BEIJOS FRIOS / A URSA DO IGLU / IKEBANA
BEIJOS FRIOS I (7 mar 11)
Embora falem da amizade no calor,
a demonstramos pelo frio até:
duas meninas dividem picolé,
num distraído e leve ato de amor...
Cada uma tem o seu, da mesma cor,
do mesmo comprimento e igual grossura,
mas a que veste rosa, com ternura,
quer dividir com a outra o seu sabor.
Duas meninas sentadas no gramado,
sobre uma colcha ou talvez pano estampado,
uma de azul e a outra veste rosa;
ambas são louras e de cabelos lisos,
à beira de uma cerca, cujos frisos
as protegem de qualquer mente invejosa.
BEIJOS FRIOS II
Duas irmãs, talvez. São parecidas,
quem sabe até as duas gêmeas sejam.
Uma atitude para o mundo ensejam
que irão cumprir ao longo de suas vidas.
É natural que duas irmãs protejam
uma à outra e que sejam bem unidas,
mas na de rosa talvez mais desenvolvidas
as qualidades maternais estejam.
A de azul pode ser a tomadora:
por muitos anos a outra irá explorar
e esta irá o próprio bem sacrificar,
em sua condição de doadora,
para tornar a irmãzinha mais feliz
(ou então foi isso que imaginar eu quis).
BEIJOS FRIOS III
Mas a de rosa não sorri. Seu rosto
de gravidade se encontra revestido,
levando a sério o papel já escolhido,
dá à outra de mamar com pleno gosto.
Talvez imite um ato igual proposto,
ao observar um nenê sendo nutrido;
talvez neste momento tenha crido
que assumiu de sua mamãe o posto.
Mas não se sabe se esse ato de ternura,
levado a sério, seja um treinamento
para a função maternal, ou rejeição,
quando ela tome, com igual desenvoltura,
de volta o picolé, bem a contento,
e as duas passem para nova diversão.
BEIJOS FRIOS IV
Pois tudo isso é somente fantasia:
é o resultado de qualquer jogo infantil
e que a de azul, num ato pueril,
repita a oferta que sua irmã fazia.
Pois cada uma a intenção nutria
de provar se o sabor é mais sutil
no picolé da outra e, num gentil
repasse, uma à outra atenderia...
Prova primeiro o meu, depois me deixa
provar o teu para ver se é mais gostoso,
quem sabe a gente troca os dois até...?
E é só um capricho que a atitude enfeixa
do que qualquer movimento generoso,
nessa tão séria divisão de um picolé...
A URSA DO IGLU I (13 mar 11)
Há uma luz no iglu, a qual atrai
da ursa branca sua curiosidade.
Estende seu pescoço, sem vaidade:
quem sabe algo de comer não sai?
Ela percebe a estranha atividade
em seu ambiente e à procura vai
desse objeto que o desejo embai
ou na suspeita de qualquer malignidade.
Pois certamente é um iglu artificial,
colocado dessa forma, em chamariz,
para que seja em vídeo captada.
Mas não percebe o intruso que, afinal,
lhe está a boa distância do nariz,
com a teleobjetiva bem focada...
A URSA DO IGLU II
Porém, estranhamente, os dois filhotes
o olhar fixo pousam nesse intruso,
atrás da mãe escondidos, no profuso
campo de gelo em que vivem sem fricotes.
Para esse clima já possuem certos dotes:
são predadores natos, no difuso,
cinza nevoeiro seu pelame é escuso
e sobrevivem sem o luxo das mascotes...
A ursa-mãe, em forçada posição,
seu pescoço protendido e o dorso alçado,
até parece estar posando para a imagem...
Talvez receba depois uma ração,
como cachê pelo esforço realizado,
misto de fome e laivos de coragem.
A URSA DO IGLU III
Sem dúvida, esse iglu é bem pequeno
e não parece estar bem rejuntado,
por estrangeiro decerto improvisado,
erguido apenas no meio do terreno...
O seu calor interno mais ameno
pode tornar tal páramo gelado;
ou quem sabe, existe um peixe defumado
para atrair o faro em brando aceno...
Mas nada disso engana os dois ursinhos,
para a câmera a olhar diretamente:
focinho e olhos negros sobre o gelo...
Pois cabe à ursa alimentar seus filhotinhos
e assim estica o pescoço, firmemente,
sem mostrar qualquer receio de perdê-lo...
A URSA DO IGLU IV
Mas, por sorte, é gentil essa armadilha:
não vieram os Inuit a essa caçada, (*)
nem se pretende a fera aprisionada
ou abduzida para estranha trilha...
A precaução da experiência é filha:
sendo ela a predadora, teme nada;
provavelmente, nem sequer foi atacada,
anda tranquila ao longo de sua ilha.
Nem sequer teme que, ao ser fotografada,
a sua alma lhe tomem, mais sensata
que muita gente de vezo mais selvagem.
Ou, quem sabe, foi sua alma congelada
neste vídeo...? Para sempre marchetada,
em tal curiosa e rechonchuda imagem...
(*) O verdadeiro nome dos esquimós.
IKEBANA I (17 mar 11)
Eu não me agrado de acompanhar modismo.
Hoje em dia todos falam do Japão,
cada um a redigir a sua opinião,
frequentemente com pleno amadorismo.
Existe algo de canibalismo
nesta prolífica e inútil redação:
de nada serve tal demonstração
para a defesa contra o cataclismo.
Sempre os nipônicos eu admirei,
por sua artística sensibilidade,
constante esforço e industriosidade.
Essa tragédia também acompanhei,
mas me aparenta ser um desrespeito
escrever versos qual se fora um preito.
IKEBANA II
É preferível falar sobre o que existe
e não sobre esse esforço destruído,
pela água impetuosa derruído,
mas sobre o belo que ainda ali persiste.
Pois isso que admiro não consiste
nesse ninja pelos filmes exibido,
muito menos o que vem sendo referido
como "artes marciais", expressão triste.
Não me parece ser a oitava arte,
pois são somente técnicas de matar
e não merece um tal significado.
Pois se destinam as demais, destarte,
à mente e o coração mais elevar
e não a destruir e a pôr de lado...
IKEBANA III
O que aprecio é sua delicadeza,
a maneira em que trabalham seu jardim,
toda a paciência demonstrada, enfim,
nesse seu trato integrado à Natureza.
Não é qualquer ocidental que vê beleza
em areia e pedras ou imagina assim
o equilíbrio que se encontra em zen:
condensação, afinal, de uma incerteza.
Eu amo a perfeição da arquitetura
e o pigmeu cuidado do bonsai,
carpas vermelhas tratadas com carinho.
E seus quimonos e o obi de linha pura...
Porém não o fanatismo do banzai,
buscando a morte após taça de vinho.
IKEBANA IV
Em flores vivas manifesta-se o ikebana:
é o caminho das flores, ou kadô;
é o lago do silêncio, o ikenobô,
gentil execução dessa arte arcana.
E de cada triângulo nos dimana
a compreensão das diferenças, em que estou
enquadrado no universo e se escoou
toda a animosidade mais leviana...
E em tal minimalismo a gente encerra
o céu e a terra e toda a humanidade,
ou o Sol e a Lua, a contemplar a Terra.
Em que a haste ou galho seco, em todo caso,
têm seu significado e há claridade
em cada recipiente ou humilde vaso.