COMO É FÁCIL SORRIR

COMO É FÁCIL SORRIR

Num campo verdejante, sopé de uma grande montanha, onde havia muitos animais, que viviam sempre felizes e por isso com imensa alegria e um sorriso permanente nos lábios, porque não acreditavam em lobos maus, existiam duas meninas e um menino. Embora tanto as meninas como os meninos sejam perfeitamente iguais no contexto social, com os mesmos direitos e obrigações, manda a ética da boa conduta que deve dar-se o primeiro lugar às meninas em todos os eventos onde os dois géneros se cruzem; mas vamos à história, embora um poucochinho de maneirismos nos ajude a poder evitar momentos desconfortáveis em algumas situações que sempre existirão no decorrer da nossa vida em sociedade.

Aquelas três crianças eram muitíssimo amigas, além de serem dois irmãos e uma prima, e brincavam sempre juntos, principalmente aos domingos e quando havia festas. Andavam de triciclo, de “trotinete”, de carro, de escorrega, de chupeta, jogavam à bola, entretinham-se com bonecas, ao esconde-esconde, com a mangueira da água, enfim, faziam trinta por uma linha, como se costuma dizer. Além destes, havia um quarto personagem de quem ainda não falei, de propósito, porque vai ser o primeiro a entrar em cena: É o Afonso, que chega ofegante, sem camisa, da montanha, e sem mais delongas vai logo ter com o chefão:

- Sabes António, venho lá de cima (da montanha, claro!) e estou muito aborrecido…

- Porquê? – perguntou o chefe sem deixar explicar-se.

- Os esquilos, as lebres e os coelhos hoje não riem; estão muito chateados – respondeu o Afonso – porque ouviram uns tiros ao longe e estão com medo. Acho que é o avô Tonito que anda à caça.

- Não pode ser – retorquiu o António. – O avô Tonito já deixou a caça; e também nunca caçou por aqui. Para caçar ele ia sempre para Trás-os-Montes.

Entretanto apareceram as duas meninas, que os leitores desde logo souberam quem são. (Aqui, como não há fotografias identificam-se: São a Marta e a Carolina). Vinham de um passeio pelas margens do rio Este. Tinham ido à Bracalândia e depois de se recrearem nos carrosséis e na montanha russa e de visitarem o recinto, onde desfrutaram do comboio fantasma, do castelo da bruxa e apreciarem o dragão, como era cedo foram deleitar-se com a sombra das árvores no parque de desportos, logo em frente, e descido o rio para molharem os pés nas suas límpidas, embora tumultuosas águas, e dispostas a prepararem umas cadeiras deixadas para a segunda época, com vista a melhoria de notas, para ingresso na faculdade de Direito Europeu.

- Onde passastes a tarde? – Quis saber o António. – Estive à vossa espera para brincar, mas agora temos coisas sérias a tratar. “Sou mesmo um poeta. Isto vai longe…”, pensou para consigo. “A rima não vem nada a propósito, mas por agora fica”.

- O que aconteceu? – perguntaram em simultâneo a Marta e a Carolina.

A resposta foi dada pelo “Fom-Fom”, o Afonso, nos mesmos termos que havia demonstrado a sua repulsa ao grande chefe António.

- Mas isso não pode ser – ripostaram as duas. – Vamos já reunir e tomar as decisões que o gravíssimo caso requer. Vou telefonar para o “cristório” (leia-se escritório) da mamã e pedir-lhe a sua opinião – salientou a Carolina.

- Não vale a pena – disseram os restantes a uma só voz. – Eu sou de opinião – acrescentou o António – que devíamos ir à casa do avô Lima, a fim dele documentar com fotografias a nossa reunião e se possível gravá-la e de lá falamos com a mamã.

- Também acho que é melhor – interveio a Marta – porque a “ma-inha” ia para o tribunal.

- Pois é – esclareceu a Carolina. – Ela ia no carro com o papá. Eu até vi que levava junto ao vidro de trás a “mánica” das fotografias. O papá, a caminho do banco, deixava-a lá porque ela tem o carro a fazer a revisão. Eu ouvi uma conversa qualquer à hora do almoço em que ela disse que precisava da “mánica” para fotografar um copo de leite ou coisa parecida.

- Não é copo de leite – intrometeu-se o António – é corpo delito. Isso também está no código da bicharada e significa o facto material de um crime. Mas vocês falaram em “fias” e esse é mesmo o meu fraco..

- Não entendo porque o avô Lima está a colocar na nossa boca palavras tão arrevesadas para a nossa idade e pelo meio mete outras como “cristório”, “mánicas” e “fias” – ironizou a Carolina.

(É para vos lembrardes mais tarde dos vocábulos que mais graça vos dava na idade própria de os empregar – esclarece o narrador. E conclui: Pois é ou “pu-jé” como diria o vosso pai, tio e “pa-inho” na vossa idade. Estais metidos numa história, onde simultaneamente tendes dois, quatro, vinte ou oitenta anos…)

- Então pés ao caminho até à Quinta da Capela – ordenou a Marta Regina.

Assim, nos mais variados meios de transporte, o António de triciclo e de chupeta na boca (pochinha como dizia o pai dele) que a não largava, e com o biberão devidamente acondicionado, a Marta de trotineta e com a chupeta escondida no bolso… para não haver problemas quando se for deitar, a Carolina numa belíssima moto de fibra, accionada a bateria, com o indispensável biberão de água a seu lado e o Afonso num invejável bólide a pedais, sempre de dedo na boca, lá chegaram à casa do avô Lima, que logo os introduziu no “cristório”, desculpem, escritório, a fim dos nossos venturosos aventureiros resolverem em plenário o intrincado dilema dos bichinhos que deixaram de sorrir.

De computador na mão e apressado, tomou a presidência o justo e implacável, mas sorridente António Hugo, que se fez ladear das vogais Marta Regina e Maria Carolina, ficando à sua frente, a secretariar, o astuto Afonso “Fom-Fom”.

Antes de iniciar os trabalhos e depois de puxar por um genuíno havano, mas só para fazer ares de importante, porque sabe que não se deve fumar pelos graves problemas que traz à saúde, tanto que o meteu na boca sem lhe retirar o resguardo de celofane, o António fez pose para os jornais.

Enquanto a Carolina encolhia os ombros, a Marta ouvia com interesse o que a plateia ruidosa, à espreita por uma vedação, ladrava, porque a cadela Pitucha, a querer entrar no ambiente da reunião, resmungava com um focinho de poucos amigos, “que não havia direito dos homens matarem os animais indefesos só pelo prazer do desporto”. E como podemos entrar no pensamento dos outros membros do júri, sabemos que eles estavam cientes, e por isso o seu à vontade, de que o douto presidente António Hugo logo que despachasse os jornalistas encaminharia o assunto com toda a dignidade para uma solução apaziguadora e sobretudo favorável aos bichinhos da montanha, para contentamento dos defensores dos animais e segurança dos próprios ditos cujos.

Não foi de ânimo leve que o “leader” se desenvencilhou dos homens das notícias e só depois de anuir em fazer alguns comentários para a “Rádio Felina” é que conseguiu debruçar-se em pleno sobre o aborrecido problema, camuflando o seu nervosismo sob a protecção benéfica de uns azulados óculos de sol, que manteria até ao final da sessão.

Assim, após consultar o “Código da Bicharada” e analisar profundamente o seu “Capítulo dos Leporídeos”, com os poderes dos acordos estabelecidos entre homens e animais, dirigiu-se aos outros membros da mesa, agora atentos apenas às palavras do chefe, pois a reunião continuava à porta fechada, nos seguintes termos:

“Minhas amigas e meu amigo: O “Código” não permite, ou melhor, condena, duma maneira geral, que se matem os animais. Eles têm os seus direitos muito específicos no que concerne à protecção que lhes é devida por parte dos homens, todavia no grupo dos leporídeos, isto é, no das lebres e coelhos em determinadas circunstâncias e em certa época do ano havia efectivamente permissão para os caçar. Já vem de tempos remotos em que as pessoas eram obrigadas a persegui-los para poderem alimentar-se, mas como o narrador nos permitiu actuarmos nos mais diversos estágios temporais, fácil é transpormo-nos para a segunda metade do século XXI e assumirmos que vai longe o tempo dessas barbaridades. Ademais os esquilos nunca serviram para alimentação e não são obrigados a ouvir tiros que ferem demasiado os seus sensíveis tímpanos de bichinho pequeno.

Simultaneamente pegou na calculadora, “porque isto não podia ficar só no palavreado”, e em duas ou três operações aritméticas concluiu que a coima prevista pela infracção aos direitos dos animais era de elevado valor, havendo, por isso, necessidade de informar os Serviços da Venatória, o que aconteceu logo a seguir, mediante um telefonema através do seu inseparável telemóvel.

Satisfeito por ter resolvido mais um caso deu por encerrados os trabalhos entre aplausos e muitos vivas dos outros elementos do grupo, que aproveitaram a oportunidade para lhe oferecerem um bonito ramo de flores, corolário dos óptimos serviços prestados ao reino da bicharada.

Entretanto o Afonso seguiu no seu descapotável, movido a energia solar, para a montanha, a fim de acalmar os seus amiguinhos, que o receberam em verdadeiro ambiente de festa. O António, depois de uma rica sesta e de ter mudado de roupa, dirigiu-se para o quintal, a fim de se recrear com uma das suas brincadeiras privilegiadas: A mangueira da “aba”.

Por que puderam voltar a sorrir, ainda hoje os descendentes daqueles animais saltam e riem de alegria quando vêem os netinhos dos heróis desta história, que por lá continuam a passear como sempre fizeram os seus antepassados.

(O original tem fotos).

J D Lima Oliveira
Enviado por J D Lima Oliveira em 18/04/2009
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