O TESOURO DO ALHAMBRA (em versos)

O TESOURO DO ALHAMBRA I (10 jun 11)

(William Lagos, conto popular espanhol,

recontado em versos.)

Antigamente, não havia água encanada,

embora a houvesse no tempo dos romanos,

porque deixaram entupir-se os canos,

naquela bela cidade de Granada...

Havia na cidade um aguadeiro,

chamado Peregil, que diariamente

descia até o rio e, diligente,

enchia de água seu barril, ligeiro.

Como era pobre, não tinha nem carroça

e sobre as costas carregava seu barril,

vendia um litro de água por ceitil:

seria um centavo na moeda nossa...

Embora vendesse a água facilmente,

não tinha condições de cobrar mais,

porque havia aguadeiros por demais,

numa feroz concorrência por cliente.

O TESOURO DO ALHAMBRA II

Peregil descia ao rio, tempo inclemente

ou mais suave, com chuva ou tendo sol.

Levantava-se bem antes do arrebol

e iniciava o seu trabalho, bem contente.

Esvaziado o barril, voltava ao rio

Genín ou ao Beiro, porém nunca ao Darro,

porque suas águas traziam muito barro,

desde a Sierra Nevada, sem desvio.

Quatro barris vendia, tendo sorte,

embora à noite já estivesse exausto.

Cinquenta litros levava em cada hausto,

meio maravedi ganhava em cada porte.

E assim, no máximo, dois maravedis reunia,

com tanto sacrifício conquistados...

Mas sete filhos recebera pelos fados

e em seu sustento cada ceitil se ia...

O TESOURO DO ALHAMBRA III

Pouca desgraça não passa de bobagem,

qual nos ensina esse velho ditado:

sua esposa faleceu, em resultado

de uma febre, que pegou numa viagem,

quando ia mostrar para os avós

seu filho mais novinho, de três meses...

E como sucedeu já tantas vezes,

quando as crianças são deixadas sós,

foi Jéssica, a mais velha, que assumiu

o cuidado dos seis irmãos menores...

Dos onze anos ainda nos verdores,

todo o trabalho da casa consumiu.

Pois era Jéssica que fazia as refeições,

lavava as roupas, limpava a moradia,

trocava fraldas e, quando isso exigia,

até ninava seus pequenos corações.

O TESOURO DO ALHAMBRA IV

Granada é uma cidade muito antiga:

há muralhas do tempo dos iberos,

do século sexto a.C., períodos feros

de seus combates contra a inimiga

Cartago, que aos gregos conquistara

da terra hispânica o inteiro sul:

desde a Sierra Nevada ao mar azul.

E ao povo celta e ibero escravizara.

Até que, finalmente, vêm romanos

e conquistam toda a Hispânia, por vingança

contra Aníbal, que quase Roma alcança,

em sua invasão, descendo os altiplanos

dos Alpes, nas batalhas vencedor,

até chegar a Cápua, onde ficou...

E até hoje ninguém sabe o que o parou,

sem conquistar a capital em seu ardor.

O TESOURO DO ALHAMBRA V

Porém vencida sua rival Cartago,

toda a Espanha, devagar, colonizaram.

A cidade como Ilíberis chamaram,

ao incluí-la em seu romano pago.

E ali ficaram, por seiscentos anos,

aquedutos e esgotos construíram,

alguns dos quais até hoje não ruíram:

construíam para durar, esses romanos.

Mas quando o Império enfim se esfacelou,

os visigodos conquistaram a Espanha,

vindos do norte, das plagas da Alemanha,

e então o Reino de Toledo se formou.

Este incluía toda a Vega de Granada,

mas escolhiam seu rei por eleição

e foi isso que causou a divisão

que trouxe aos visigodos derrocada.

O TESOURO DO ALHAMBRA VI

Do falecido rei os partidários

queriam Ágila Segundo em seu lugar.

A maioria, porém, pôde alcançar

o partido de seus adversários,

que apoiaram a eleição de Recaredo.

O novo rei só apoiava os que eram seus;

quis obrigar à conversão os judeus

e semeou entre os oponentes um tal medo

que convidaram Tarik, que no norte

da África governava pelo Islam,

a que viesse em seu socorro e, neste afã,

facilitaram de suas tropas o transporte.

Venceu Tarik facilmente a Recaredo,

com o apoio de milhares de inimigos.

Mas nunca mais voltou a seus abrigos

e a Espanha inteira submeteu seu dedo!

O TESOURO DO ALHAMBRA VII

E assim copiaram a arquitetura os mouros,

que os visigodos haviam conservado,

de acordo com o modelo antes criado

pelos romanos. Pilharam todos os tesouros,

as igrejas transformaram em mesquitas,

banindo os santos, as cruzes e os altares.

E os afrescos, nas paredes dos lugares,

recobriram com mosaicos, longas fitas

de arabescos, arcos gráceis, minaretes...

Copiaram dos romanos seus jardins,

conservaram suas fontes e alfenins:

água corrente nos seus palacetes,

nos banhos públicos e em cada residência.

Os moçárabes cristãos escravizados

esculpiram os imensos rendilhados,

desenhados nas pedras com paciência.

O TESOURO DO ALHAMBRA VIII

Chamaram os árabes a cidade de Ilibira,

desde o momento em que a conquistaram.

Por sete séculos ali se conservaram,

mudando o nome novamente para Elvira,

durante a dinastia dos Zirís...

Quando ali se formou um califado,

foi o nome outra vez modificado:

Foi Medinet El-Garnata, como quis

O capricho do califa, que apreciava

muito as romãs que a terra produzia.

O Alhambra e o Albayzín já construía

e no jardim Generalife descansava...

Pois esta capital, tão afamada,

foi a última que os cristãos reconquistaram

e aos poucos, seu nome transformaram:

por isso a chamam hoje de Granada...

O TESOURO DO ALHAMBRA IX

Porém depois de completada a Reconquista,

os espanhóis mostraram ódio aos mouros

e em sua cobiça, na busca de tesouros,

demoliram os palácios, em sua pista...

As mesquitas voltaram a ser igrejas,

mas os esgotos ficaram abandonados.

Da Inquisição os padres desconfiados

diziam que banhos eram coisas malfazejas.

Um bom cristão devia a alma lavar:

tomavam banhos os judeus e muçulmanos,

como os pagãos do tempo dos romanos,

agora o corpo era preciso desprezar...

Assim, os aquedutos demoliram

e a cidade não mais teve água corrente.

Por isso os aguadeiros, em frequente

labor até os rios se dirigiram...

O TESOURO DO ALHAMBRA X

E foi assim que Peregil fez-se aguadeiro

e trazia nas costas sua barrica,

vendendo água para gente rica

e se esforçando assim o dia inteiro...

Seus concorrentes tinham carroções.

Traziam água com muitos barris

e assim ganhavam mais maravedis,

vendendo de água muito mais porções...

Mas Peregil se esforçava diariamente,

exceto nos domingos. Muito cedo

se levantava e, com um certo medo,

cortava lenha que fosse suficiente

para a semana inteira e consertava

o telhado, quando o tempo o permitia.

Trocava as roupas, a refeição comia

e a família para a missa então levava.

O TESOURO DO ALHAMBRA XI

Peregil era um católico devoto

e sempre ia à catedral agradecer

por sua saúde e por sete filhos ter:

levava velas e cumpria cada voto.

Depois da missa, conduzia suas crianças

para um passeio no palácio abandonado,

que de Alhambra ainda era chamado,

onde almoçavam, sem grandes abastanças.

Sua família já tivera certas posses,

porém impostos os haviam arruinado...

Mas o aguadeiro não era revoltado:

só recordava da infância os tempos doces...

Depois, Jéssica pegava um livro antigo,

todo ilustrado, com contos de fadas,

para ler durante horas encantadas...

E os irmãos brincavam, sem qualquer perigo.

O TESOURO DO ALHAMBRA XII

Contudo um dia, decidiu o governador,

Ortuño Ortega de Ortiz y Orellana,

aumentar os impostos, pela insana

despesa com seu luxo e esplendor...

Determinou Dón Ortuño aos aguadeiros

que pagassem um maravedi diariamente

pela água, que dizia pertencente

ao rei, senhor dos rios e dos outeiros.

Os outros reclamaram, mas pagaram,

mas como Peregil iria pagar?

Dón Ortuño mandou-o convocar

a seu palácio e os guardas o buscaram.

Ele explicou que não podia pagar,

que só ganhava dois maravedis por dia...

Mas Dón Ortuño exceções não permitia:

"Não tens dinheiro?Pois terás de trabalhar."

O TESOURO DO ALHAMBRA XIII

"Mas como vou meus filhos sustentar?"

"Há os domingos, ou será que tem preguiça?"

"Mas, senhor, aos domingos vou à missa!

Nos domingos não se pode trabalhar!..."

"Isso decido eu," falou Orellana.

"Aos domingos, você vai ao Generalife,

com sua família, não vai, hein, seu patife?

Vai procurar o tesouro, não me engana!"

"Não é isso, senhor governador,

meus filhos brincam depois que almoçamos,

é um lugar seguro, nos deitamos

no capim ou na sombra, se há calor..."

"Pois é lá mesmo que você vai trabalhar.

Você gosta de água, arrume a fonte,

capine o mato, conserte aquela ponte...

Mas a sua dívida terá de me pagar..."

O TESOURO DO ALHAMBRA XIV

E deste modo, o pobre Peregil

foi trabalhar aos domingos, pela tarde,

no frio, na chuva ou quando o sol mais arde

e sem ganhar em troca um só ceitil!

Jéssica ficava cuidando dos irmãos

ou lia no seu livro histórias de ouro...

Umas falavam de um grande tesouro

no Alhambra, que em mil labores vãos,

já haviam procurado, sem achar.

Mas o pai lhe apagava a esperança.

"Esse livro é o que sobrou de minha herança,

a única coisa que pude retirar

da casa de meu pai, que confiscaram,

para pagar impostos atrasados...

Mas são apenas contos encantados:

já mil vezes o tal tesouro procuraram!"

O TESOURO DO ALHAMBRA XV

Mas um dia, seus irmãos bem entretidos,

Jéssica quis as ruínas explorar,

por corredores sem luz a caminhar,

salvo onde os tetos tinham sido removidos.

De repente, uma luz brilhou no escuro,

depois que o corredor dera uma volta,

numa fumaça amarela toda envolta...

A luz do sol não era, bem seguro...

Pé ante pé, avançou devagarinho,

ouvindo forte bater seu coração,

até chegar à porta de um salão...

Espiou por uma fresta, de mansinho...

E uma voz disse: "Pode entrar sem medo!

Aqui só chega quem tem coração puro...

Uma esperança vê brilhar no escuro

e desvenda, desse modo, meu segredo..."

O TESOURO DO ALHAMBRA XVI

Jéssica abriu a porta do salão,

de cortinados e almofadas adornado,

tapeçarias e jarrões por todo o lado,

candelabros dando luz em cada vão...

E no centro do salão, uma princesa,

sentada sobre um cofre, recoberto

por um pano de veludo, o olhar aberto

e franco, refletindo sua pureza...

"Não tenha medo," a donzela repetiu.

"Eu sou dos visigodos a princesa...

Por um encantamento fiquei presa,

que um perverso mago produziu..."

"Eu sou cristã e não quis me converter

ao islamismo, depois de sua conquista...

E esse mago, Al-Azhar, um alquimista,

lançou feitiço para me prender..."

O TESOURO DO ALHAMBRA XVII

"Estou aqui há setecentos anos

e nas minhas pernas trago três correntes

de ouro, prata e ferro, contundentes,

sujeita a seus caprichos desumanos."

"Todo esse tempo, não entrou aqui ninguém.

Este quarto é protegido por Sheitan,

que é o nome que ao diabo dá o Islam:

foi convocado por Al-Azhar, também..."

"Mas o diabo fez que adormecesse!...

Estou sentada sobre seu caixão.

Em cada canto do quarto há um jarrão,

com um guardião que a me vigiar não cesse."

"Sou prisioneira," insistiu a jovem loura,

"Cada guardião tem a chave de um cadeado,

mas esse encanto só pode ser quebrado

por jovem pura... Serás minha redentora?"

O TESOURO DO ALHAMBRA XVIII

A menina fez que sim, ainda com medo...

"Palavras mágicas vou agora te ensinar,

para esse encantamento ires quebrar...

Eu sou Ricarda, filha de Recaredo,

o último rei visigodo de Granada...

Vai ao altar em que se ergue a taça,

esculpida em cristal puro e sem jaça,

toma seu vinho, sem temer mais nada,

pois no fundo desse graal encontrarás

uma lua, uma estrela e uma cruz.

Cada símbolo é um arcano que reluz

e com os quais o feitiço quebrarás..."

Jéssica o salão inteiro atravessou;

tomou o vinho, cheia de confiança,

em sua meiga inocência de criança...

E os três arcanos, sem dúvida, encontrou!

O TESOURO DO ALHAMBRA XIX

"Preste atenção a tudo o que eu disser:

Estas palavras terás de repetir!...

Para forçar Sheitan a permitir,

o desencanto exatidão requer!..."

"Por três arcanos na palma de minha mão,

Diablos, te conjuro a abrir os três jarrões

e a libertar os pobres corações,

aprisionados por ímpia maldição!..."

Tudo Jéssica repetiu, sem duvidar.

Ouviu-se um estrondo e três rolhas saltaram

e os objetos em sua mão brilharam!...

Já os outros versos conseguira decorar...

Ela avançou para o jarrão prateado,

contendo o espírito do primeiro guardião,

O cigano Mylanos, mostrando na sua mão

a lua de prata, de fulgor alado...

O TESOURO DO ALHAMBRA XX

"Belo espírito, aqui aprisionado,

da corrente de prata dá-me a chave!

A Lua te darei, sem mais agrave..."

disse Jéssica, como tinha decorado.

Da tampa do jarrão subiu fumaça,

que no corpo de um cigano condensou.

Logo a seguir, uma chave lhe entregou,

depois sumiu no ar, rendendo graça...

Jéssica voltou então até a princesa,

no cadeado fez girar chave de prata

e sem esforço sua corrente se desata!

Ricarda agradeceu-lhe, com presteza...

E lhe ensinou as palavras de magia

que iriam libertar outro guardião.

Era um judeu, chamado Salomão,

a quem a chave de ouro pertencia.

O TESOURO DO ALHAMBRA XXI

"Nobre espírito, aqui aprisionado,

da corrente de ouro dá-me a chave!

A Estrela te darei, sem mais agrave..."

disse Jéssica, tal qual fora ensinado.

Surgiu fumaça do jarrão nesse momento;

condensou-se o espírito guardião,

pôs a chave de ouro na sua mão

e no ar sumiu, com um agradecimento.

Como o cigano, que carregara a Lua,

ele levou a Estrela de David...

O seu espírito subiu logo dali

e no Seio de Abraão hoje flutua...

A nova chave girou em seu cadeado,

a princesa respirou, mais aliviada!...

Faltava pouco para ser desencantada,

já duas correntes caídas do seu lado...

O TESOURO DO ALHAMBRA XXII

Com a nova cantilena decorada,

foi Jéssica até o último guardião,

o príncipe Ludovico, que era irmão

da princesa há tantos anos encantada.

"Santo espírito, aqui aprisionado,

da corrente de ferro dá-me a chave!

A Cruz eu te darei, sem mais agrave..."

disse Jéssica, conforme o seu mandado.

Uma nuvem do gargalo então surgiu

e um cavaleiro de armadura apareceu!

Pegou a cruz e a chave então lhe deu,

disse uma prece e para o céu subiu.

Jéssica abriu a última corrente

e a princesa Ricarda então se ergueu...

Com um suspiro, os membros distendeu

e a envolveu num abraço amigo e quente...

O TESOURO DO ALHAMBRA XXIII

"Tu me salvaste, menina corajosa!...

Não te assustes com o que irá acontecer:

a parede do salão vai-se romper;

verás meu pai com escolta numerosa..."

Manteve Jéssica firme nos seus braços.

A parede caiu!... Logo, imponente,

chegou um rei de armadura refulgente,

feições iguais a de Ricarda os traços...

Em corcéis ajaezados para festa,

os três guardiães chegaram igualmente,

em vestes brancas, cada qual mais reluzente

com os arcanos a brilhar em cada testa!

Após beijar a filha, disse o rei:

"Os três jarrões são o prêmio do portento,

pura Jéssica, pois quebraste o encantamento

mas não leves mais nada, pois essa é a Lei!"

O TESOURO DO ALHAMBRA XXIV

"Cada um deles contém grande tesouro:

um de dinares de prata se acha cheio;

outro tem jóias e pérolas, meio a meio

e há no terceiro maravedis de ouro!..."

"São pesados demais, chama teu pai:

ele tem forças para os carregar,

mas ninguém pode trazer para ajudar,

se outrem entrar, daqui nunca mais sai!"

"Eu te agradeço pelo que fizeste

e rezaremos por ti no Paraíso...

Vamos partir agora, que é preciso:

um bom futuro ganhaste e mereceste!..."

Ricarda despediu-se da menina

e a comitiva inteira retirou-se.

A parede que se abrira então fechou-se,

nova magia que a Jéssica fascina...

O TESOURO DO ALHAMBRA XXV

Olhou em torno... Ali estavam os jarrões,

os candelabros acesos, até a arca,

coberta de veludo, mas sem marca

da prisioneira ou sinal de maldições...

Foi então Jéssica em busca de seu pai,

que a procurava já no corredor.

Contou-lhe a história toda, sem temor.

O pai duvida, mas até o salão vai...

E retorna, carregando um dos jarrões;

logo o segundo e o terceiro transportou.

Homem sensato, em nada mais tocou,

obedecendo do rei as instruções...

No jardim dois dos jarrões ele enterrou

e carregou o primeiro, em pleno escuro,

para sua casa... E no seu trabalho duro,

pela semana inteira continuou...

O TESOURO DO ALHAMBRA XXVI

Chegou o domingo e foi de novo trabalhar,

depois de ir à missa de costume.

Dessa vez, comprara lenha para o lume,

sem tantas achas precisar cortar...

Jéssica usou algumas moedinhas

para comprar um pouco de comida

e algumas vestes, porque já bem puída

estava a roupa das sete criancinhas.

Mas evitaram chamar muita atenção:

compraram em lugares diferentes;

até que Peregil, para menos frequentes

descidas até o rio, comprou um carroção,

velho e estragado, por preço bem barato

e mais cinco barricas adquiriu...

Muito melhor resultado conseguiu:

agora o imposto podia pagar de fato!...

O TESOURO DO ALHAMBRA XXVII

De noite, trouxe a casa outro jarrão,

escondido no meio das crianças,

muito contentes, cheias de esperanças,

só por poderem passear de carroção!...

Como disfarce, foi pagando a prestação

a carroça e os barris que adquirira...

Mas os outros aguadeiros, em sua gira,

começaram a invejar sua situação...

Na verdade, aumentara até a procura

de água na cidade... E Peregil

não fez os outros perderem um ceitil,

porém a inveja tem sua sombra escura...

E no outro domingo, um esperou...

Viu Peregil saindo do jardim:

que carregava qualquer coisa assim

e de algum roubo logo desconfiou!...

O TESOURO DO ALHAMBRA XXVIII

O aguadeiro foi à guarda e o denunciou.

Não foi levado à sério. Mesmo assim,

que alguma coisa fora achada no jardim

ao superior o capitão comunicou...

Dón Ortuño mandou fazer averiguação

e descobriu que Peregil estava pagando

o imposto e até mesmo amortizando

uma parte da dívida, a prestação...

Depois, descobriu que um carroção,

que lhe pareceu novo, tinha comprado,

porque o aguadeiro tinha tudo reformado

e até pintado, com dedicação...

Suas condições ainda eram obedecidas;

continuava a trabalhar em seu jardim...

Mas juntou dois mais dois e, outrossim,

viu as crianças bem melhor vestidas...

O TESOURO DO ALHAMBRA XXIX

Ambicioso, foi de noite ameaçar

ao aguadeiro. "Diga logo o que encontrou

no Generalife! Alguma coisa achou,

enquanto estava por lá a capinar..."

"Eu poderia até mandar prendê-lo

e o carrasco da prisão, sob tortura,

lhe arrancaria a verdade pura...

Ao sair, ninguém iria reconhecê-lo..."

"Posso mandar sua casa desmanchar,

por uma equipe de busca e apreensão...

Mas essa gente é violenta e sem perdão:

poderiam suas crianças machucar..."

"Mas se você me disser o que encontrou

e for comigo a me mostrar o lugar,

serei bondoso... E posso até deixar

que conserve uma parte do que achou..."

O TESOURO DO ALHAMBRA XXX

Peregil acabou por confessar

que realmente encontrara algum tesouro,

umas moedas de prata, outras de ouro,

mas não podia voltar a tal lugar,

que uma pessoa só poderia penetrar

uma única vez... Terrível maldição

seria o castigo de mais ambição:

só retirara o que podia carregar...

"Porém existe então maior tesouro?"

"Ah, meu senhor, tesouro incalculável!

Mas para mim se tornou inconquistável,

voltar não posso, para meu desdouro..."

Mas Jéssica, nesse instante, aparecia

para dizer que ao local o iria guiar.

Dón Ortuño a seguiu, sem desconfiar:

estava armado e emboscada não temia.

O TESOURO DO ALHAMBRA XXXI

Ela montou na garupa do cavalo

e foram ao Alhambra, em pleno escuro.

Os dois desceram num lugar seguro:

era inverno e ainda nem cantara o galo...

Porém ao ver o longo corredor,

ele ficou um tanto amedrontado...

"Escute bem, menina! Estou armado

e te corto a garganta, sem temor!..."

"Caso alguém me atacar, morres primeiro!"

E como prova de sua resolução,

deu na menina um forte beliscão,

que lhe deixou doendo o braço inteiro...

Mas Jéssica encheu-se de coragem:

"Meu pai deixou atrás da porta o archote.

O senhor acenda... E se algo der o bote,

verá primeiro, para sua vantagem..."

O TESOURO DO ALHAMBRA XXXII

"Eu vou na frente, ao longo do caminho.

Só não posso entrar de novo no salão,

que é proibido por terrível maldição!...

O senhor vai precisar de entrar sozinho..."

Viram a luz, no fim do corredor.

Disse-lhe Jéssica então que era Sheitan,

o demônio mais maligno do Islam,

que defendia o tesouro com ardor.

"Quando o senhor tiver entrado lá,

vai encontrar o diabo disfarçado...

Sobre o cofre do tesouro está sentado:

exija a chave pelo amor de Alá!..."

Dón Ortuño era católico praticante

e não queria se meter com heresia,

tinha medo do diabo e bruxaria...

Mas sua ambição saiu-lhe triunfante...

O TESOURO DO ALHAMBRA XXXIII

Abriu a porta então, com ousadia,

enquanto Jéssica para trás ficava.

A luz por um instante o ofuscava:

piscou os olhos e logo tudo via...

E lá estava a princesa, sorridente...

Porém falou: "Diablos, dê-me a chave,

pelo nome de Alá, sem mais entrave!..."

Sheitan lhe deu a chave, complacente.

Dón Ortuño viu aquele cofre imenso...

A falsa princesa se desvaneceu

e Sheitan prontamente apareceu,

abrindo as asas, em pleno ar suspenso...

Dón Ortuño levantou a cobertura,

disse ao demônio que se fosse embora!...

Sheitan sorriu e sumiu na mesma hora

e então a chave ele girou na fechadura!

O TESOURO DO ALHAMBRA XXXIV

Abriu-se a tampa da arca, facilmente,

porém lá dentro... jazia o feiticeiro!...

Al-Azhar abriu-lhe os braços, bem ligeiro,

e o puxou para dentro, inteiramente!...

Sheitan soltou sonora gargalhada,

bateu com o casco fendido em pleno chão,

as luzes se apagaram e o salão

sumiu inteiro, sem deixar mais nada!...

Correu Jéssica para casa, em seu pavor.

Ninguém a viu voltar na escuridão.

Mas no outro dia, indagava a multidão

qual o destino de seu governador...

Ninguém sentiu de Jéssica suspeita,

mas Peregil pensou maduramente

e decidiu tomar rumo diferente,

onde a riqueza adquirida fosse aceita.

O TESOURO DO ALHAMBRA XXXV

Vendeu a casa, comprou quatro cavalos,

no carroção colocou tudo o que tinha,

a fortuna bem embaixo, escondidinha!...

Sentou-se na boleia e, entre embalos,

tomou depressa a direção de Portugal.

Seus filhos, entre os sacos bem sentados,

viajaram sem serem perturbados:

eram só uns camponeses, afinal!...

Comprou uma casa em um bairro de Lisboa,

montou um negócio, com prosperidade.

Casou-se Jéssica, na maior felicidade,

tiveram vida longa e muito boa!...

Porém, na bela cidade de Granada,

cheia de lendas e de antigas construções,

ainda corre essa história nos salões:

de Dón Ortuño nunca mais se soube nada!

William Lagos

Tradutor e Poeta

Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com

William Lagos
Enviado por William Lagos em 13/06/2011
Código do texto: T3031745
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