HÁ VIDAS NO MEU JARDIM
— Saudade! saudade!... — exclamei.
Minha filha, lutando contra o sono, perguntou:
— Mamãe, o que é saudade?
— Dorme, Juliana. Amanhã lhe direi o que é saudade.
— Ah, manhê, você prometeu contar uma estorinha. Por que você não conta a estorinha da dona saudade?
Explodi em risos. E, acariciando os cabelinhos de minha filha, contei-lhe a melhor parte da minha infância.
— Ju, antes vou lhe dizer o que é saudade. Saudade é um misto de nuvens azuis e brancas que surgem como num passe de mágica. Entra na mente e bate de leve no coração, dizendo: “Oi... Cheguei! Trouxe lembranças bonitas.”
— Mami, você já ganhou lembranças bonitas da saudade?
— Muitas, claro! Uma delas vou lhe contar.
Quando eu tinha cinco anos, isto é, a sua idade, meus pais tinham uma casa com seis janelas. Era um casarão que parecia a morada da Cinderela. E toda manhã eu acordava bem cedo e corria para a janela. Queria ver o sol nascer e contemplar os pássaros que davam saltinhos de uma árvore a outra. Alguns buscando alimentos e outros cantando.
Da janela do meu quarto podia ver os vizinhos que iam trabalhar, comprar pão ou passear.
— Mamãe, algum vizinho tinha cachorrinho?
— Sim, muitos deles tinham cachorrinhos.
— E você tinha cachorrinho?
— Não. Meu pai nunca permitiu que eu tivesse animais domésticos.
— Você só ficava na janela?
— Não. Eu saía para brincar de amarelinha com minhas amiguinhas. Mas era pela manhã e da janela que começava o meu dia.
Lembro-me de que Dona Cida, nossa vizinha, passando pela calçada, dizia-me: “Oi, Marta Rocha.”
Enervada, eu respondia:
— Não sou Marta Rocha, meu nome é Ana Lúcia.
Dona Cida ria. Eu nada compreendia.
Sr. Tertuliano era o jardineiro que mantinha o encanto dos jardins do nosso bairro. Morava ao lado da minha casa.
Todos os dias, pela manhã, Sr. Terto — assim era chamado - ao passar por minha janela, dizia com um vozeirão grosso:
— Bom dia, flor do dia, como vai sua tia? Ela toma banho todo dia? Na banheira ou na bacia? E eu me divertia bastante com o bom humor daquele velhinho. Seus cabelos eram finos e brancos como a neve solta.
— Eram mais branquinhos que os cabelos do Dr. Álvaro?
— Eram iguais.
— Então o Sr. Terto também fumava cachimbo igual ao Dr. Álvaro?
— Não, ao contrário. Igual ao Sr. Terto, Dr. Álvaro não mais fuma cachimbo.
Um dia, eu estava chorando muito. E para chorar leve, debrucei na janela sobre o meu travesseiro de penas.
— Mami, dá um tempo. Eram penas dos passarinhos que brincavam nas árvores?
— Não, sei lá que tipo de penas era! Penas de galinha, talvez. Só sei que eram macias.
— E quando você chorou, molhou as peninhas?
— Você, hein, Juliana! Está preocupada com as peninhas e não com o motivo que me levou a chorar?
— Você chorou por que o vovô te bateu?
— Não, imagine! Seu avô nunca levantou as mãos pra mim. Ele foi o pai mais amigo, dócil e carinhoso que esta filha pôde ter.
Voltando ao assunto, chorei muito porque dona Cida persistia em me chamar de Marta Rocha. E naquele momento, Sr. Tertuliano ia passando com muitas rosas nas mãos. Eis que, de repente, ofertou-me uma rosa branca dizendo:
— Moça bonita não chora.
Foi então que Sr. Terto me explicou que Marta Rocha era a miss Brasil. E que seus olhos eram tão verdes quanto os meus. Daí o porquê de dona Cida fazer a brincadeira, chamando-me de Marta Rocha. Fiquei feliz com a explicação do Sr. Terto e principalmente com o mimo.
Com alegria no coração, depositei a rosa branca em um vasinho solitário.
Sabe filha, sua avó certa de que as plantas tinham vida, ensinou-me a falar com elas.
Dizia vovó que as flores em suas curtas permanências emanavam paz, harmonia, energia e, até mesmo, a Luz Divina. Portanto, deveríamos apreciá-las e respeitá-las. Assim sendo todos os dias eu falava com a rosa.
— O que você dizia para a rosinha, mamãe?
Eu dizia:
— Olá, rosa bonita, você está bem? Sabe, Rosa, eu queria um jardim grande e cheio de flores para cantar às flores, daí eu não precisaria mais ficar na janela. O sol nasceria aqui no quintal, os passarinhos se mudariam pra cá, e até o beija- flor iria beijar suas pétalas perfumadas. E à noite, quando eu fosse para minha cama, as estrelas ficariam acordadas para nos iluminar.
— Mami, a vida da rosa durou bastantão?
— Não, a rosa viveu poucos dias. E quando morreu eu chorei muito. Sabia que iria sentir saudade.
Na minha ingenuidade, fiz o enterro dos restos mortais da rosa. E todos os dias a regava acreditando que, mesmo depois de morta, ela poderia sentir sede.
— E sua mãe comprou um jardim pra você?
— Jardim não se compra! Eu ganhei um jardim.
— E quem lhe deu o jardim? Foi o vovô?
— Não, não foi o vovô. Quem me deu o jardim foi a rosa branca e Sr. Terto, com a bênção da Rosa Rainha , que é sua avó Julieta.
— Mamãe, você não disse que a rosa branca morreu?
— Sim, ela havia morrido. Mas o meu amor fê-la ressuscitar. Então, quando minha mãe viu que o talinho da rosa brotou, logo chamou o Sr.Terto para ver.
O velhinho ficou tão comovido que montou um jardim nos fundos do nosso quintal.
— Ah, ha, ha, ha! Jardim no fundo do quintal?
— Pois é, nossa casa era tão grande mas rente à calçada, portanto, não havia espaço para o jardim. Em compensação, tínhamos um vasto quintal. Era, na verdade, um pequeno pomar que produzia laranjas, goiabas, jabuticabas, mangas, abacates, romãs, amoras e outros tipos de frutas.
O Senhor Terto fez um enorme canteiro das mais belas flores. E plantou bem no meio do jardim a minha roseira. Foi então que os pássaros da frente da minha casa fizeram amizade com os pássaros do pomar. Alguns até se casaram.
Todos os dias eu falava com as flores. Dava-lhes água. E eu percebia que vovó tinha razão: as plantas tinham vida. Havia entre mim e elas um elo muito forte. Pressentindo que uma planta ficaria doente, eu logo a benzia.
— Mamãe, quem te ensinou a benzer?
— Ninguém. Eu apenas tinha fé naquilo que fazia.
— Como você benzia?
— Impondo minha mão, igual a Jesus, quando estendia a mão para operar milagres. Daí eu dizia: “ Deus cura a minha plantinha! Ela está dodói e precisa ficar boazinha para cantar comigo.”
— Que música você cantava para as plantinhas?
— Não me lembro de toda a letra, mas sei que era mais ou menos assim:
“Passarinhos irão cantar com a primavera.
Lírios,dálias, alecrins. Violetas e jasmins.
O sol vai brilhar com a primavera.
Os pássaros, gorjeando, saltitam de cá pra lá
Tra, lá, lá, lá, lá,lá,... lá, lá lá.”
— Você sabe tudo, não é mamãe? Você só não sabe é cantar!
— Pois é, mesmo não sabendo cantar, temos que soltar a voz. Cantar é também uma forma de orar.
— E seu jardim do casarão morreu?
— Não, acho que não. Formei vários jardins depois daquele. E onde vejo um jardim, contemplo sua beleza. Ontem mesmo visitei o jardim do espaço. Meishu-Sama passeou comigo por um vasto jardim, repleto de flores. Havia flores que eu já conhecia e flores lindas jamais vistas por mim. Logo, minha vida é um jardim. O meu jardim está em todas as flores do céu e da terra. O meu jardim está aqui em casa, abraçando a chuva, respirando o vento e dando mais colorido ao sol. O meu jardim brilha nas estrelas e fala a linguagem do amor.
O meu jardim é a flor que encanta a vida. É a essência que protege você, seus irmãos, papai e eu. Portanto,
“HÁ VIDAS NO MEU JARDIM.” Há uma Luz Divina.
— Agora, vamos. Feche os olhinhos e durma.
— Mamãe, mas... e a saudade que não é dona, mas é uma nuvem que diz: “ Oi, trouxe-lhe lembranças!...” Você não contou a estória dela!
— Claro que contei! Saudade da minha infância, da rosa branca, do Sr. Terto, da dona Cida, do pé de jabuticaba, de pular amarelinha, do meu travesseiro de pena. Ou você acha que não tenho saudade? Hein? Juliana? Ju, Ju... Que linda! Dormiu. Deus te abençoe.