As estórias do papai
                          De: Magawi Siqueira


     Era a primeira vez que a minha filha Manoela vinha dormir em minha casa depois que eu e sua mãe nos separamos. Estávamos exaustos – aliás, eu estava – e fomos para a cama tarde da noite, depois de um dia extremamente feliz ao lado de minha filhinha. O quarto da minha pequena ficava em frente ao meu, e ela pediu-me para que deixássemos as portas abertas.
     A chuva caía pelo telhado, fazendo um barulho gostoso e aconchegante, mas os raios e trovões deixavam a madrugada um pouco sombria, sinistra, e também barulhenta.
     A Nunu – é assim chamo minha filha – acordou três horas da manhã e veio correndo à minha cama.
     – Pai... Papai... Acoooorda!
     – Hum, ããã... O que foi Nunu?
     – Eu não consigo dormir, papai... Tô com medo...
     – Medo de quê, Nunu?
     – Não sei papai...
     – Não sei não existe, filha... Do que você está com medo?
     – Tô com medo dos trovões, papai...
     – Eu também tô, meu amor... Vem, deita aqui do meu lado.
     – Papai, posso ligar pra mamãe? 
     – Não, meu amor, não pode ligar não... Essa hora a sua mãe deve estar dormindo... Nós não vamos acordá-la, não é? Mas não se preocupe que amanhã você liga pra ela. Tudo bem?
     – Tá bom, amanhã eu ligo... Papai, conta uma estória pra mim...
     – Nunu, o papai tá com sono... Vamos dormir que depois o papai conta...
     – Taaa booommm!

     Depois de quinze minutos e muitas viradas na cama...

     – Ok Nunu, você venceu! Eu vou contar uma estória pra você.
     – Ooooobaaaa!
     – Então vejamos...
     – Começa logo papai!
     – Caaaalma, Nunu... Eu vou começar...

     – Esta é a estória de dois irmãos... – comecei a estória.
     – Mas pai, não vai ter era uma vez?
     – Tá boooooom Nunu, tá bom... Eu ponho “era uma vez”... Vamos lá:
     – Era uma vez – em algum lugar distante, no mundo da imaginação, na cidade da alegria – uma casa com um grande quintal cheio de árvores.
     – Era uma casa mal assombrada, papai?
     – Não, Nunu, era a casa do Rico e da Lulu.
     – Lu-lu, papai? Aaaaaaa... Por que ela não chama Nunu como eu?
     – Então tá, Nunu! Mas como eu ia dizendo antes que alguém me interrompesse:
     – Havia uma casa com muitas árvores no quintal!
     – Que cor era a casa, papai?
     – Nunuuuuu...
     – Tá bom, papai! Eu vou ficar quieta...
     – E no quintal da casa tinha pé de abacate, de manga, pé de jabuticaba, de limão rosa e até um pé de uva japonesa... Ah, também tinha uma piscina para patinhos.
     – Piscina para patinhos, papai?
     – Claro, Nunu, uma piscina para patinhos! Não era muito grande, mas o Leco o Teco e o Reco – três patos que ficavam correndo atrás das crianças que vinham brincar no quintal – viviam tranquilamente. Só que eles só corriam atrás das criancinhas, mas não machucavam ninguém, gostavam apenas da bagunça.
     – Que legal pai...
     – Na casa também morava o Dentinho, Nunu. Um cachorro vira-latas marrom que vivia com a língua para fora da boca e uma das orelhas caídas, e a casinha onde ele morava ficava ao lado da piscina, perto dos patinhos e embaixo do pé de uva japonesa, que era a maior árvore do quintal.
     – E a casa, papai?
     – A casa ficava no fundo do quintal, filha.
     – E de que cor era papai?
     – Que cor você acha, minha querida?
     – Eu acho que era rosa...
     – Rosa?
     – É papai... E as janelas verdes e as portas azuis...
     – Ué! Como é que você sabe que a casa tinha janelas e portas, Nunu?
     – Aaaaaaa, bobinho... Toda casa tem janelas e portas... Né?
     – É, minha princesa, você tem razão! Toda casa tem portas e janelas, você tem razão... Mas vamos continuar a nossa estória:
     – A casa era rosa, com janelas verdes, portas azuis e telhado todo vermelho. Na frente havia uma varanda com uma rede e duas cadeiras de balanço, onde em noites estreladas de luar bonito a família Souza se reunia para cantar modas e contar estórias.
     – Por que Souza?
     – Porque esse é o nosso sobrenome, Nunu.
     – E o que é sobrenome, papai?
     – Sobrenome é o nome que vem dos nossos pais e dos pais dos nossos pais. É ele que diferencia uma pessoa que tem o nome igual da outra.
     – Como assim, papai?
     – No mundo tem um monte de Manoelas, assim como você, mas o seu sobrenome é que diferencia você das outras. O seu sobrenome é que diz que você é filha de mim e da sua mãe. Entendeu?
     – Mais ou menos, papai...
     – Então outra hora eu lhe explico melhor esse negócio de sobrenome, mas agora vamos continuar a estória da casa. E como eu ia dizendo...
     – Nessas lindas noites em que a família Souza se reunia, o seu Raimundo – pai das crianças – pegava o velho violão e dedilhava belas modas para encantar o pessoal, enquanto a dona Climeria – que era a mãe – fazia tapioca, bolo de fubá e doce de abóbora... Ah, ela também fazia um suco de maracujá que era uma delícia. 
     – Papai, tô com fome.
     – Mas Nunu, você não pode nem ouvir falar em comida hein!
     – Ah, ah, ah, ah... – Risos de pai e filha.
     – Ah! Eu havia me esquecido...
     – O quê, papai? O quê?
     – Tinha me esquecido que na casa morava também a dona Joana – mãe da dona Climeria –, uma velhinha de cabelos bem branquinhos que ninguém chamava pelo nome, e sim, por Zinha.
     – E ela era legal?
     – Claro que era Nunu! Ela era adorável! Cheia de vida, de alegria e amor, ela era a melhor avó do mundo. Pelo menos para a Nunu e o Rico... 
     – Certo dia, eles estavam brincando na sala enquanto, a Zinha acabava de fazer o almoço.
     – E a mãe deles?
     – A mãe deles estava trabalhando, filha. 
     – Trabalhando aonde?
     – Na escola, minha querida... A mãe do Rico e da Nunu era professora.
     – Deve ser legal ter uma mãe professora, né pai?
     – Deve ser minha princesa. Deve ser... Mas vamos continuar...
     – Enquanto eles brincavam um barulho vindo lá de fora chamou a atenção.
     – O quê que foi papai? O quê que foi?
     – Se você deixar eu conto...
     – Tá bom... Tá bom...
     – Trocam-se garrafas e panelas velhas por pintinhos – uma voz grossa e metálica vinha repetidamente de um velho alto-falante sobre uma Kombi toda enferrujada.
     – Pintinho, pintinho... – A Nunu gritou, desesperadamente, apontando para fora, na direção donde vinha o anúncio.
     – A mamãe disse pra gente não trazer mais bicho pra dentro de casa – o rico alertou-a, com a voz séria. Em seguida pensou: “Eu sou o irmão mais velho”.
     – Eu quero, eu quero... – Nunu continuava gritando enquanto puxava a camisa do irmão.
     – Tá bom, Nunu! Mas a mamãe vai brigar com a gente.
     – Não vai não, Rico... Não vai não...

Rico foi até a cozinha, pegou uma garrafa vazia e saiu correndo, com dificuldade, para a rua.
     – Por que ele tinha dificuldade pra correr, papai?
     – Ah minha linda, eu não lhe contei ainda... O Rico tinha dificuldade pra correr porque nascera com um dos pezinhos torto e tinha que usar uma enorme bota ortopédica para fazer o tratamento e corrigir o pezinho. E essa bota o atrapalhava na hora de correr.
     – Por que quê ele nasceu com o pé torto?
     – Nunu, algumas criancinhas nascem ás vezes com algum problema. Tem criancinha que nasce sem visão, algumas sem audição, outras nunca poderão andar... E o Rico nasceu com o Pezinho torto...
     – Tadinho dele, papai...
     – Tadinho nada... Você não usa óculos?
     – É papai... Uso!
     – Então? E o Rico usava bota ortopédica, mas nem por isso era um coitadinho, pelo contrário, ele era uma criança muito feliz e cheia de vida, só não podia correr direito. Mas vamos continuar a estória...
     – Mesmo com dificuldade, Rico correu pelo quintal até alcançar a velha perua enferrujada, entrou no meio da bagunça formada pela criançada e em poucos minutos voltou com o filho de uma galinha – pintado de vermelho – em suas mãos. O Rico adorava a sua irmã e não conseguia dizer não a ela, e isso o fazia entrar em muitas encrencas.
     – O que é isso, menino? – A avó deles questionou o garoto, ao ver aquele pequeno animal em sua mão.
     – Aaaaaaaa, Zinha... É só um pintinho que eu troquei por uma garrafa.
     – Mas riquinho, meu filho... A sua mãe já não disse que não quer mais animais dentro de casa? Já não basta o peixinho, a rã, o preá, e até a aranha que tem aqui dentro. 
     – Mas Zinha, é só um pintinho!
     – O que é preá, papai?
     – Preá é como se fosse um coelhinho, só que é menorzinho. Ele é parecido com um ratinho.

     – Só quero ver a hora que a sua mãe ver essa coisinha vermelha metida a frango – a avó continuou com o sermão.
     – Me dá o fango, Rico... Me dá o fango – gritava a Nunu, ansiosa para pegar o pintinho.
A Zinha começou a rir com a animação da neta... E era sempre assim, ela dava broncas e mais broncas, mas no fundo no fundo ela adorava aqueles maravilhosos pestinhas. Por fim, deixou os dois brincando com o novo amiguinho e voltou aos seus afazeres.
     – Cuidado Nunu, senão você machuca o fango! – falou o Rico, entregando cuidadosamente o pintinho para a irmã.      
     – Fanguinho bonitinho – Nunu falava e alisava a cabeça do bichinho...
     – A Joana pode pegar o fango um pouquinho? – Nunu perguntou ao irmão.
     – Ué, quem é a Joana, papai?
     – Joana é a amiga imaginária da Nunu, minha filha.
     – Igual a minha, pai?
     – É, minha princesa, igual a sua... E quando a Nunu entregou o “fango” para a Joana, adivinha o quê que aconteceu?
     – O quê? O quê, papai?
     – O pintinho saiu correndo, Nunu, pois amiguinho imaginário só existe na nossa imaginação, e não pode segurar um pintinho de verdade.
     – E pra onde foi o pintinho, papai?
     – O fango correu rapidinho para baixo de um sofá marrom que a família Souza possuía. E foi a maior bagunça para pegar o bichinho.
     – Pega o fango, pega o fango! – gritava a Nunu, fazendo a maior algazarra.
     – Nunu, você fica naquela ponta eu vou pra outra, e a Joana fica no meio – o Rico falava e gesticulava, apontando para um lado e para outro, e em seguida foi para o local determinado para ele. O Rico nunca teve amigos imaginários, então ele emprestava os de sua irmãzinha.
     – Mas pai, dá pra pegar amigo imaginário emprestado?
     – Sei lá, filha... Na estória do Rico e da Nunu dá.
     – O fango era muito esperto e saiu correndo pelo meio, onde estava a amiguinha imaginária Joana.
     – Eu sei, eu sei... Amigo imaginário não existe, né pai?
     – Não sei, querida, acho que sim...

     – Quando ouviu a bagunça, a Zinha voltou...
     – Crianças, o quê está acontecendo? 
     – Corre vovó, pega o fango! – a Nunu gritou...
     – Mas o esperto pintinho correu até a porta da cozinha – que estava entreaberta – e foi direto para a varanda, passou por debaixo da rede, desceu os três degraus e alcançou rapidamente o imenso quintal. As crianças e a Zinha foram atrás, mas o bichinho era espertinho mesmo e continuou correndo, só que quando se aproximou da piscina dos patinhos ele se assustou, pois o Leco o Reco e o Teco correram atrás dele, fazendo quac, quac, quac, querendo bicá-lo.
     – Coitadinho do pintinho, papai...
     – É querida, mas o pintinho não era bobo, e passou por entre as pernas de um dos patos e correu para longe.

     A bagunça foi geral no quintal, e enquanto o dentinho – que estava preso a uma corrente na casinha – latia desesperadamente, as crianças e sua avó tentavam resgatar o pequeno ovíparo.
     – O que é ovíparo, papai?
     – É o bichinho que nasce do ovo, filhinha.

     – Sem pensar, o pintinho correu em direção ao cachorro!
     – Coitado papai! O dentinho machucou ele?
     – Não sei, Nunu... Posso continuar a estória?
     – Pode.

     – Os patos continuavam no encalço do pintinho, e o pintinho continuava correndo na direção do vira-latas, e quando chegaram perto do Dentinho, os patos foram surpreendidos com o rosnar do cão, que partiu para cima deles e tentou mordê-los, protegendo assim o pintinho.      Os patos pularam para trás e afastaram-se do cão feroz...
     – E o pintinho, papai?
     – O pintinho passou pelo cachorro preocupado com os patos e entrou na casinha do cão.
     – Mas o Dentinho não comeu o pintinho, papai?
     – De repente, Nunu, o Dentinho percebeu que o pintinho estava dentro de sua casa, então virou e começou a latir e rosnar na direção do franguinho.
     – Rico, ajuda o fango! A Nunu gritava para seu irmão, desesperada com a situação do pobre pintinho.
     – Não senhor, Rico! Se você for lá ele vai te morder – a Zinha alertou o neto e segurou-o pelo braço.
     – A barulheira foi geral dentro da casinha do Dentinho, filha. Era latido pra cá, latido pra lá...
     – E o Dentinho comeu o pintinho, papai?
     – Foi exatamente isso que a Nunu da nossa estória perguntou para sua vovó, minha querida.
     – E ele comeu o pintinho, papai? O Dentinho comeu?
     – Você só vai saber ouvindo o resto da estória.

     – A Zinha ficou em silêncio após segurar o neto, e os netos também aguardavam o fim da algazarra dos patos e dos latidos de Dentinho. Todos ansiosos e olhando para dentro da casinha, até que o silêncio reinou por alguns minutos e fez o nervosismo aumentar. A avó já pensava em alguma coisa para falar e acalmar o coração dos netos, enquanto nos olhos dos netos as lágrimas já se formavam. Até que o vira-latas pôs a cabeça para fora da casinha e deixou a avó e os netos com mais expectativa ainda.
     – E o quê que é expectativa, papai? 
     – Expectativa é ter esperança de algo acontecer, minha princesa.
     – E o pintinho, papai? O que aconteceu com ele?
     – Aaaaaaa, filha... A Nunu já estava chorando, pois achava que o Dentinho tinha comido o seu mais novo amiguinho. Mas para a surpresa de todos e alegria de Rico e Nunu, o Dentinho saiu da casinha, e em cima de suas costas estava o fango, são e salvo, imperando sobre os pêlos do seu novo e fiel amigo, o vira-latas.
     – Ah, ah, ah, ah, ah, ah… Que legal, papai...
     – É filha, é legal mesmo... E o mais legal é que o fango e o Dentinho ficaram amigos para sempre, nunca mais se largaram, e por incrível que pareça, um protegia o outro. E ainda hoje, se alguém for à casa dos Souza – lá no mundo da imaginação e na cidade da alegria – vão encontrar um quintal cheio de árvores, três patos barulhentos e um fango sempre alerta, em cima das costas do seu amigo Dentinho.

     – Acabou a estória, papai?
     – Essa aventura acabou minha querida. Mas o Rico e a Nunu já aprontaram bastante, e ainda têm muitas estórias que um dia irei lhe contar.
     – Então conta, papai! Conta!
     – Outro dia, minha princesa, outro dia... Agora nós precisamos dormir e descansar, senão amanhã nós dormiremos é no cinema.
     – Ooooooooobaaaaaaaa!! Nós vamos no cinema, papai?
     – Vamos, Nunu... Vamos...
     – Eeeeeeeeeeeeeeeee!
     – Eu te amo, filhinha. Eu te amo... Durma com os anjos...
     – Também te amo, papai...

                                                       
Fim.
Paulo Siqueira Souza
Enviado por Paulo Siqueira Souza em 22/12/2009
Reeditado em 02/02/2010
Código do texto: T1990401
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