MONÓLOGOS DE UM CÃO
Eu estava lá naquele veterinário que me adotou ainda filhotinho. Tava bom até demais. Primeiro, porque a minha mãe me abandonou logo que os meus dentes nasceram. Não dava mais para mamar nas tetas leitosas dela, sangrava muito com minha falta de jeito. Depois alguém me abandonou lá na roça. Ou melhor, quando vi o movimento aqui na rua, o lugar não era estranho para mim. Acho que nasci por aqui fui é levada para o meio do mato. É assim que as pessoas soltam seus cachorros indesejados. O cara, gente boa foi lá, me trouxe, pirralha, pulguenta, me deu um bom banho, cortou minhas unhas, me vacinou e me deixou numa espécie de gaiola-vitrine. Custei a conseguir quem me levasse. Nem de graça estavam me querendo. O pessoal chega, olha e pergunta: mas não tem nenhum de raça, assim mais bonitinho?
Crianças: êta companhia boa! Foi uma delas que passou na rua. Nos olhamos, eu fiz aquela carinha só acessível aos cães e ela fez a sua mãe voltar e me adotar, de graça. O moço ainda deu, de graça também, uns vermífugos e uma caderneta de vacinação. Acho que estava doido para se ver livre de mim. Durou pouco a minha estadia naquela casa. Problemas de mudança para apartamento e fui eu novamente adotada, dessa feita, pelo pai da menina, que vive em outra cidade. Bem, esta é a história da minha origem, pois agora eu tenho um lar onde já estou há um tempão. Vivo ouvindo com a poderosa audição canina uma discussão entre meus donos, um casal bacanérrimo, quando alguém pergunta a minha idade, um dizendo quatro, outro afirmando ser cinco anos.
Antes que eu me esqueça, eu sou uma cã, fêmea, SRD* com muito orgulho. Já dei até cria de um vira lata sem teto que invadiu a minha residência e me deixou com cinco filhotinhos. Meus donos doaram todos, depois de me verem em pelo e osso de tanto que os bichinhos mamavam. Depois passaram a comer a minha ração. Para que conseguisse me alimentar sem disputar com eles, eu tinha que ser trazida dentro de casa e eles lá fora. Fui ficando sem casinha, sem cama, esmorecendo...Acho que eles ficaram com algum receio de eu não resistir de tanta fraqueza que estava. Não pensem que sou mãe precoce. Os quatro ou cinco anos que dizem que tenho devem ser multiplicados por sete, é a comparação de nossa longevidade com a dos humanos. Minha idade provável, portanto, são 28 ou 35.
Deram-me o singelo nome de Flor. Gosto bem do meu nome. O que eu não suporto é um, de vez em quando me chamar de Lulu, a outra de Bebê. Minha nossa! Bebê? Tem cabimento? Também não gosto de ficarem conversando comigo com aquelas frescuras que fazem com crianças de verdade, falando:
- Dá a patinha, bebê da mamãe,
- Neném, bilu,bilu,
- Vem papá...
Eu já sou adulta, pô! Ah, se não fosse essa minha fidelidade canina de nunca atacar meus tutores... Eu dava uma mordida. De leve, mas dava.
Tomei muito banho frio. Meu dono ligava uma mangueira , me prendia numa coleira e me lavava que nem se lava carro. Humpf! Um dia, fazendo muito frio, minha dona veio dizendo: - vem cá, bebê, que eu vou te levar no pet shop. Minha gente, tomei meu primeiro banho quente e hoje, só de passar perto da mangueira eu já corro e me escondo dentro da minha casa dormitório. Tenho horror a água fria.
Passam muitos cães e cãs aqui na minha porta. De vez em quando um dono ou dona dá uma paradinha com eles e a gente troca umas idéias sobre esse mundo cão. Outro dia uma poodle me disse que me invejava. Ela toda cheia de brincos, laços, até perfumada e eu deitada na frente do portão com uma área enorme, só minha, pra andar, correr e brincar. Só o espaço do carro na garagem é que eu não ocupo, em compensação deixo um xixi perto da roda traseira toda vez que alguém entra com o carro. Preciso mostrar a eles que ali é onde eu não vou invadir. A cadela me disse que na casa dela é um saco. Tem que ficar dentro de casa o tempo todo e só sai para espichar as canelas uma vez por semana, mesmo assim quando um dos donos está de bom humor, o que é raro. Além disso, nunca pode escavar uma terrinha, um hábito milenar dos cães. Se ela resolve passar as unhas no cimento ou na parede, já brigam por causa do som irritante que provoca. Olhei pra ela solidária quando a dona a puxou chamando para irem embora, mas eu nada podia fazer. Eu também não gosto de frescuras além de minha casinha limpa, meus trapos de panos velhos e um pedacinho de terra pra brincar. Quando estou dentro de casa e dou uns latidos, meus próprios ouvidos doem, parece que o som fica mais alto e a gente, ops, a nossa raça tem a audição muito sensível.
Agora, se me dão licença vou exercer o meu mais sagrado ofício que é dar uma cochilada. Tem uma obra aqui em frente com uns caras muito barulhentos e tenho dormido tão pouco! Tem muito mais coisas a serem ditas, depois eu falo...zzzzzz.
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* SRD (Sem Raça Definida) é o mesmo que vira latas e não passa de um eufemismo para amenizar a nossa barra de enjeitados. O advento do politicamente correto já chegou também ao mundo cão.