Quando as árvores usavam sapatos

_ Lembro daquele tempo, quando, viajando desde a terra dos pássaros imitadores à terra dos gambás falantes, eu ia visitar minha irmã Seiva que tinha se mudado de região porque a umidade daqui carregava muito as folhas dela com orvalho e, como era meio fraca de fibra, amanhecia espirrando pelas manhãs. Nossa mãe, bastante robusta para sua condição de habitante da pradaria, era considerada pelos vizinhos, a mais distinta de sua estirpe “Graciosa figura, excelente altura, abundante folhagem” diziam todos “Não é estranho ela dar rebentos de magnífica qualidade. Pena essa filha ter saído meio fraquinha” Bom nada que não tivesse solução com uma mudança de ares e… de terra.

Assim falava a algarobeira anciã, narrando lembranças para cinco dos seus tataranetos que o escutavam com atenção, de pé ao seu redor.

_ E… vocês não cansavam de andar? Quer dizer, ir de um lugar para outro, percorrendo tão longas distâncias ¿Como era? O faziam quando ainda eram pequenos, imagino eu, para o tronco não lhes pesar tanto ¿E os pássaros que faziam ninhos em seus galhos?

Perguntou um salgueiro que tinha procurado a melhor localização perto da areia ribeirinha do arroio de águas plácidas, enquanto aproveitava para molhar os finos raminhos que insistiam em crescer para abaixo, apenas porque os galhos dos salgueiros crescem para abaixo.

_ Alguns de nós mudava quando éramos pequenos sim,

Começou a algarobeira.

_ Mas outros o faziam segundo a comodidade ou incomodidade que sentissem. Se a gente cansava? Nem um pouco! Ninguém cansa de carregar seu próprio corpo tendo bons pés que o sustente. Além do mais tínhamos bons sapatos, que por aquele então fabricava o melhor sapateiro das árvores que tenha existido: Seu Tã Tã, uma árvore-da-borracha chamada assim pela batida constante do martelo dele quando pregava as solas. E tinha muitíssimos clientes! Além de numerosos galhos com os que podia fabricar vários sapatos ao mesmo tempo e deixar a todos satisfeitos.

_ E os pássaros, os ninhos, suas famílias?

_ Eu is responder isso agora.

Disse a algarobeira, enquanto um ipê amarelo cheio de flores espalhava pólen ao seu redor, por isso um cardo pequeno espirrava várias vezes.

_ Os pássaros iam conosco, assim muitas famílias se separaram e a maneira de encontrar-se de novo foi começando a emigrar. Em primavera os pássaros do sul voam para o norte e levam consigo os filhos e os filhos dos filhos para conhecerem os parentes. Em primavera viajam para o norte e no inverno, para o sul. Houve épocas em que as bandadas de pássaros eram tão grandes que o céu se cobria com suas asas coloridas.

_ E todos vocês iam para o mesmo lugar?

_ Nem sempre. Íamos para todo lugar. Por isso em cada região havia diferentes espécies. Não era estranho encontrar um pé de bananeira no meio do deserto ou um cáctus entre as trepadeiras da floresta. De fato lembro um caso de um pé de paineira que tinha brigado com a namorada, uma figueira. Estava tão triste que decidiu caminhar e caminhar até chegar numa praia. Ali assentou suas raízes na areia e dedicou-se a declamar poemas de amor nas noites solitárias frente ao mar.

_ Coitado do pé de paineira!

Lamentou o pequeno cardo.

_ Pois é, mas isso trouxe mais problemas para ele quando uns pescadores, desconhecendo esse tipo de árvore, fizeram correr o boato de que o pé de paineira estava maldito e fazia cair as nuvens do céu. É que os pescadores não compreenderam que aquilo que viam flutuar sobre as ondas era nada mais que o algodão ou paina que caia da árvore deprimida. Outros homens foram chamados, no dia seguinte, para tentarem, entre todos, tirar a árvore dali por isso nosso amigo fugiu durante a noite e nadou mar adentro. Ninguém tornou a vê-lo, só uma gaivota disse uma vez que a paineira estava morando numa ilha afastada.

Desde aquele dia a figueira deixou de florescer e ainda hoje perto da praia voam umas lanugens brancas. Os pescadores daquele lugar continuam achando que são nuvens mas na verdade é o algodão da paineira que vem desde a ilha querendo achar os galhos da figueira.

_ Diga para a gente avô, de quem compravam os sapatos quando estavam longe? Havia outros sapateiros?

_ Bom, esse sim que era um problema, porque se bem os sapatos que fazia Tã tã eram muito bons, a gente caminhava tanto que acabavam gastos especialmente quando andávamos por regiões muito rochosas então havia quem ficava por ali mesmo.

_ Ah, acho que já entendi, então deixaram de viajar porque não tinham sapatos.

_ Foi mais ou menos isso. Na verdade as árvores mais audazes continuaram andando, inclusive alguns preferiam ir pelos leitos dos rios para que não les faltasse água. As árvores decidimos deixar de caminhar por outro motivo. Aconteceu que os homens começaram a brigar por nossa causa. Por exemplo, se um pé de laranja ia de uma casa para outra, os donos acusavam-se mutuamente de tê-la roubado. Foi então que decidimos entrar num acordo com os homens: nós não caminharíamos mais se eles se comprometiam a semear a terra com nossas sementes para que outras árvores pudessem germinar.

Manilkara
Enviado por Manilkara em 09/01/2010
Código do texto: T2019967
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