Frugal Em Vagas

Cap I

Era doce e débil o ar vespertino em setembro. E lá estavam as crianças, começando a caminhar ao redor do muro rebocado. Chamemos de crianças, apesar de já terem todos dado seus primeiros beijos. Caminhavam em quatro, saindo da escola depois das uma, culpa da carga horária brutal e de uma lojinha de salgados ao lado que roubava a chance de qualquer um deles terem uma dieta saudável. Seus dedos brilhavam no sol escaldante da ilha devido à gordura das bombas e, enquanto caçoavam das aulas, despretensiosamente, a menina segurou a mão suja de um dos três meninos, o mais alto.

- Ai, nem limpou.

Havia algo de masculino na atitude da garota, de elevar um pouco a camisa e limpar os dedos sujos do amigo na sua camisa. Um vento passou, comum em áreas litorâneas, um vento úmido mesmo que não haja uma nuvem no céu. Não era refrescante, era enervante. Não sei se captam a diferença, pouco importa, mas com o vento os outros dois meninos notaram a camisa elevada da baixinha, caçoando em segundos com a cena, aquele caçoar bobo de “Tá te querendo”. As marcas das unhas no braço de um, o mais expansivo, levaram semanas para sair. O outro, mais esperto, conseguiu fugir. A baixinha e o mais alto agora voltaram a caminhar, seguindo os dois à frente num ritmo mais lento, que combinava com a falta de vento da época.

Na curva à direita deu para ver o navio antes da linha do mar. O mais esperto iria almoçar em casa e se despediu, seguindo em linha reta. O mais alto e a baixinha conseguiram alcançar ambos a tempo, na frente do mercadinho. Seria hora de comprar algo? Naquele calor, aquele refri local gelado pediu loucamente por companhia de algum lábio. Conseguiu três pares. O mais alto tinha receios de coisas processadas. E a baixinha e o expansivo seguiram pelas calçadas, deixando o mais alto do lado de fora.

- Me segura?

O mais alto chegou o corpo junto ao meio fio, mesmo cansado e suado, cedendo o ombro à baixinha, que apoiou o antebraço no ombro do mais alto. Era comum já, tão comum quanto o olhar do mais alto nos olhos da baixinha, sempre capturando aquele brilho permanente. Ouvia o refrigerante descer na garganta da menina, num ritmo mais ágil que aquelas gotas de suor que desciam de seu pescoço, marcando a camisa branca. O expansivo falava com a baixinha e o mais alto ouvia com o ombro a conversa particular do antebraço com a jugular. A conversa foi curta, na frutaria a menos de quinhentos metros se despediram, quando tiveram de contornar novamente a rua, seguindo por debaixo das árvores do outro lado do muro, onde não havia meio fio.

A rua era toda deles, nessa hora quem tinha carro certamente faria o possível para estar fora deles. Embaixo dos pés de jambo, comentavam sobre a proximidade da época, momento em que deveriam tomar todo cuidado com as roupas novas, as frutas velhas e as mentes velhacas. O navio virou a entrada do clube, dono do muro que obrigava os três a darem essa volta. O expansivo só queria chegar em casa e jogar a mochila longe, o mais alto só queria tirar os tênis, a baixinha só queria meia hora na varanda. Verdade seja dita, ela ganharia essa meia hora em vinte minutos anteriores, mas ganharia quarenta minutos de memórias contornando o muro que poderia parar no primeiro vértice, ponto do ônibus para sua casa, sempre pontual. E isso a fazia continuar indo com o expansivo e o mais alto até o fim da rua, onde morava o expansivo. O mais alto, quase seu vizinho, morava na última curva que faziam, assim que acabava muro e rua, uma subida à esquerda que terminava na rua onde o ônibus passava.

Essa capilar era o fim do dia da baixinha na maior parte dos dias, então ela subia no meio fio que surgia e pedia o ombro mais uma vez. Não eram nem 100 metros de caminhada, mas isso era um mundo comparado aos poucos centímetros de ombro e antebraço dos meninos. Ainda mais numa subida. Ainda mais na primavera da ilha. Vento novo para chacoalhar as gotas de suor da franja do mais alto, que já puxava a chave de casa. A baixinha, sempre na frente do portão, se despede do mais alto, ganhando mais uns segundos de dia, beijando-o no rosto e subindo o pouco que resta da rua, para sentar no banquinho e esperar seu ônibus passar. Ventava legal nesse dia. O suspiro da menina, sob as árvores, foi carregado ao oceano sem mal sair da boca.

Cap II

A primavera deu tchau em dezembro, pouco depois da escola. Férias justas da rotina desumana de aulas, injustas pelo distanciamento do antebraço da baixinha do ombro do mais alto. Por isso mesmo, no mês de dezembro, comemorariam o aniversário da baixinha assim que a chuva deixasse. Só que dessa vez ela simplesmente não queria deixar.

- 3 dias…

- … e meio.

O telefonema da baixinha para o mais alto parecia uma conversa de uma pessoa só, dada a capacidade que um tinha de completar a frase do outro, ajudada pela simplicidade de suas frases e idéias. Mas eram kilômetros burlados por um bocal e um fone, e isso era o que importava, já que a chuva insistia em cair. Não dava pra saber se ela tinha parado, já que nenhuma das crianças realmente ligava para o jornal local. Mas do abrir ao fechar dos olhos da baixinha, que sempre ia dormir tarde e acordava cedo, as gotas marcavam presença do céu ao filete de água que começava a cobrir o chão da ilha.

- Seu aniversário surpresa…

- …melou

- Mas não vamos desistir

Essa ela não tinha previsto.

- Não vamos…

- … ou melhor, não vou.

Essa ela também não tinha previsto.

- Fala algo.

- Obrigado.

Ele não tinha previsto.

Cap III

O expansivo e o mais alto se encontravam todo dia com o mais esperto na sua casa. A brincadeira era desaconselhável na visão dos pais e estupidamente inofensiva para os 3, mas quem julgaria simplicidade como pecado naqueles aninhos? Não os garotos que, inspirados pela falta de sol, brincavam na varanda sem entender a cara fechada dos pais. Esses só agiam como seus personagens, sem abdicar de um pedaço seu por um segundo, acrescentando as habilidades dos personagens naquele mundo particular.

Claro que a brincadeira serviu mais para tentar agilizar o aniversário da baixinha do que pra exercício de imaginação. Chovia sem parar a 5 dias e o mais esperto notou uma crescente preocupação dos pais, que ficavam tempos no telefone conversando com outros pais sobre coisas que pareciam desaconselháveis para as crianças, mas estupidamente inofensivas, ainda, para os pais. Ninguém queria se separar, mas viviam numa ilha que enfrentava chuvas incessantes há dias e talvez não fosse uma mera opção. Ou…

O mais esperto tinha uma idéia florescendo desde o quarto dia. Comentou com o mais alto primeiro, por telefone, ouvindo a reclamação no pé da orelha (Tem coisa importante pra lidar, filhote), enquanto narrava seu plano com pouco entusiasmo.

- Topo.

Quando falou com o expansivo, era outro entusiasmo que guiava suas palavras.

- Topo!

E assim, nesse dia na varanda, sob o jugo do vento frio, raro na altura do equador, desenvolviam menos a imaginação e mais os devaneios. Mas devaneios que tomavam forma a cada novo encontro. E suas casas ficavam menos desenvolvidas. Nesse segundo dia, já tinham ido pra fora algumas cadeiras, colchas e almofadas das casas dos 3. Com saques acontecendo a todo tempo, ninguém notaria o plano que se desenvolvia no latão de entulho na esquina da casa do mais esperto.

Claro que um disfarce ajudava bastante. Na cabeça dos pais havia uma brincadeira desaconselhável. As crianças abriam seus livros e expressões na frente deles com bastante energia, o que não interessava aos pais cada vez mais absortos pelo problema local. E embora tal problema atraísse a curiosidade das crianças, havia um aniversário e um plano em prática. Um aniversário atrasado, claro, mas nada que não pudesse ser sanado. E assim, na cabeça das crianças havia uma realidade desaconselhável e um caminho para fora dela. Palatável, concreto, suave.

Cap IV

A chuva já havia enviado sua mensagem para as crianças: Se quisessem o aniversário da baixinha, precisariam de um pouco mais de energia que a empenhada até agora. Após 7 dias, não havia porque se animar pela redução da intensidade, mesmo porque não havia certeza se a falta de vento tornava a chuva mais fraca, já que o que importava era a água, que corria livre pelas ruas, caindo no mar, que engolia preguiçosamente o litoral com suas vagas.

Foi nesse dia que o mais esperto convenceu o mais alto que a água da praia estaria mais doce, no dia do teste do barquinho. Sim, em apenas uma semana, com cordas, panos e móveis abandonados, caixas de frutas, metais do que antes eram fruteiras, agora jazia um barquinho. Sem ter certeza se seu Frankenstein sabia nadar, as crianças passaram a tarde arrumando uma forma de levar (por campinhos de areia, estradas de terra, alamedas alagadas, rodovias vazias) sua balsa até as águas do mar. Nesse ínterim, cresceram todo tipo de apostas bobas, filhas da primeira: vai dar certo?

- Eu digo que sim.

- Eu digo que não.

- Eu digo que não aposto.

E foi assim que o mais alto mediou a disputa do expansivo e do mais esperto. As copas das árvores gotejavam com força extra sobre a estrutura tosca que deveria flutuar, melodicamente acuando as crianças. E num campinho já completamente alagado, no três, puseram o barco na piscina onde antes jogavam futebol. E a flutuação plácida do barquinho deixou claro que o mais esperto apenas queria se divertir com um pouco de tensão nos amigos, colocada pelo medo do fracasso. Ou não.

Vendo que essa caixa de Pandora era um Jack in the Box, o expansivo e o mais esperto passaram o resto da travessia entrando em todo tipo de aposta que os fizessem parar a caminhada sempre que surgisse a chance. E no caminho da alameda, perguntaram se o barco seguiria com a corrente que descia direto no mar. Uma ladeira como aquelas poderia significar o fim do barco nas portas do mar, mas a importância disso era crucial naquele momento. Velocidade.

- Eu digo que sim.

- Eu digo que não.

E observando do topo da ladeira, no meio da alameda, tiraram o barquinho da calçada e pousaram sobre a corrente de água doce indo em direção ao mar nas duas faixas da pista. O expansivo subiu a bordo e a barca ainda flutuava na pista. Subiu o mais esperto e ela ainda flutuava. O mais alto, num movimento rápido, subiu na barca sem que ela fosse sem ele. Mas ela estancou no fundo de asfalto. E com um placar empatado, seguiram em direção à avenida litorânea, o mais esperto satisfeito de voltar ao topo no quesito apostas.

Mas o empate não perduraria. A baixinha já estava ensopada quando chegaram na fina faixa de areia que resistia às vagas com a barca, e mesmo que a barca não estivesse embrulhada pra presente, sabia que era a dona e merecedora daquele esforço. Acalorada pela surpresa, abraçou cada um com força, ansiosa para testar o brinquedo. Com o parco vento que corria ali, as ondas não quebrariam forte nem mesmo contra uma prancha, um botezinho enfrentaria com mais ímpeto as águas que um quebra-gelo navegando pelo ártico. E apesar do esforço empregado para arrastar a embarcação pela areia molhada, a baixinha subiu fácil no bote que flutuava pelas águas. E quando os amigos subiram, a baixinha deixou as águas cuidarem do trajeto do barco sozinha.

- Mas pra quê?

- Se a água chegar alto na ilha, a gente vai pra mais alto ainda.

E observando a cascata na ladeira, essa visão parecia muito distante. Seria preciso muita água pro mar ir tão longe. E o mar ficaria doce. E assim, na cabeça do mais esperto, surgiu a idéia, onde o alerta dos pais era claro: se a água estiver doce, teremos que ir para longe. Expansivo, alto e baixinha caçoaram, mas compraram a idéia de testar a água. Quem testaria foi tirado no palitinho, e quando o mais alto provou a água do mar, o morno amargou tão depressa quanto salgou, embora ele tenha escondido bem a careta.

- Qual o gosto?

- Gentil... pra gente.