhores...
"O que quereis de mim?" lhes perguntou.
"Nós soubemos que o Senhor ressuscitou
várias pessoas de múltiplos pendores...
Precisa então ressuscitar o nosso rei!...
Dele depende todo o Portugal!...
A sua espada corrigia todo o mal
e deixou órfã a sua inteira grei!..."
Porém Jesus, mansamente, respondeu:
"Não é verdade que o rei não tenha herdeiro!
Há Dom Henrique, que foi cardeal primeiro
e pode agora ocupar o trono seu!..."
Mas responderam os senhores lusitanos:
"Senhor, nós respeitamos o cardeal
e o que dissermos, não será por mal,
mesmo que os ditos pareçam desumanos..."
"Mas ele está velho, já quase faz oitenta!
E sendo padre, nunca teve filhos!...
Quando morrer, a sucessão nos trilhos
caberá ao Rei da Espanha, que já tenta
obter a coroa. Pois sua mãe era irmã
do pai de nosso rei Dom Sebastião...
Tem o direito, pela lei da sucessão
e os portugueses a independência perderão!
SÃO JESUS DE ALGARVES XI
Jesus de Algarves era português...
Era judeu, mas católico devoto...
E desse modo, proferiu o voto
de fazer o que pediam... E assim fez.
O cadáver do rei, secretamente,
fora trazido pelos nobres lusitanos,
amortalhado em ouro e roxos panos
e Jesus o contemplou bem longamente...
Viu que o espírito habitava ainda
naqueles restos mortais sob a armadura
e que possuía também a alma pura
e a afeição pela fé mostrava infinda...
Ficou Jesus a sós com Sebastião
e indagou-lhe se outra vida merecia...
O rei sua bênção logo lhe pedia
e então Jesus lhe tocou no coração.
"Pois está certo. Eu te ressuscitarei."
E assim Jesus de Algarves foi galgar
do monastério o resistente altar
e se estendeu sobre a cruz, pelo seu rei.
Com cravos mágicos ficou ali pregado
e gotas de seu sangue derramado,
pingaram sobre o corpo ali deitado,
que lentamente foi sendo reanimado...
SÃO JESUS DE ALGARVES XII
Então Jesus desceu de sobre o altar
e fez com que sentasse em seu caixão
esse formoso rei, Dom Sebastião,
para lição de humildade lhe ensinar...
O rei ergueu-se, meio confuso, ainda.
"Então, eu não morri?" "Morreste, sim,
mas para a vida quis trazer-te assim
desde que a tua obediência seja infinda..."
"Eu te darei um exército de anjos
e outro exército formado por judeus.
Lembra que toda a vitória vem de Deus
e não do homem, com todos seus arranjos!
Conquistarás assim a Espanha inteira
e invadirás os reinos desses mouros.
Recobrarás então os mil tesouros
que roubaram desta terra hospitaleira!..."
"E enquanto fores fiel,
terás todo o meu favor.
Mas lembra que sou judeu!
Vou meu povo proteger.
E não te darei quartel,
se olvidares meu amor,
que tanta glória te deu
e te fez enriquecer!..."
SÃO JESUS DE ALGARVES XIII
Dom Sebastião conquistou,
com sua tropa de arcanjos
e uma tropa de judeus,
a terra inteira dos mouros!
Eram judeus portugueses,
lusitanos os seus anjos,
todos votados a Deus,
sem cobiça de tesouros!...
E com sua tropa aguerrida,
dessa gente portuguesa,
foi conquistar, com firmeza,
toda a Espanha enriquecida,
guiados numa só proa,
em poderosa nação,
sob o cetro de sua mão:
e a capital foi Lisboa!...
Então o Bispo Dom Antonio de Lisboa
organizou um grande festival...
E como prova dessa graça divinal,
logo no mar se divisou a proa
de um barco totalmente diferente!...
Uma galera remada pelos anjos,
com Maria e Jesus e seus arcanjos,
para mostrar seu favor a toda a gente!...
E o bom povo lisboeta então dançava
a mucharinga e com prazer cantava:
Vamos, Maria, vamos,
na praia a passear!...
Vamos ver a barca nova
que do céu caiu ao mar!...
Nossa Senhora vem dentro,
os anjinhos a remar...
Santo Antonio é o piloto,
Nosso Senhor, general! General! General!
Mas troçava a rapaziada:
O qu'é aquilo, o qu'é aquilo, o qu'é aquilo?
É São João, a comer um grilo!...
Ai, não é nada, não é nada, não é nada!
É São João, a comer pescada!...
Só acabando a brincadeira,
pela guarda dispersada...
SÃO JESUS DE ALGARVES XIV
E cumpriu Dom Sebastião
suas promessas a Jesus.
Para julgar teve a luz:
protegeu, com compaixão,
os seus judeus portugueses;
e para evitar desdouros,
também protegeu os mouros,
por muitos anos e meses...
Mas tudo passa sobre a humana terra...
Sebastião envelheceu, após a guerra.
Jesus de Algarves permanecia no convento
e aos poucos, esqueceram seu portento.
Assim o Papa de Roma restaurou
o seu poder em Portugal e colocou,
junto ao ouvido do rei, um confessor,
que o influenciava, com o maior fervor!...
E um dia, Dom Sebastião
escutou seu confessor,
por quem nutria temor,
esquecida a compaixão...
E ordenou a conversão
de seus súditos judeus,
os pobres filhos de Deus,
após jurar proteção...
SÃO JESUS DE ALGARVES XV
A índole, contudo, portuguesa,
é bem menos feroz que a do espanhol.
Mesmo iludido por tão mau farol,
Dom Sebastião não agiu com igual frieza
que a do rei Dom Fernando de Isabel...
Mas os judeus enviou para o Brasil...
Não os forçou a qualquer destino vil,
porém seu voto quebrou: foi infiel!...
Jesus de Algarves, que seu sangue derramou
por amor dele, então entristeceu-se
e dele retirou sua proteção!...
Numa caçada, o rei se acidentou:
quebrou a perna e logo gangrenou-se,
sem conseguir a menor recuperação!...
E morreu Dom Sebastião,
sem ressuscitar de novo,
enterrado pelo povo,
na aldeia de São Romão!...
Por sorte, tinha um filho já crescido,
nascido na cidade de Bragança:
subiu ao trono como o quarto João!...
De Sebastião o corpo está escondido,
para guardar de seu povo a esperança:
retorna um dia para a sua salvação!...
Jesus de Algarves entendeu, porém,
Que fora inútil retornar, também...
E então subiu à Torre de Belém,
alçando voo ao Paraíso além!...