A SAGA DE GOTHA
A SAGA DE GOTHA
William Lagos
A SAGA DE GOTHA I (18 abr 11)
Gotha nasceu em nuvem de algodão,
quando seus olhos abriu para a consciência
e se flagrou, em toda a sua impotência,
gotinha d'água, em grande multidão.
Não era mais do que condensação:
pequenas células, sem grande permanência,
vapor reunido em branda presciência,
reflexo embotado de emoção...
Apenas percebeu ser uma gota,
de uma imensa nuvem no interior.
Milhares de outras via ao derredor,
quando ao calor inicial o frio embota.
Aos poucos foi crescendo, lentamente,
enquanto outras gotículas sugava,
essas vizinhas que para si enxugava,
antes que desenvolvessem outra mente.
A SAGA DE GOTHA II
Chegou um ponto em que não mais podia
absorver as gotas ao redor,
pois se haviam juntado já em maior
gota de chuva, que sem cessar crescia.
Logo depois, escutou-se um trovejar
e as gotas se encolheram, em seu medo.
Um relâmpago estalou, ígneo dedo,
e gota a gota, passaram-se a juntar.
Ficou presa a muitas outras, mas guardava
essa consciência fraca de si mesma...
Outro trovão soou, qual avantesma,
enquanto a nuvem negra se tornava!...
E logo começou a gotejar,
formando cristalinos fios de chuva.
Em um deles se encaixou como uma luva
e entre rajadas, sobre a terra foi tombar...
A SAGA DE GOTHA III
Caiu sobre uma poça, a espadanar...
De um só salto galgou a ribanceira:
a terra seca a abocanhou, certeira,
e se deixou engolir, sem protestar...
Via outras gotas, que a precediam,
se entranharem lentamente pela terra...
Seguia igual caminho, mas emperra
em alguns filamentos que a prendiam!...
E logo viu-se, contra a gravidade,
sugada através do filamento,
esticada a princípio e, num momento,
rendeu-se à força da capilaridade...
Logo o tubo engrossou, por que subia:
a pressão de outras gotas a empurrava.
Gotha sentiu que a algo se mesclava:
vertente branca como a luz do dia!...
A SAGA DE GOTHA IV
Depois sentiu mudar a direção:
era um tronco de árvore, afinal.
Tornou-se mais leitosa e natural,
até o caminho sofrer nova inversão.
Num fio de seiva, Gotha prosseguiu,
por um galho retorcido, até os ramos.
E então, por entre folhas aos reclamos,
em um botão de flor se introduziu.
A flor cresceu, se ressecou e caiu,
mas no raminho, Gotha permaneceu,
que, aos poucos, fez-se fruto e assim cresceu
e uma maçã vermelha produziu...
Cresceu a fruta, com Gotha no interior,
mas viu insetos famintos a pousar
e logo pássaros vieram debicar
essas muitas maçãs a seu redor!...
A SAGA DE GOTHA V
Contudo, antes de ter igual destino,
sentiu uma pressão, foi arrancada
de seu pedúnculo e, logo então, jogada
em uma cesta por um braço pequenino.
Depois, com outras doze carregada,
as mais perfeitas, vermelhas e maduras,
cascas inteiras sobre polpas puras,
foi dentro de uma pia despejada.
Com água da torneira, bem lavadas,
as doze postas dentro da fruteira,
a sua maçã permanecia inteira,
suas cascas rebrilhando, avermelhadas.
De repente, outra criança assim surgiu,
pegou a maçã e começou a mordê-la.
O destino de Gotha se revela:
em corpo humano assim se introduziu.
A SAGA DE GOTHA VI
Passou pela garganta, mastigada
com o resto da polpa da maçã,
descendo pelo esôfago, uma sã
refeição para a saúde destinada.
No estômago foi então absorvida:
foi transformada no sangue da afeição,
atravessou os alvéolos do pulmão,
juntou oxigênio, transportando vida.
Muitas vezes, fez bater o coração:
passou por todo o corpo da criança,
pela sua face de ternura mansa,
pelos dedos dos pés, em cada mão...
Foi transportada depois até os rins
e pensou já conhecer sua triste sina:
seria amarelada como urina
e abandonada aos mais ingratos fins...
A SAGA DE GOTHA VII
Mas não! Um fragmento dessa casca
ficara preso aos dentes. Foi cuspida...
Pelas glândulas salivares absorvida,
junto da boca que tanta polpa masca.
E assim voltou à pia... Era saliva,
misturada a vermelhos pedacinhos.
Respingou na beirada, seus vizinhos
a escorrer, da forma mais esquiva,
para o ralo que no centro os esperava...
Gotha firmou-se na parede lisa;
tinha consciência do que esse cano visa:
para um esgoto de podridão levava...
Mas não pôde evitar. Escorregou
até a grade do ralo, entre mil gotas
e outras substâncias ignotas;
e por fim, sua sucção a arrastou...
A SAGA DE GOTHA VIII
Gotha desceu permeio a um turbilhão,
para um cano bem fino, mas profundo.
Em seu pavor de tal ambiente imundo,
até parou de palpitar-lhe o coração...
Muitas horas depois, ela acordou:
fora salva desse horror pela inconsciência.
Corria rio abaixo, sem premência;
na superfície logo se encontrou.
Examinou a si mesma, com cuidado,
pois ao se ver tão leve, percebera
que nenhuma imundície absorvera:
estava inteira e limpa e sem pecado...
O rio corria, bem placidamente,
a refletir as estrelas lá do céu.
Gotha adornou-se desse manso véu,
a refletir cada estrela iridescente...
A SAGA DE GOTHA - EPÍLOGO
O Sol surgiu então, lá no horizonte,
banhando as águas ainda de través...
Por entre árvores passava nos sopés,
depois, por sob os arcos de uma ponte...
E então o Sol brilhou, com mais calor,
velozmente aquecendo essa corrente.
Gotha sentiu essa atração potente
e transformou-se, aos poucos, em vapor...
Subiu aos céus, em direção ao Sol,
entre outras gotas mil evaporadas,
até chegar às regiões mais resfriadas,
sem influência qualquer desse arrebol...
Perante o frio, seu calor, sob pressão,
de novo condensou-se, na impotência
de mil gotículas... E, ao recobrar consciência,
Gotha nasceu em nuvens de algodão...