As estórias do papai
De: Magawi Siqueira
Era a primeira vez que a minha filha Manoela vinha dormir em minha casa depois que eu e sua mãe nos separamos. Estávamos exaustos – aliás, eu estava – e fomos para a cama tarde da noite, depois de um dia extremamente feliz ao lado de minha filhinha. O quarto da minha pequena ficava em frente ao meu, e ela pediu-me para que deixássemos as portas abertas.
A chuva caía pelo telhado, fazendo um barulho gostoso e aconchegante, mas os raios e trovões deixavam a madrugada um pouco sombria, sinistra, e também barulhenta.
A Nunu – é assim chamo minha filha – acordou três horas da manhã e veio correndo à minha cama.
– Pai... Papai... Acoooorda!
– Hum, ããã... O que foi Nunu?
– Eu não consigo dormir, papai... Tô com medo...
– Medo de quê, Nunu?
– Não sei papai...
– Não sei não existe, filha... Do que você está com medo?
– Tô com medo dos trovões, papai...
– Eu também tô, meu amor... Vem, deita aqui do meu lado.
– Papai, posso ligar pra mamãe?
– Não, meu amor, não pode ligar não... Essa hora a sua mãe deve estar dormindo... Nós não vamos acordá-la, não é? Mas não se preocupe que amanhã você liga pra ela. Tudo bem?
– Tá bom, amanhã eu ligo... Papai, conta uma estória pra mim...
– Nunu, o papai tá com sono... Vamos dormir que depois o papai conta...
– Taaa booommm!
Depois de quinze minutos e muitas viradas na cama...
– Ok Nunu, você venceu! Eu vou contar uma estória pra você.
– Ooooobaaaa!
– Então vejamos...
– Começa logo papai!
– Caaaalma, Nunu... Eu vou começar...
– Esta é a estória de dois irmãos... – comecei a estória.
– Mas pai, não vai ter era uma vez?
– Tá boooooom Nunu, tá bom... Eu ponho “era uma vez”... Vamos lá:
– Era uma vez – em algum lugar distante, no mundo da imaginação, na cidade da alegria – uma casa com um grande quintal cheio de árvores.
– Era uma casa mal assombrada, papai?
– Não, Nunu, era a casa do Rico e da Lulu.
– Lu-lu, papai? Aaaaaaa... Por que ela não chama Nunu como eu?
– Então tá, Nunu! Mas como eu ia dizendo antes que alguém me interrompesse:
– Havia uma casa com muitas árvores no quintal!
– Que cor era a casa, papai?
– Nunuuuuu...
– Tá bom, papai! Eu vou ficar quieta...
– E no quintal da casa tinha pé de abacate, de manga, pé de jabuticaba, de limão rosa e até um pé de uva japonesa... Ah, também tinha uma piscina para patinhos.
– Piscina para patinhos, papai?
– Claro, Nunu, uma piscina para patinhos! Não era muito grande, mas o Leco o Teco e o Reco – três patos que ficavam correndo atrás das crianças que vinham brincar no quintal – viviam tranquilamente. Só que eles só corriam atrás das criancinhas, mas não machucavam ninguém, gostavam apenas da bagunça.
– Que legal pai...
– Na casa também morava o Dentinho, Nunu. Um cachorro vira-latas marrom que vivia com a língua para fora da boca e uma das orelhas caídas, e a casinha onde ele morava ficava ao lado da piscina, perto dos patinhos e embaixo do pé de uva japonesa, que era a maior árvore do quintal.
– E a casa, papai?
– A casa ficava no fundo do quintal, filha.
– E de que cor era papai?
– Que cor você acha, minha querida?
– Eu acho que era rosa...
– Rosa?
– É papai... E as janelas verdes e as portas azuis...
– Ué! Como é que você sabe que a casa tinha janelas e portas, Nunu?
– Aaaaaaa, bobinho... Toda casa tem janelas e portas... Né?
– É, minha princesa, você tem razão! Toda casa tem portas e janelas, você tem razão... Mas vamos continuar a nossa estória:
– A casa era rosa, com janelas verdes, portas azuis e telhado todo vermelho. Na frente havia uma varanda com uma rede e duas cadeiras de balanço, onde em noites estreladas de luar bonito a família Souza se reunia para cantar modas e contar estórias.
– Por que Souza?
– Porque esse é o nosso sobrenome, Nunu.
– E o que é sobrenome, papai?
– Sobrenome é o nome que vem dos nossos pais e dos pais dos nossos pais. É ele que diferencia uma pessoa que tem o nome igual da outra.
– Como assim, papai?
– No mundo tem um monte de Manoelas, assim como você, mas o seu sobrenome é que diferencia você das outras. O seu sobrenome é que diz que você é filha de mim e da sua mãe. Entendeu?
– Mais ou menos, papai...
– Então outra hora eu lhe explico melhor esse negócio de sobrenome, mas agora vamos continuar a estória da casa. E como eu ia dizendo...
– Nessas lindas noites em que a família Souza se reunia, o seu Raimundo – pai das crianças – pegava o velho violão e dedilhava belas modas para encantar o pessoal, enquanto a dona Climeria – que era a mãe – fazia tapioca, bolo de fubá e doce de abóbora... Ah, ela também fazia um suco de maracujá que era uma delícia.
– Papai, tô com fome.
– Mas Nunu, você não pode nem ouvir falar em comida hein!
– Ah, ah, ah, ah... – Risos de pai e filha.
– Ah! Eu havia me esquecido...
– O quê, papai? O quê?
– Tinha me esquecido que na casa morava também a dona Joana – mãe da dona Climeria –, uma velhinha de cabelos bem branquinhos que ninguém chamava pelo nome, e sim, por Zinha.
– E ela era legal?
– Claro que era Nunu! Ela era adorável! Cheia de vida, de alegria e amor, ela era a melhor avó do mundo. Pelo menos para a Nunu e o Rico...
– Certo dia, eles estavam brincando na sala enquanto, a Zinha acabava de fazer o almoço.
– E a mãe deles?
– A mãe deles estava trabalhando, filha.
– Trabalhando aonde?
– Na escola, minha querida... A mãe do Rico e da Nunu era professora.
– Deve ser legal ter uma mãe professora, né pai?
– Deve ser minha princesa. Deve ser... Mas vamos continuar...
– Enquanto eles brincavam um barulho vindo lá de fora chamou a atenção.
– O quê que foi papai? O quê que foi?
– Se você deixar eu conto...
– Tá bom... Tá bom...
– Trocam-se garrafas e panelas velhas por pintinhos – uma voz grossa e metálica vinha repetidamente de um velho alto-falante sobre uma Kombi toda enferrujada.
– Pintinho, pintinho... – A Nunu gritou, desesperadamente, apontando para fora, na direção donde vinha o anúncio.
– A mamãe disse pra gente não trazer mais bicho pra dentro de casa – o rico alertou-a, com a voz séria. Em seguida pensou: “Eu sou o irmão mais velho”.
– Eu quero, eu quero... – Nunu continuava gritando enquanto puxava a camisa do irmão.
– Tá bom, Nunu! Mas a mamãe vai brigar com a gente.
– Não vai não, Rico... Não vai não...
Rico foi até a cozinha, pegou uma garrafa vazia e saiu correndo, com dificuldade, para a rua.
– Por que ele tinha dificuldade pra correr, papai?
– Ah minha linda, eu não lhe contei ainda... O Rico tinha dificuldade pra correr porque nascera com um dos pezinhos torto e tinha que usar uma enorme bota ortopédica para fazer o tratamento e corrigir o pezinho. E essa bota o atrapalhava na hora de correr.
– Por que quê ele nasceu com o pé torto?
– Nunu, algumas criancinhas nascem ás vezes com algum problema. Tem criancinha que nasce sem visão, algumas sem audição, outras nunca poderão andar... E o Rico nasceu com o Pezinho torto...
– Tadinho dele, papai...
– Tadinho nada... Você não usa óculos?
– É papai... Uso!
– Então? E o Rico usava bota ortopédica, mas nem por isso era um coitadinho, pelo contrário, ele era uma criança muito feliz e cheia de vida, só não podia correr direito. Mas vamos continuar a estória...
– Mesmo com dificuldade, Rico correu pelo quintal até alcançar a velha perua enferrujada, entrou no meio da bagunça formada pela criançada e em poucos minutos voltou com o filho de uma galinha – pintado de vermelho – em suas mãos. O Rico adorava a sua irmã e não conseguia dizer não a ela, e isso o fazia entrar em muitas encrencas.
– O que é isso, menino? – A avó deles questionou o garoto, ao ver aquele pequeno animal em sua mão.
– Aaaaaaaa, Zinha... É só um pintinho que eu troquei por uma garrafa.
– Mas riquinho, meu filho... A sua mãe já não disse que não quer mais animais dentro de casa? Já não basta o peixinho, a rã, o preá, e até a aranha que tem aqui dentro.
– Mas Zinha, é só um pintinho!
– O que é preá, papai?
– Preá é como se fosse um coelhinho, só que é menorzinho. Ele é parecido com um ratinho.
– Só quero ver a hora que a sua mãe ver essa coisinha vermelha metida a frango – a avó continuou com o sermão.
– Me dá o fango, Rico... Me dá o fango – gritava a Nunu, ansiosa para pegar o pintinho.
A Zinha começou a rir com a animação da neta... E era sempre assim, ela dava broncas e mais broncas, mas no fundo no fundo ela adorava aqueles maravilhosos pestinhas. Por fim, deixou os dois brincando com o novo amiguinho e voltou aos seus afazeres.
– Cuidado Nunu, senão você machuca o fango! – falou o Rico, entregando cuidadosamente o pintinho para a irmã.
– Fanguinho bonitinho – Nunu falava e alisava a cabeça do bichinho...
– A Joana pode pegar o fango um pouquinho? – Nunu perguntou ao irmão.
– Ué, quem é a Joana, papai?
– Joana é a amiga imaginária da Nunu, minha filha.
– Igual a minha, pai?
– É, minha princesa, igual a sua... E quando a Nunu entregou o “fango” para a Joana, adivinha o quê que aconteceu?
– O quê? O quê, papai?
– O pintinho saiu correndo, Nunu, pois amiguinho imaginário só existe na nossa imaginação, e não pode segurar um pintinho de verdade.
– E pra onde foi o pintinho, papai?
– O fango correu rapidinho para baixo de um sofá marrom que a família Souza possuía. E foi a maior bagunça para pegar o bichinho.
– Pega o fango, pega o fango! – gritava a Nunu, fazendo a maior algazarra.
– Nunu, você fica naquela ponta eu vou pra outra, e a Joana fica no meio – o Rico falava e gesticulava, apontando para um lado e para outro, e em seguida foi para o local determinado para ele. O Rico nunca teve amigos imaginários, então ele emprestava os de sua irmãzinha.
– Mas pai, dá pra pegar amigo imaginário emprestado?
– Sei lá, filha... Na estória do Rico e da Nunu dá.
– O fango era muito esperto e saiu correndo pelo meio, onde estava a amiguinha imaginária Joana.
– Eu sei, eu sei... Amigo imaginário não existe, né pai?
– Não sei, querida, acho que sim...
– Quando ouviu a bagunça, a Zinha voltou...
– Crianças, o quê está acontecendo?
– Corre vovó, pega o fango! – a Nunu gritou...
– Mas o esperto pintinho correu até a porta da cozinha – que estava entreaberta – e foi direto para a varanda, passou por debaixo da rede, desceu os três degraus e alcançou rapidamente o imenso quintal. As crianças e a Zinha foram atrás, mas o bichinho era espertinho mesmo e continuou correndo, só que quando se aproximou da piscina dos patinhos ele se assustou, pois o Leco o Reco e o Teco correram atrás dele, fazendo quac, quac, quac, querendo bicá-lo.
– Coitadinho do pintinho, papai...
– É querida, mas o pintinho não era bobo, e passou por entre as pernas de um dos patos e correu para longe.
A bagunça foi geral no quintal, e enquanto o dentinho – que estava preso a uma corrente na casinha – latia desesperadamente, as crianças e sua avó tentavam resgatar o pequeno ovíparo.
– O que é ovíparo, papai?
– É o bichinho que nasce do ovo, filhinha.
– Sem pensar, o pintinho correu em direção ao cachorro!
– Coitado papai! O dentinho machucou ele?
– Não sei, Nunu... Posso continuar a estória?
– Pode.
– Os patos continuavam no encalço do pintinho, e o pintinho continuava correndo na direção do vira-latas, e quando chegaram perto do Dentinho, os patos foram surpreendidos com o rosnar do cão, que partiu para cima deles e tentou mordê-los, protegendo assim o pintinho. Os patos pularam para trás e afastaram-se do cão feroz...
– E o pintinho, papai?
– O pintinho passou pelo cachorro preocupado com os patos e entrou na casinha do cão.
– Mas o Dentinho não comeu o pintinho, papai?
– De repente, Nunu, o Dentinho percebeu que o pintinho estava dentro de sua casa, então virou e começou a latir e rosnar na direção do franguinho.
– Rico, ajuda o fango! A Nunu gritava para seu irmão, desesperada com a situação do pobre pintinho.
– Não senhor, Rico! Se você for lá ele vai te morder – a Zinha alertou o neto e segurou-o pelo braço.
– A barulheira foi geral dentro da casinha do Dentinho, filha. Era latido pra cá, latido pra lá...
– E o Dentinho comeu o pintinho, papai?
– Foi exatamente isso que a Nunu da nossa estória perguntou para sua vovó, minha querida.
– E ele comeu o pintinho, papai? O Dentinho comeu?
– Você só vai saber ouvindo o resto da estória.
– A Zinha ficou em silêncio após segurar o neto, e os netos também aguardavam o fim da algazarra dos patos e dos latidos de Dentinho. Todos ansiosos e olhando para dentro da casinha, até que o silêncio reinou por alguns minutos e fez o nervosismo aumentar. A avó já pensava em alguma coisa para falar e acalmar o coração dos netos, enquanto nos olhos dos netos as lágrimas já se formavam. Até que o vira-latas pôs a cabeça para fora da casinha e deixou a avó e os netos com mais expectativa ainda.
– E o quê que é expectativa, papai?
– Expectativa é ter esperança de algo acontecer, minha princesa.
– E o pintinho, papai? O que aconteceu com ele?
– Aaaaaaa, filha... A Nunu já estava chorando, pois achava que o Dentinho tinha comido o seu mais novo amiguinho. Mas para a surpresa de todos e alegria de Rico e Nunu, o Dentinho saiu da casinha, e em cima de suas costas estava o fango, são e salvo, imperando sobre os pêlos do seu novo e fiel amigo, o vira-latas.
– Ah, ah, ah, ah, ah, ah… Que legal, papai...
– É filha, é legal mesmo... E o mais legal é que o fango e o Dentinho ficaram amigos para sempre, nunca mais se largaram, e por incrível que pareça, um protegia o outro. E ainda hoje, se alguém for à casa dos Souza – lá no mundo da imaginação e na cidade da alegria – vão encontrar um quintal cheio de árvores, três patos barulhentos e um fango sempre alerta, em cima das costas do seu amigo Dentinho.
– Acabou a estória, papai?
– Essa aventura acabou minha querida. Mas o Rico e a Nunu já aprontaram bastante, e ainda têm muitas estórias que um dia irei lhe contar.
– Então conta, papai! Conta!
– Outro dia, minha princesa, outro dia... Agora nós precisamos dormir e descansar, senão amanhã nós dormiremos é no cinema.
– Ooooooooobaaaaaaaa!! Nós vamos no cinema, papai?
– Vamos, Nunu... Vamos...
– Eeeeeeeeeeeeeeeee!
– Eu te amo, filhinha. Eu te amo... Durma com os anjos...
– Também te amo, papai...
Fim.
De: Magawi Siqueira
Era a primeira vez que a minha filha Manoela vinha dormir em minha casa depois que eu e sua mãe nos separamos. Estávamos exaustos – aliás, eu estava – e fomos para a cama tarde da noite, depois de um dia extremamente feliz ao lado de minha filhinha. O quarto da minha pequena ficava em frente ao meu, e ela pediu-me para que deixássemos as portas abertas.
A chuva caía pelo telhado, fazendo um barulho gostoso e aconchegante, mas os raios e trovões deixavam a madrugada um pouco sombria, sinistra, e também barulhenta.
A Nunu – é assim chamo minha filha – acordou três horas da manhã e veio correndo à minha cama.
– Pai... Papai... Acoooorda!
– Hum, ããã... O que foi Nunu?
– Eu não consigo dormir, papai... Tô com medo...
– Medo de quê, Nunu?
– Não sei papai...
– Não sei não existe, filha... Do que você está com medo?
– Tô com medo dos trovões, papai...
– Eu também tô, meu amor... Vem, deita aqui do meu lado.
– Papai, posso ligar pra mamãe?
– Não, meu amor, não pode ligar não... Essa hora a sua mãe deve estar dormindo... Nós não vamos acordá-la, não é? Mas não se preocupe que amanhã você liga pra ela. Tudo bem?
– Tá bom, amanhã eu ligo... Papai, conta uma estória pra mim...
– Nunu, o papai tá com sono... Vamos dormir que depois o papai conta...
– Taaa booommm!
Depois de quinze minutos e muitas viradas na cama...
– Ok Nunu, você venceu! Eu vou contar uma estória pra você.
– Ooooobaaaa!
– Então vejamos...
– Começa logo papai!
– Caaaalma, Nunu... Eu vou começar...
– Esta é a estória de dois irmãos... – comecei a estória.
– Mas pai, não vai ter era uma vez?
– Tá boooooom Nunu, tá bom... Eu ponho “era uma vez”... Vamos lá:
– Era uma vez – em algum lugar distante, no mundo da imaginação, na cidade da alegria – uma casa com um grande quintal cheio de árvores.
– Era uma casa mal assombrada, papai?
– Não, Nunu, era a casa do Rico e da Lulu.
– Lu-lu, papai? Aaaaaaa... Por que ela não chama Nunu como eu?
– Então tá, Nunu! Mas como eu ia dizendo antes que alguém me interrompesse:
– Havia uma casa com muitas árvores no quintal!
– Que cor era a casa, papai?
– Nunuuuuu...
– Tá bom, papai! Eu vou ficar quieta...
– E no quintal da casa tinha pé de abacate, de manga, pé de jabuticaba, de limão rosa e até um pé de uva japonesa... Ah, também tinha uma piscina para patinhos.
– Piscina para patinhos, papai?
– Claro, Nunu, uma piscina para patinhos! Não era muito grande, mas o Leco o Teco e o Reco – três patos que ficavam correndo atrás das crianças que vinham brincar no quintal – viviam tranquilamente. Só que eles só corriam atrás das criancinhas, mas não machucavam ninguém, gostavam apenas da bagunça.
– Que legal pai...
– Na casa também morava o Dentinho, Nunu. Um cachorro vira-latas marrom que vivia com a língua para fora da boca e uma das orelhas caídas, e a casinha onde ele morava ficava ao lado da piscina, perto dos patinhos e embaixo do pé de uva japonesa, que era a maior árvore do quintal.
– E a casa, papai?
– A casa ficava no fundo do quintal, filha.
– E de que cor era papai?
– Que cor você acha, minha querida?
– Eu acho que era rosa...
– Rosa?
– É papai... E as janelas verdes e as portas azuis...
– Ué! Como é que você sabe que a casa tinha janelas e portas, Nunu?
– Aaaaaaa, bobinho... Toda casa tem janelas e portas... Né?
– É, minha princesa, você tem razão! Toda casa tem portas e janelas, você tem razão... Mas vamos continuar a nossa estória:
– A casa era rosa, com janelas verdes, portas azuis e telhado todo vermelho. Na frente havia uma varanda com uma rede e duas cadeiras de balanço, onde em noites estreladas de luar bonito a família Souza se reunia para cantar modas e contar estórias.
– Por que Souza?
– Porque esse é o nosso sobrenome, Nunu.
– E o que é sobrenome, papai?
– Sobrenome é o nome que vem dos nossos pais e dos pais dos nossos pais. É ele que diferencia uma pessoa que tem o nome igual da outra.
– Como assim, papai?
– No mundo tem um monte de Manoelas, assim como você, mas o seu sobrenome é que diferencia você das outras. O seu sobrenome é que diz que você é filha de mim e da sua mãe. Entendeu?
– Mais ou menos, papai...
– Então outra hora eu lhe explico melhor esse negócio de sobrenome, mas agora vamos continuar a estória da casa. E como eu ia dizendo...
– Nessas lindas noites em que a família Souza se reunia, o seu Raimundo – pai das crianças – pegava o velho violão e dedilhava belas modas para encantar o pessoal, enquanto a dona Climeria – que era a mãe – fazia tapioca, bolo de fubá e doce de abóbora... Ah, ela também fazia um suco de maracujá que era uma delícia.
– Papai, tô com fome.
– Mas Nunu, você não pode nem ouvir falar em comida hein!
– Ah, ah, ah, ah... – Risos de pai e filha.
– Ah! Eu havia me esquecido...
– O quê, papai? O quê?
– Tinha me esquecido que na casa morava também a dona Joana – mãe da dona Climeria –, uma velhinha de cabelos bem branquinhos que ninguém chamava pelo nome, e sim, por Zinha.
– E ela era legal?
– Claro que era Nunu! Ela era adorável! Cheia de vida, de alegria e amor, ela era a melhor avó do mundo. Pelo menos para a Nunu e o Rico...
– Certo dia, eles estavam brincando na sala enquanto, a Zinha acabava de fazer o almoço.
– E a mãe deles?
– A mãe deles estava trabalhando, filha.
– Trabalhando aonde?
– Na escola, minha querida... A mãe do Rico e da Nunu era professora.
– Deve ser legal ter uma mãe professora, né pai?
– Deve ser minha princesa. Deve ser... Mas vamos continuar...
– Enquanto eles brincavam um barulho vindo lá de fora chamou a atenção.
– O quê que foi papai? O quê que foi?
– Se você deixar eu conto...
– Tá bom... Tá bom...
– Trocam-se garrafas e panelas velhas por pintinhos – uma voz grossa e metálica vinha repetidamente de um velho alto-falante sobre uma Kombi toda enferrujada.
– Pintinho, pintinho... – A Nunu gritou, desesperadamente, apontando para fora, na direção donde vinha o anúncio.
– A mamãe disse pra gente não trazer mais bicho pra dentro de casa – o rico alertou-a, com a voz séria. Em seguida pensou: “Eu sou o irmão mais velho”.
– Eu quero, eu quero... – Nunu continuava gritando enquanto puxava a camisa do irmão.
– Tá bom, Nunu! Mas a mamãe vai brigar com a gente.
– Não vai não, Rico... Não vai não...
Rico foi até a cozinha, pegou uma garrafa vazia e saiu correndo, com dificuldade, para a rua.
– Por que ele tinha dificuldade pra correr, papai?
– Ah minha linda, eu não lhe contei ainda... O Rico tinha dificuldade pra correr porque nascera com um dos pezinhos torto e tinha que usar uma enorme bota ortopédica para fazer o tratamento e corrigir o pezinho. E essa bota o atrapalhava na hora de correr.
– Por que quê ele nasceu com o pé torto?
– Nunu, algumas criancinhas nascem ás vezes com algum problema. Tem criancinha que nasce sem visão, algumas sem audição, outras nunca poderão andar... E o Rico nasceu com o Pezinho torto...
– Tadinho dele, papai...
– Tadinho nada... Você não usa óculos?
– É papai... Uso!
– Então? E o Rico usava bota ortopédica, mas nem por isso era um coitadinho, pelo contrário, ele era uma criança muito feliz e cheia de vida, só não podia correr direito. Mas vamos continuar a estória...
– Mesmo com dificuldade, Rico correu pelo quintal até alcançar a velha perua enferrujada, entrou no meio da bagunça formada pela criançada e em poucos minutos voltou com o filho de uma galinha – pintado de vermelho – em suas mãos. O Rico adorava a sua irmã e não conseguia dizer não a ela, e isso o fazia entrar em muitas encrencas.
– O que é isso, menino? – A avó deles questionou o garoto, ao ver aquele pequeno animal em sua mão.
– Aaaaaaaa, Zinha... É só um pintinho que eu troquei por uma garrafa.
– Mas riquinho, meu filho... A sua mãe já não disse que não quer mais animais dentro de casa? Já não basta o peixinho, a rã, o preá, e até a aranha que tem aqui dentro.
– Mas Zinha, é só um pintinho!
– O que é preá, papai?
– Preá é como se fosse um coelhinho, só que é menorzinho. Ele é parecido com um ratinho.
– Só quero ver a hora que a sua mãe ver essa coisinha vermelha metida a frango – a avó continuou com o sermão.
– Me dá o fango, Rico... Me dá o fango – gritava a Nunu, ansiosa para pegar o pintinho.
A Zinha começou a rir com a animação da neta... E era sempre assim, ela dava broncas e mais broncas, mas no fundo no fundo ela adorava aqueles maravilhosos pestinhas. Por fim, deixou os dois brincando com o novo amiguinho e voltou aos seus afazeres.
– Cuidado Nunu, senão você machuca o fango! – falou o Rico, entregando cuidadosamente o pintinho para a irmã.
– Fanguinho bonitinho – Nunu falava e alisava a cabeça do bichinho...
– A Joana pode pegar o fango um pouquinho? – Nunu perguntou ao irmão.
– Ué, quem é a Joana, papai?
– Joana é a amiga imaginária da Nunu, minha filha.
– Igual a minha, pai?
– É, minha princesa, igual a sua... E quando a Nunu entregou o “fango” para a Joana, adivinha o quê que aconteceu?
– O quê? O quê, papai?
– O pintinho saiu correndo, Nunu, pois amiguinho imaginário só existe na nossa imaginação, e não pode segurar um pintinho de verdade.
– E pra onde foi o pintinho, papai?
– O fango correu rapidinho para baixo de um sofá marrom que a família Souza possuía. E foi a maior bagunça para pegar o bichinho.
– Pega o fango, pega o fango! – gritava a Nunu, fazendo a maior algazarra.
– Nunu, você fica naquela ponta eu vou pra outra, e a Joana fica no meio – o Rico falava e gesticulava, apontando para um lado e para outro, e em seguida foi para o local determinado para ele. O Rico nunca teve amigos imaginários, então ele emprestava os de sua irmãzinha.
– Mas pai, dá pra pegar amigo imaginário emprestado?
– Sei lá, filha... Na estória do Rico e da Nunu dá.
– O fango era muito esperto e saiu correndo pelo meio, onde estava a amiguinha imaginária Joana.
– Eu sei, eu sei... Amigo imaginário não existe, né pai?
– Não sei, querida, acho que sim...
– Quando ouviu a bagunça, a Zinha voltou...
– Crianças, o quê está acontecendo?
– Corre vovó, pega o fango! – a Nunu gritou...
– Mas o esperto pintinho correu até a porta da cozinha – que estava entreaberta – e foi direto para a varanda, passou por debaixo da rede, desceu os três degraus e alcançou rapidamente o imenso quintal. As crianças e a Zinha foram atrás, mas o bichinho era espertinho mesmo e continuou correndo, só que quando se aproximou da piscina dos patinhos ele se assustou, pois o Leco o Reco e o Teco correram atrás dele, fazendo quac, quac, quac, querendo bicá-lo.
– Coitadinho do pintinho, papai...
– É querida, mas o pintinho não era bobo, e passou por entre as pernas de um dos patos e correu para longe.
A bagunça foi geral no quintal, e enquanto o dentinho – que estava preso a uma corrente na casinha – latia desesperadamente, as crianças e sua avó tentavam resgatar o pequeno ovíparo.
– O que é ovíparo, papai?
– É o bichinho que nasce do ovo, filhinha.
– Sem pensar, o pintinho correu em direção ao cachorro!
– Coitado papai! O dentinho machucou ele?
– Não sei, Nunu... Posso continuar a estória?
– Pode.
– Os patos continuavam no encalço do pintinho, e o pintinho continuava correndo na direção do vira-latas, e quando chegaram perto do Dentinho, os patos foram surpreendidos com o rosnar do cão, que partiu para cima deles e tentou mordê-los, protegendo assim o pintinho. Os patos pularam para trás e afastaram-se do cão feroz...
– E o pintinho, papai?
– O pintinho passou pelo cachorro preocupado com os patos e entrou na casinha do cão.
– Mas o Dentinho não comeu o pintinho, papai?
– De repente, Nunu, o Dentinho percebeu que o pintinho estava dentro de sua casa, então virou e começou a latir e rosnar na direção do franguinho.
– Rico, ajuda o fango! A Nunu gritava para seu irmão, desesperada com a situação do pobre pintinho.
– Não senhor, Rico! Se você for lá ele vai te morder – a Zinha alertou o neto e segurou-o pelo braço.
– A barulheira foi geral dentro da casinha do Dentinho, filha. Era latido pra cá, latido pra lá...
– E o Dentinho comeu o pintinho, papai?
– Foi exatamente isso que a Nunu da nossa estória perguntou para sua vovó, minha querida.
– E ele comeu o pintinho, papai? O Dentinho comeu?
– Você só vai saber ouvindo o resto da estória.
– A Zinha ficou em silêncio após segurar o neto, e os netos também aguardavam o fim da algazarra dos patos e dos latidos de Dentinho. Todos ansiosos e olhando para dentro da casinha, até que o silêncio reinou por alguns minutos e fez o nervosismo aumentar. A avó já pensava em alguma coisa para falar e acalmar o coração dos netos, enquanto nos olhos dos netos as lágrimas já se formavam. Até que o vira-latas pôs a cabeça para fora da casinha e deixou a avó e os netos com mais expectativa ainda.
– E o quê que é expectativa, papai?
– Expectativa é ter esperança de algo acontecer, minha princesa.
– E o pintinho, papai? O que aconteceu com ele?
– Aaaaaaa, filha... A Nunu já estava chorando, pois achava que o Dentinho tinha comido o seu mais novo amiguinho. Mas para a surpresa de todos e alegria de Rico e Nunu, o Dentinho saiu da casinha, e em cima de suas costas estava o fango, são e salvo, imperando sobre os pêlos do seu novo e fiel amigo, o vira-latas.
– Ah, ah, ah, ah, ah, ah… Que legal, papai...
– É filha, é legal mesmo... E o mais legal é que o fango e o Dentinho ficaram amigos para sempre, nunca mais se largaram, e por incrível que pareça, um protegia o outro. E ainda hoje, se alguém for à casa dos Souza – lá no mundo da imaginação e na cidade da alegria – vão encontrar um quintal cheio de árvores, três patos barulhentos e um fango sempre alerta, em cima das costas do seu amigo Dentinho.
– Acabou a estória, papai?
– Essa aventura acabou minha querida. Mas o Rico e a Nunu já aprontaram bastante, e ainda têm muitas estórias que um dia irei lhe contar.
– Então conta, papai! Conta!
– Outro dia, minha princesa, outro dia... Agora nós precisamos dormir e descansar, senão amanhã nós dormiremos é no cinema.
– Ooooooooobaaaaaaaa!! Nós vamos no cinema, papai?
– Vamos, Nunu... Vamos...
– Eeeeeeeeeeeeeeeee!
– Eu te amo, filhinha. Eu te amo... Durma com os anjos...
– Também te amo, papai...
Fim.