O LIVRO ENCANTADO (em versos)

O LIVRO ENCANTADO

Conto de fadas búlgaro, recontado em versos por William Lagos

O LIVRO ENCANTADO I (04 jun 11)

O reino da Bulgária, antigamente,

era por rei poderoso governado.

Vladislaw Terceiro era chamado

e em vez de filho, tinha três princesas.

Sua esposa morrera, infelizmente,

ao dar à luz um menino doentinho,

que viveu pouco tempo, pobrezinho,

deixando o rei no meio de incertezas...

Era costume que da coroa o herdeiro

só poderia ser do sexo masculino,

por comando que diziam ser divino

e suas três filhas não podiam governar,

salvo casassem com um nobre cavalheiro,

transformado em herdeiro pela lei;

ou se uma desse um neto ao velho rei,

caso essa graça pudesse ainda alcançar.

Vladislaw, porém, tinha um segredo,

que só podia ao herdeiro revelar...

Assim, um dia, após muito pensar,

Reuniu as filhas, com o maior cuidado.

Recomendando sigilo com um dedo,

explicou que sua família, há gerações,

possuía um livro, vedado às multidões,

e que a eles somente era confiado.

O LIVRO ENCANTADO II

Ora, ocorria que esse livro era encantado

e encerrado numa sala a sete chaves,

que não possuía janelas: nem as aves

conseguiriam dentro dela penetrar.

Era esse livro que tinha revelado

a cem antepassados seu futuro:

fosse feliz, fosse um destino duro,

jamais deixara de se realizar!...

Somente os membros de sua dinastia

tinham direito de tal livro ler

e só uma vez recebiam tal poder,

depois o livro voltava a ser trancado,

a sete chaves, que a porta não se abria,

senão perante os sete Conselheiros

e o rei, trazendo junto seus herdeiros,

testemunhando o fato consumado.

Mas o rei não tinha filhos e a lei

que governava o reino há gerações,

por meio dela, conferia sucessões

a seus maridos ou aos filhos que tivessem.

Como a velhice já chegava para o rei,

não havia mais razão para adiamento.

Era preciso arranjar um casamento

e herdeiros, que no trono o sucedessem.

O LIVRO ENCANTADO III

As três princesas eram muito belas...

A mais velha era morena e seu olhar

ainda mais azul que o próprio ar:

fora, portanto, batizada como Arlinda.

Nos cabelos da segunda, haviam centelhas

vermelhas como fogo e o olhar castanho.

Mas o esplendor de seu cabelo era tamanho,

que decidiram chamá-la Rosalinda.

A menor saíra loura como o Sol,

com olhos verdes como é verde o mar.

Desde pequena não cessara de encantar

e foi por isso chamada de Acqualinda.

Seus cabelos reluziam qual farol,

quantos a viam, se maravilhavam,

sua beleza todos confirmavam,

das três irmãs, sem dúvida, a mais linda.

O rei então seguiu um corredor,

cujo piso raramente era trilhado.

Pelas três filhas foi acompanhado

e pelos sete conselheiros, que traziam

as sete chaves, guardadas com fervor,

de suas famílias obrigação e direito.

Cada filho mais velho era sujeito

por juramento que jamais rompiam.

O LIVRO ENCANTADO IV

"A profecia do Livro para mim,"

falou o rei, "foi que eu governaria

por muitos anos e sempre triunfaria

sobre todos meus rivais e inimigos.

Até o presente se cumpriu, assim,

como no tempo de meus antepassados.

Os segredos do futuro revelados

nos ajudaram a enfrentar muitos perigos."

"Chegou tua vez, amada Arlinda, agora."

As sete chaves giraram facilmente

e a porta maciça, mansamente,

se abriu a revelar a sala escura...

A princesa morena, nessa hora,

sentiu no coração bastante medo,

pois não sabia qual o tipo de segredo

que iria perturbar sua alma pura...

Entrou na sala, carregando archote

e as sete tochas que aguardavam acendeu.

A porta se fechou e ela tremeu:

lá estava o livro, sobre um pedestal...

Mas de coragem recebera um amplo dote:

logo girou do livro a fechadura.

A capa de metal, pesada e dura,

abriu-se então, em decisão final...

O LIVRO ENCANTADO V

O livro inteiro era de pergaminho,

escrito em linhas negras e vermelhas.

As primeiras palavras, muito velhas,

se referiam ao fundador da dinastia...

Seguiu Arlinda virando, de mansinho,

folha por folha e cada profecia,

(porque a história da família conhecia),

se cumprira, tanto quanto ela sabia.

Chegou à página com o nome de seu pai:

lá estava um longo e bem feliz reinado,

com suas vitórias... Tudo estava revelado...

Respirou fundo e abriu a página seguinte.

Completamente em branco! Mas já vai

uma escrita aparecendo... A profecia

a seu próprio casamento referia,

numa sentença do teor seguinte:

"A princesa Arlinda irá casar

com um rei do Ocidente." Ela esperou,

porém mais nada o livro revelou

e suas capas se fecharam, de repente!

As sete tochas começaram a apagar,

às suas costas abriu-se a porta, então.

O seu archote luzia ainda em sua mão;

seu pai tocou-lhe no ombro, já impaciente.

O LIVRO ENCANTADO VI

Prontamente, ela contou a profecia

e todos se alegraram com sua sorte.

Somente o rei se lamentou por esse corte

em suas esperanças de um herdeiro.

Fora do reino sua filha casaria

e seus netos não poderiam sucedê-lo...

Mas apagou o desaponto em seu desvelo:

era o destino de Arlinda lisonjeiro...

E dito e feito. Dentro de dois meses,

chegou do reino da Sérvia uma embaixada.

A mão de Arlinda foi solicitada

e depressa celebrou-se o casamento,

festejado pelos nobres e burgueses

e pelo povo inteiro. Os inimigos,

pelo tratado de paz feitos amigos,

pela força de um potente juramento.

E lá se foi Arlinda, de carruagem,

cercada de criadas e soldados,

grande enxoval e dote amealhados:

levou consigo até o cachorrinho!

"Mas, apesar do tratado e da homenagem,

não obteria dela o seu herdeiro..."

pensou o rei, no abraço derradeiro,

enquanto Arlinda seguia o seu caminho.

O LIVRO ENCANTADO VII

E desse modo, percorreram novamente,

acompanhados pelos sete conselheiros

o longo corredor, passos certeiros,

Rosalinda dando o braço para o rei.

Nada ocorreu de forma diferente:

a porta abriu-se, Rosalinda entrou,

acendeu as sete tochas que encontrou,

tudo cumprido conforme a antiga lei.

A porta se fechou, magicamente,

ela levou a chave à fechadura,

levantou-se do livro a capa dura:

buscou sua página depressa a princesinha!

E lá estava a profecia novamente:

"A Princesa Rosalinda irá casar

com um rei do Oriente, que a virá buscar."

Ficou feliz: também seria rainha!...

Não ficaria à sua irmã nada inferior.

Abriu-se a porta, as tochas se apagaram,

contou logo o que lera e se alegraram,

menos o rei, perdida outra esperança,

mas que escondeu a tristeza em seu amor...

E dito e feito. Logo mais uma embaixada

chegou do Oriente, a bandeira desfraldada

do Sultão da Turquia, em sua pujança!

O LIVRO ENCANTADO VIII

Desse modo, casou-se Rosalinda

e partiu para seu reino na Turquia...

Chorou seu pai, quando se despedia,

embora fosse ótima a aliança

e a amizade do sultão muito bem vinda...

Mas os netos que lhe desse, porventura,

não sentariam em seu trono... Segura,

era Acqualinda sua última esperança.

Mas Vladislaw estava agora temeroso

sobre o teor da nova profecia:

se o destino um herdeiro lhe daria

ou indicaria panorama diferente...

E assim adiou a consulta, desgostoso,

até Acqualinda cumprir dezoito anos...

Foi então forçado à consulta dos arcanos:

estava velho e a decisão era premente.

E novamente seguiu o seu cortejo,

pela trilha do longo corredor...

Acqualinda nem sequer sentia temor,

que às suas irmãs fora o livro favorável...

E por que não lhe seria neste ensejo?

A porta abriram os sete conselheiros,

embora alguns já não fossem os primeiros,

mas seus filhos, em dever tão honorável...

O LIVRO ENCANTADO IX

A porta abriu-se e Acqualinda entrou,

o archote aceso trazendo na sua mão.

Acendeu, um a um, cada brandão

e do livro aproximou-se, sem temor.

Porém, quando sua página encontrou,

viu profecia de mui terrível sorte:

"Acqualinda desposará o Porco do Norte!"

Letras bem claras, para seu horror!...

Achou que se enganara e leu de novo:

"A princesa Acqualinda irá casar

com o Porco do Norte!..." Ela viu constar

do livro, que em estrondo, se fechou!...

Apagaram-se os archotes e em renovo

das outras vezes, a porta logo abriu.

Deu as costas ao livro, seu pai viu

à sua espera... E a vista desviou...

Como iria lhe contar a profecia?

Deu alguns passos e logo desmaiou.

Todo o cortejo então se consternou:

o vaticínio só podia ser horrível!...

Por três dias e três noites ficaria,

em seu leito, sem beber e sem comer...

Finalmente, o rei a pode convencer,

mas nada disse da profecia terrível!...

O LIVRO ENCANTADO X

Duas semanas depois, notícia veio

que um poderoso exército chegara

e nas terras da Bulgária penetrara,

que qualquer outro bem mais numeroso.

O rei mandou depressa seu correio,

para indagar quais eram as intenções.

"Viemos em paz, se as nossas condições

forem aceitas, meu jovem valoroso..."

"Que condições?" perguntou o mensageiro.

"Nós as diremos ao chegar à capital.

Não nos ataquem, a ninguém faremos mal,

se nos deixarem prosseguir em paz."

O arauto retornou ao rei, ligeiro,

trazendo aquela resposta duvidosa...

A corte inteira ficou em polvorosa,

mas o controle do rei foi pertinaz...

E o exército avançou, tranquilamente,

sem atacar ninguém. As suas rações

traziam consigo. Só de água as provisões

procuraram renovar pelo caminho.

E ao chegarem em Sófia, finalmente,

se distribuíram em grande acampamento,

sem ameaças, mas cercaram num momento

a capital, sem gritaria ou torvelinho...

O LIVRO ENCANTADO XI

Os búlgaros guarneceram as muralhas,

na defesa da família e de seus lares,

mas ao ver dos estrangeiros os milhares,

o rei mandou que não fechassem os portões,

para não dar pretexto ou quaisquer falhas.

E aos nobres que quiseram protestar,

deixou bem claro quão inútil era fechar,

perante o assédio de tão vastas multidões.

Mandou de novo outros mensageiros,

recebendo, outra vez, resposta igual:

"Não pretendemos causar-lhes qualquer mal,

se respeitarem as nossas condições..."

Vieram então três garbosos cavaleiros

e permissão para ingressar pediram,

mesmo quando os portões abertos viram,

em respeito absoluto às tradições...

E quando foram recebidos em audiência,

declararam terem só duas condições:

que ninguém hostilizasse suas legiões,

pois pagariam por comida e alojamento.

O rei os escutou, sem impaciência,

e indagou qual era a outra condição.

"Majestade, nosso príncipe pede a mão

de sua filha Acqualinda em casamento."

O LIVRO ENCANTADO XII

"Quem é seu príncipe?" - quis saber o rei.

"É o Príncipe da Turíngia." "E onde está?"

"Em sua tenda, que erguemos acolá,

bem no meio de nosso acampamento."

O pai podia concordar, segundo a lei,

mas Vladislaw foi consultar a sua princesa,

que respondeu, com voz cheia de certeza:

"É o Porco do Norte, do portento!..."

Só então contou ao pai a profecia

e ambos riram, sentindo-se aliviados...

"Os alemães podem ser bem desleixados,

Mas são só seres humanos, nada mais,"

disse o rei. "Foi metáfora do livro, fantasia:

somente um porco o reino invadiria,

contra os preceitos de toda a cortesia,

para fazer propostas nupciais!..."

A proposta foi aceita e convidado

Wilhelm da Turíngia a um jantar.

E logo o noivo se veio apresentar,

usando um elmo e armadura refulgente.

Ele mostrou-se arrogante e, descuidado,

dirigiu-se diretamente a Acqualinda:

"Por que motivo uma mulher tão linda

aceitaria um tão estranho pretendente?"

O LIVRO ENCANTADO XIII

Acqualinda declarou ter o dever

de se casar, em proteção ao reino...

Disse Wilhelm: "Pois tiveste um belo treino

e recebeste de teus pais educação..."

Vladislaw quis um brinde oferecer,

mas o príncipe só ergueu a sua viseira.

Acreditaram ser assim moda estrangeira

e não ofensa ou qualquer desatenção.

Foram todos sentar-se no salão,

mas quando os servos trouxeram o banquete,

pediu-lhe o rei que tirasse o capacete...

Soltou o príncipe sonora gargalhada,

tirando o elmo, com alguma hesitação.

Ao invés de nariz, tinha um focinho!...

Orelhas tortas e um pelo amarelinho

que a face inteira lhe trazia acobertada!...

Tinha dois dentes iguais a um javali,

com as pontas amarelas e viradas,

suas feições inteiramente deformadas:

era o Porco do Norte, com certeza!...

E então falou: "Princesa, estou aqui...

Ainda aceita se casar comigo?...

Ou me prefere de seu reino o inimigo:

vai desistir agora, minha beleza...?"

O LIVRO ENCANTADO XIV

Acqualinda por um tris não desmaiou.

O rei ficou completamente estarrecido.

Os conselheiros preferiam ter morrido,

mas Acqualinda respondeu: "Eu casarei!"

O príncipe os dois olhinhos apertou

e disse: "Pois então, caso também!...

Amanhã de manhã ficará bem,

meu caro sogro e meu futuro rei...?"

Vladislaw ainda queria protestar:

"Tem de ser preparado o casamento,

publicados os proclamas, feito o assento,

reunido o dote, feito o enxoval..."

Mas o príncipe limitou-se a declarar:

"Vou ficar umas semanas por aqui...

Sou solteiro e por dote não pedi,

meus documentos eu trago no bornal."

Chamaram o arcebispo, que chegou

meio assustado com tantos movimentos,

mas confessou, após ler os documentos,

que tudo estava de acordo com sua lei.

Que Acqualinda era solteira, confirmou.

Era contrário ao rito permanente,

porém já houvera na Bulgária precedente:

antes da guerra, se casara um rei...

O LIVRO ENCANTADO XV

"Bem, se é assim, que estamos esperando?"

falou o porco. "Venha logo esse jantar!..."

Mesmo ofendido, o rei mandou apressar

e logo os servos traziam as travessas...

O príncipe a comida foi pegando

com as mãos e levando a seu focinho,

mas depois, para horror do rei vizinho,

pôs-se a grunhir e a comer às pressas...

Ele enfiou a cabeça no seu prato,

como se fosse um porco no chiqueiro!

Bebeu o vinho de um jarrão inteiro

e depois, a cara cheia de gordura,

limpou na toalha, sem qualquer recato!...

Mas repararam que seus generais

tinham bons modos, sem quebrar jamais

as regras cândidas da etiqueta pura.

E assim, realizou-se, no outro dia

o casamento da princesa, pobrezinha!

Mas seu destino no livro lido tinha,

que, como os outros, teria de cumprir!...

De noite, no seu leito, ela tremia,

sem saber o que podia suceder:

nas mãos de um porco, o que iria sofrer?

pensou em se trancar, pensou em fugir...

O LIVRO ENCANTADO XVI

Chegou o príncipe e apagou as velas.

Deitou-se do seu lado, gentilmente...

Quando a beijou, viu que estava diferente:

certamente, não tinha mais focinho!...

Tocou-lhe o rosto, o peito e as costelas...

Ele perdera todo o aspecto animal!

Rosto de homem e corpo natural...

Depois, ele explicou, devagarinho...

"Acqualinda, eu sou um príncipe encantado.

Fiquei assim em razão de maldição,

lançada sobre mim, mas sem razão,

nada fiz por que a pudesse merecer...

Contudo, eu só serei desencantado,

ao ganhar de uma mulher o inteiro amor..."

"Mas eu casei contigo!" "Por temor,

tu não me amas, casaste por dever..."

"Agora, escuta: o amor surge depois,

se nos tratarmos com carinho e com respeito.

Nesta noite, dormirás junto a meu peito,

mas só posso ser humano em pleno escuro.

Sempre haverá este tabu entre nós dois:

meu rosto humano sob a luz nunca verás,

pois, se tentares, então me perderás,

por mais que isso te pareça duro!..."

O LIVRO ENCANTADO XVII

Contudo, ele foi tão carinhoso,

que até durante o dia ela esquecia

as suas feições de porco, quando o via

e lhe indagava, com paciência infinda:

"Apaixonei-me por ti, sei que és formoso,

não te pode desencantar o meu calor?

Ainda não basta para ti o meu amor?..."

"Não, querida, teu amor não basta ainda..."

Mas o reino foi invadido novamente

e o príncipe partiu para o combate

e logo o exército inimigo abate,

conquistando dos búlgaros o favor.

Mas a guerra continuou e, finalmente,

Acqualinda resolveu ir visitar

o pai e o marido, no campo militar,

em gentil demonstração de seu amor...

Contudo, só chegou noite fechada

e então, das sentinelas indagou

qual era a tenda do príncipe; e entrou

com um archote, na maior ingenuidade.

Ao levantar a lona, que era a entrada

da tenda, a luz das chamas recaiu

sobre o rosto do marido. E ela sorriu,

ao ver como era belo de verdade...

O LIVRO ENCANTADO XVIII

Mas nesse instante, o príncipe acordou

e pôs-se em pé, depressa, protestando:

"O que fizeste, mulher, iluminando

o meu rosto? Quantas vezes te falei?"

Apagar o archote ela tentou,

protestando que o fizera sem querer,

mas veio um redemoinho a envolver

o príncipe, que gritou: "Não te avisei!?..."

Logo chegaram o rei e os generais.

O pai, entre seus braços, a acolheu,

mas o príncipe entre as nuvens se perdeu,

ante o olhar consternado dos soldados.

Disseram-lhe então os generais:

"Somente tu o poderás trazer de volta.

Não te daremos auxílio, nem escolta,

estamos nós também amaldiçoados..."

Sete vezes sete meses nos caminhos,

até sete tamancos desgastares,

depois de sete túnicas rasgares

e após esgarçares sete mantos,

atravessando as pedreiras e os espinhos;

pois só então saberás que teu amor

para romper a maldição terá calor,

pela força da saudade e de teus prantos.

O LIVRO ENCANTADO XIX

Acqualinda aceitou a obrigação:

vestiu túnica e tamancos, pôs um manto,

preparou a mochila, secou o pranto

com seis mudas de roupa e seis calçados.

Mas seu pai mandou servir-lhe refeição

para a viagem: um franguinho assado.

Ela guardou todos os ossos com cuidado,

em um paninho azul bem enrolados.

E assim, encetou o seu caminho,

subiu montanhas e cruzou os rios,

enquanto a túnica ia perdendo os fios,

rachavam-se os tamancos e seu manto

se esgarçava em cada pedra e cada espinho.

Porém seguiu em frente, nos seus trapos,

sem se dispor a trocar os seus farrapos,

cumprindo a penitência, qual um santo.

E, finalmente, chegou até Belgrado,

a capital da Sérvia, onde vivia

Arlinda, a sua irmã, a quem não via

desde o dia em que partira de carruagem.

Apesar de seu trajo amendigado,

reconheceu-a Arlinda, de imediato,

e a recebeu com o máximo aparato,

muito espantada por toda a sua coragem.

O LIVRO ENCANTADO XX

Acqualinda sua história relatou:

"Os ventos carregaram meu amor

e não sei onde o puseram... Por favor,

onde se encontra dos Ventos a Caverna?

Ah, irmã, como és feliz!..." Ela exclamou.

Mas Arlinda respondeu não ser assim:

"O meu marido já se cansou de mim,

não tive filhos e sua ausência é eterna..."

"Ele só passa em guerras e caçadas...

Mas a Caverna dos Ventos, francamente,

eu não sei aonde fica, nem minha gente,

a quem eu indaguei... Só uma velhinha

ouviu dizer, em épocas passadas,

que fica para as bandas lá do Oriente,

perto de onde se levanta o Sol Nascente.

Lembrança alguma qualquer outro tinha..."

E Acqualinda ergueu-se, com um suspiro,

trocou os tamancos, colocando vestes novas.

"Eu terei de enfrentar terríveis provas,

até de novo o meu amor reencontrar..."

"Fica comigo um pouco, em meu retiro,"

pediu-lhe Arlinda, em sua solidão...

Ante a recusa, serviu-lhe refeição:

um frango assado para as forças renovar...

O LIVRO ENCANTADO XXI

Acqualinda consumiu o frango inteiro,

mas os ossos guardou no seu paninho.

Depois, voltou a percorreu o seu caminho,

até gastar as roupas e os calçados...

E já bem perto, erguia-se, altaneiro,

o palácio do governante da Turquia.

Bem depressa Rosalinda a recebia,

deram-se beijos e abraços apertados...

Acqualinda sua história relatou:

"Os ventos carregaram meu amor

e não sei onde o puseram... Por favor,

onde se encontra dos Ventos a Caverna?

Ah, irmã, como és feliz!..." Ela exclamou.

Mas Rosalinda falou não ser assim:

"O Sultão tem mil esposas e de mim

quase não tem qualquer lembrança terna..."

"Mas a Caverna dos Ventos, realmente,

fica em lugar incerto e não sabido...

Nenhum dos servos ou soldados têm ouvido,

só um avozinho que nem se mexe mais...

Mas lembrou ter escutado certa gente

dizendo ficar muito além do mar,

onde a Casa do Sol paira no ar,

nas altas Cordilheiras dos Urais..."

O LIVRO ENCANTADO XXII

Acqualinda, a suspirar, então se ergueu

e nova túnica e manto colocou,

os pés em novos tamancos enfiou:

"Adeus, irmã, vou seguir o meu caminho..."

Mas Rosalinda refeição lhe deu:

"Precisas de mais força, em tua jornada...

Fica comigo até de madrugada

ou, pelo menos, come este franguinho!..."

Acqualinda aceitou a refeição,

guardou os ossos dentro do paninho

e retomou novamente seu caminho,

dias e noites caminhando sem parar...

O manto se esgarçou, deixou no chão

pedaços dos tamancos e rasgou

completamente a túnica que usou,

seu corpo entre os farrapos a mostrar!

Até que um dia, bem no alto dos Urais,

viu a Casa do Sol, que não tocava

a montanha mais alta, mas pairava,

flutuando facilmente pelo ar!...

Ela correu e, num impulso mais,

conseguiu agarrar-se na soleira.

Mais um esforço e soergueu-se inteira,

arrastando-se por cima do limiar!...

O LIVRO ENCANTADO XXIII

Foi por um jovem louro levantada,

de cabelos irradiantes como o Sol.

"Quem és tu, que enfrentas o arrebol,

mas sem sequer a pele te queimar?..."

"É que a tristeza me deixa enregelada,

porque os ventos carregaram meu amor

e não sei onde o puseram... Por favor,

onde a Caverna dos Ventos posso achar?"

Mas o Sol também disse não saber

onde a Caverna dos Ventos se encontrava.

"Minha irmã, a Lua, quem sabe, te indicava

onde os ventos costumam se encontrar."

Um frango assado lhe mandou trazer...

Ela trocou depois os seus calçados,

seu manto e sua túnica esgarçados,

guardando os ossos em idêntico lugar...

E então partiu, a percorrer a Terra,

mais sete meses e já estava quase nua,

o Himalaia cruzou e achou, da Lua

aquela Casa que flutuava pelo ar!...

E reunindo toda a força que ainda encerra,

de um salto, agarrou-se na soleira

e depois, conseguiu erguer-se inteira,

arrastando-se por cima do limiar!...

O LIVRO ENCANTADO XXIV

Veio uma jovem linda dar-lhe a mão,

seus cabelos com a prata do luar.

"Como chegaste aqui, sem te esfriar,

jovem mortal, de roupa esfarrapada?"

"É o amor que me aquece o coração,

porém os ventos me roubaram tal amor

e não sei onde o puseram... Por favor,

onde a Caverna dos Ventos é encontrada?"

Mas a Lua também disse não saber

onde a Caverna dos Ventos se encontrava.

Franziu a testa, enquanto meditava:

"Talvez meu filho possa te ajudar...

Vai à Casa do Orvalho. Com prazer,

ele te auxiliará. Mas come este franguinho,

para te dar novas forças no caminho,

que o Karakorum terás de atravessar!...

Acqualinda completou a refeição

e guardou todos os ossos no paninho,

trocou os tamancos e o manto, já fininho,

pôs outra túnica e no luar desceu...

Passados sete meses, de exaustão,

deitou-se sobre a areia do deserto.

Uma presença gentil passou por perto

e nos braços, com carinho, a recolheu...

O LIVRO ENCANTADO XXV

Acqualinda finalmente despertou,

junto a um rapaz tão belo como a aurora,

que lhe indagou, assim, sem mais demora:

"Quem és tu, que do Orvalho no frescor,

que em sua cama de nuvens te deitou,

continuas assim com a pele seca...?"

"É a saudade, que o coração resseca,

porque os ventos roubaram meu amor..."

"Eu não sei onde o puseram!... Por favor,

diz-me onde fica a Caverna desses Ventos."

Falou o Orvalho: "Já assisti muitos eventos,

mas não sei onde fica tal caverna...

Mas minha irmã, a Geada sem calor,

foi desposada pelo Vento Norte...

Fala com ela, que mudará tua sorte,

se tiver pena e quiser mostrar-se terna..."

Acqualinda levantou-se, sem demora,

trocou o manto e a túnica rasgados,

substituiu os tamancos desgastados

e indagou do Orvalho o seu caminho.

Mas ele disse: "Não te vás embora,

para a jornada requeres nutrição..."

Bateu palmas e surgiu a refeição.

"Vamos lá! Experimenta este franguinho..."

O LIVRO ENCANTADO XXVI

Acqualinda comeu e cada ossinho

guardou de novo em seu paninho azul...

O Orvalho a transportou, feliz e exul,

e sobre a Terra, gentil, depositou...

A princesa retomou o seu caminho,

cruzou o Cáucaso, chegou ao extremo norte

e, por acaso, ou talvez por muita sorte,

logo com a Casa da Geada deparou...

Caiu na neve, quase morta de exaustão.

Braços frios, daí a instantes, a prenderam,

num colchão de nuvens negras a envolveram,

até que despertou, ainda cansada...

Uma ruiva lhe indagou, sem compaixão:

"Quem és tu, que tirei de sob a neve,

e que na Casa da Geada ainda se atreve

a se mostrar nem um pouco congelada...?"

"Ah, senhora, é por causa da esperança,

que me arde no interior do coração!...

De ti espero descobrir a posição

da Caverna dos Ventos, com certeza!..."

"De fato, eu sei, mas por que, minha criança,

desejas ir a lugar tão perigoso?

Pois paira acima de um monte pedregoso,

onde os ventos roubarão a tua beleza..."

O LIVRO ENCANTADO XXVII

E Acqualinda respondeu-lhe, com firmeza:

"Foram os ventos que roubaram meu amor

e não sei onde o puseram... Por favor,

mostra o caminho para lá chegar..."

"Eu te direi," respondeu, com gentileza

a áspera Geada, "mas precisas nutrição.

Eu te trarei saborosa refeição,

antes que vás de novo caminhar..."

E dito e feito. Trouxe-lhe um franguinho,

que Acqualinda inteiro devorou.

Com cuidado, cada ossinho ela guardou

e seus tamancos trocou mais uma vez...

De sua mochila retirou, devagarinho,

a última túnica e o manto derradeiro.

E depois de estar coberta por inteiro,

agradeceu à Geada as suas mercês...

Deixou-a a Geada em uma longa estrada.

"Deves cruzar os Alpes e a Alemanha,

depois a França, até chegar à Espanha,

onde se erguem os altivos Pireneus!

Lembra, porém, que já possuis escada,

que usar uma só vez conseguirás.

Lá a Caverna dos Ventos acharás,

galgando com teus pés e os dedos teus..."

O LIVRO ENCANTADO XXVIII

Mais sete meses Acqualinda caminhou,

até chegar ao alto da montanha,

a mais alta que havia em toda a Espanha,

com a Caverna pairando em pleno ar!

Até o penhasco mais alto ela trepou,

mas a Caverna flutuava mais além...

Tentou pular, não conseguiu também...

"Será que, no final, ia fracassar...?"

Mas num impulso, abriu o seu paninho,

que carregara pela longa estrada.

A Geada lhe dissera ter escada:

daqueles ossos iria precisar!...

Foi colocando um a um, devagarinho,

e formaram degraus, magicamente!

Acqualinda foi subindo, lentamente,

mas seus dedos não puderam alcançar!...

Então, tomou feroz resolução:

a mochila reabriu, que ainda trazia

e que se achava já quase vazia

e tirou lá de dentro uma faquinha...

Cortou o dedo mínimo da mão

esquerda e sobre o ar o colocou.

Prontamente, em degrau se transformou

e bem depressa subiu a princesinha!

O LIVRO ENCANTADO XXIX

Com outro esforço, no ar ela saltou

e conseguiu segurar-se na Caverna!

Passou depressa pela porta externa

e no solo pedregoso se estirou!...

Atrás dela, sua escada desabou,

como a Geada lhe havia advertido,

mas o seu alvo havia conseguido:

respirou fundo e então se levantou...

Muitos ventos zuniram ao redor

e lhe arrancaram, aos poucos, toda a roupa!

Aquele frio a deixava quase louca:

até os tamancos conseguiram lhe tirar...

Mas Acqualinda prosseguiu, em seu ardor,

até encontrar, num leito adormecido,

um belo homem, mas seu passo era impedido

pela fúria desses ventos a girar!...

Mesmo assim, conseguiu se aproximar

e então surgiu, em seu caminho, uma mulher:

"Quem és tu e o que é que você quer?

Esse homem aí é o meu marido!..."

Mas Acqualinda sabia o que falar:

"Não acredito que digas a verdade:

esta certeza que a minha alma invade,

me assegura o alvo conseguido..."

O LIVRO ENCANTADO XXX

"Vai-te daqui! Falou, porém a Brisa.

"Ele já está comigo há quatro anos.

Devolvi-lhe a aparência, em meus arcanos

e comigo, para sempre, ficará!...

Ventos, expulsem essa mortal que pisa

o chão sagrado da nossa Caverna!

Irei lançar-lhe maldição eterna,

de gelo em estátua se transformará!"

Mas os ventos recusaram o comando

e a seu redor assobiando continuaram.

A Brisa e Acqualinda se enfrentaram

e a princesa, firmemente, respondeu:

"Não me ameaces com teu gesto nefando:

Sete vezes sete meses caminhei,

sete túnicas, sete mantos esgarcei,

em busca desse homem que ainda é meu!"

"E mais ainda: meu sangue derramei;

o meu dedo transformou-se num degrau;

mas já ficou para trás o tempo mau,

pois cumpri as condições integralmente!

Sete tamancos eu também quebrei...

Não sairei daqui sem meu amor,

que me custou tanta mágoa e tanto ardor:

és obrigada a devolvê-lo prontamente!..."

O LIVRO ENCANTADO XXXI

Porém a Brisa não queria se render...

Surgiu então, de inopino, o Vento Norte:

"Brisa, minha filha, aceita a amarga sorte,

pois a princesa teu encanto já quebrou.

Longos caminhos foi forçada a percorrer,

sete vezes sete meses caminhou,

sete calçados, sete vestes desgastou

e a própria carne e sangue derramou..."

Furiosa, a Brisa finalmente desistiu:

"De que me serve, afinal, esse marido?

Há quatro anos está adormecido,

não o acordei, com todo o meu ardor!"

Porém o Vento Norte prosseguiu:

"Foste tu mesma que lançaste a condição:

para quebrar tão longa maldição,

só uma mulher que lhe tivesse real amor."

"E isso tu não tens. Tens só desejo."

"Não vou ficar aqui mais um momento!"

falou a Brisa, em seu agitamento,

e projetou-se para fora da Caverna...

"Princesa," disse o Vento, "dá-lhe um beijo,

que o encantamento assim dispersará.

O teu marido então despertará

e sua afeição por ti será eterna!..."

O LIVRO ENCANTADO XXXII

E foi assim. Bastou um único beijo

e o Príncipe Wilhelm despertou.

Bóreas, o Rei dos Ventos, ordenou:

trouxeram ventos os trajos adequados...

E para completar o bom ensejo,

o Vento Norte os transportou à capital

e rugindo o furacão mais triunfal,

junto ao castelo os deixou depositados.

Os dois entraram no palácio, braços dados,

e conduzidos à câmara do rei,

que rendeu graças: "Sobre a sorte triunfei

e agora posso, finalmente, descansar..."

No mesmo dia, foram coroados

e Vladislaw Terceiro faleceu...

À soldadesca o novo rei ofereceu

cidadania, se a quisessem aceitar...

Então o príncipe decidiu trocar

seu nome antigo por Vladislaw Quarto.

Dentro em breve, Acqualinda teve um parto

e garantiu a sucessão um garotinho...

Setenta anos viveram a se amar,

tiveram sete filhos e sete filhas,

mas em lembrança das antigas trilhas,

Acqualinda nunca mais comeu franguinho!

Entrou no gargalo e saiu por um caco:

quem quiser outra, que vá buscar no saco!...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 08/06/2011
Código do texto: T3020885
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