Mãe que pega no pé
Todo mãe tem mãe, porque ninguém nasce do nada, mas ninguém tem uma mãe igual a minha. Minha mãe já acorda dando ordem:
- Vá escovar o dente, menino!
- Já forrou a cama?
Eu fico chateado logo, logo. Mas ela não dá trela.
- Sente pra tomar seu café.
E não é café que eu tomo, porque ela não me deixa tomar um "escurinho".Meu "café" é: fruta, leite, cereais, um prato de papa, pão,queijo.Tenho que provar de tudo um pouquinho.E ainda ela diz:
- Não é pra estragar, viu? Na minha época não tinha nada disso.
Eu não entendo esse negócio de época, mas devia ser ruim pra caramba, porque hoje a gente tem muita coisa pra comer, e ainda há os ricos que podem comprar muito mais. Quando minha mãe me leva às compras, observo três tipos de pessoas:
1. As que podem comprar de tudo. O carro fica lotado até a boca. E quando chegam ao caixa do supermercado, não ficam contando dinheiro, não. Elas entregam um pedaço de papel, que minha mãe disse que é um cartão de crédito, que tem o valor de dinheiro; e de cabeça erguida, saem despreocupadas. Nos carros têm de tudo: queijo inteiro, frutas, verduras, carnes, arroz, feijão, açúcar, e muitas outras coisas que eu não sei o nome porque nunca provei.
2. Aquelas que compram feito a minha mãe. Usam uma lista, observam bem os preços, o carro não fica cheio até a boca, e só compram o que realmente necessitam. Mas nos carros a gente pode encontrar as seguintes mercadorias: café, feijão, açúcar, farinha, fubá, vinagre, papel higiênico, sabão em pó, água sanitária, shampoo( um vidro tem que durar o mês inteiro), sabonete do baratinho.O queijo só meio quilo. A carne só se for de segunda (minha mãe compra uma carne dura (bate com um martelo, pra ela ficar bem molinha e aí prepara o bife), leite, cereais, chocolate em pó, ovos, iorgut (só o de saquinho), biscoito, bolacha, macarrão (nunca o talharim, esse só nos dias de festa), suco em pó, refrigerante do mais barato, bombril, sabão em barra, sal, trigo, óleo, arroz, margarina, amaciante de roupa, esponja para prato, vassoura (só duas vezes ao ano), desinfetante, doce de goiabada (só uma lata para não fazer vergonha quando chegar visita), maizena, aveia (pras malditas papas.), pasta de dente, perfume (um frasco pra toda família), cotonetes, barbeador, pilha pra colocar nos relógios de parede, e só. As frutas e verduras são compradas na feira, onde tudo é mais barato.
3. As que entram com o dinheiro enrolado na mão ou numa bolsinha. Até no andar são diferentes. Nem todas às vezes pegam um carro. Pegam mesmo é uma cestinha, e vão colocando muitos pacotes de fubá; As outras mercadorias, como: a bolacha, a margarina, o açúcar, o arroz, o sabão em pó (é em saco, porque o de caixa custa mais caro), charque (um pacotinho), compram muita mortadela, salsicha e ovos. Quando passam aqueles carros bem cheios de mercadorias eles olham disfarçados como que com desejo de ser o dono daquelas compras. Na hora de pagar, já se aproximam do caixa com medo, e a gente percebe que eles olham temendo que o dinheiro não dê para pagar. Muitas vezes já vi pedirem para retirar umas coisas porque o valor total ultrapassara o que a pessoa tinha em mãos.
Nessas horas, vi minha mão tirar a vista, olhar para o outro lado, e me cutucando para que eu fizesse o mesmo. Depois eu perguntei e ela me disse:
- Filho, quando você vê uma pessoa passando por essa situação não ria, nem fique olhando, porque é um pai ou uma mãe de família tentando fazer das tripas coração para alimentar toda a família. E na certa o dinheiro tem que ser muito bem regado.
- Regado, mamãe? Eles vão molhar o dinheiro como se molha as plantas?
- Não, meu filho. Regar nesse caso é ter todo cuidado para não gastar sem controle; O dinheiro dessa gente tem que durar o mês todo, se não irá passar fome.
- Essas pessoas são aquelas que nos dias de feira, apanham frutas e verduras que estão jogadas ao chão?
- Sim, meu menino. Você é um garoto observador. É por isso que mamãe reclama quando você joga comida fora, ou então rejeita o que coloco pra você comer. Há muita gente que gostaria de ter o que nós temos, mas essas pessoas não têm por causa da pobreza. Outras compram as mercadorias naquelas bacias que os feirantes colocam para vender por um preço mais em conta. São mercadorias manchadas, murchas, machucadas, e que os que podem pagar não compram. Então para não jogarem no lixo, colocam à venda e são justamente essas pessoas que compram.
- Agora entendi o porquê deles andarem de cabeça baixa, parecem sentir vergonha. Ô mãe, porque o Governo não dá salário pra esse povo pobre?
- Filho, o Governo dá o salário mínimo, porém as coisas aumentam do dia para noite, e aí o salário não cobre o que é necessário para uma família viver com dignidade.
- É por isso que eles pedem esmola?
- Não meu filho. A maioria das pessoas que pedem esmola, o fazem por não desejarem trabalhar. Usam a desculpa de uma deficiência, da velhice, de uma doença, mas o Governo tem dado assistência para os idosos, os deficientes e também para os que sofrem de uma doença que os impossibilitem de trabalhar. Mas existem pessoas que se aproveitam dos velhos, dos deficientes, dos doentes para abusar da boa vontade dos que gostam de ajudar.Depois que juntam o que arrecadaram, vendem e vão gastar tudo que conseguiram, porque essas pessoas não querem trabalhar,querem sim viver de brisa.
Minha mãe é sabida, e sempre que pode vai me mostrando como é a vida. Essa história de pedidor de esmola, eu já vi um caso parecido. E disse pra minha mãe:
- Eu estava no terraço, brincando com meus carrinhos quando vi uma mulher com um saco, desses de feijão, cheio de mercadoria. Uma velha estava junto com outras sacolas, e havia uma menina mais ou menos do meu tamanho. Ela me viu, e foi logo pedindo uma esmolinha. Quando a mulher que tinha o saco na cabeça percebeu que as pessoas que passavam resmungavam alguma coisa, disfarçaram, e uma foi na frente, depois a menina, e por último a velha.
Minha mãe me explicou que elas perceberam que as pessoas não lhes dariam nada se percebesse que estavam juntas, e também por causa do saco cheio, então resolveram se separar.
Aí entendi tudo. Elas são é preguiçosas! Se fosse eu, teria vergonha e nunca sairia por ai pedindo nada. A gente precisa estudar pra ter um bom emprego, mas se não conseguir pode-se trabalhar em qualquer tipo de serviço. Porque meu pai me disse uma coisa, e gravei aqui na minha massinha: ¨Filho, trabalho não mata ninguém. E nenhum trabalho honesto deve envergonhar um homem.¨
Meu pai tem razão. Ele mesmo disse que já foi ajudante de pedreiro, eletricista, gari, mecânico, balconista... Mas sempre se esforçou para não deixar de estudar; hoje ele é um técnico em eletrônica porque se batalhou pra hoje ter seu ponto de negócio e uma clientela fixa. E ainda tem um sonho: quer entrar numa faculdade. Diz que quem sabe quando eu estiver prestando vestibular, estaremos os dois ao mesmo tempo fazendo as provas. Não duvido. Meu pai é um gigante. Muita gente diz que tem como herói o Homem-aranha, o Super-homem... Herói é meu pai, porque só gosto é de herói de carne e osso. Meu pai é herói porque foi a cada dia vencendo as dificuldades sem perder os sonhos que ele sonhou para si mesmo e para toda família.
Minha mãe hoje está com pressa. Depois que eu fiquei pronto para ir ao colégio, ela me avisou que quando terminasse a aula, eu fosse para a casa de vovó Nona, porque hoje ela vai pro curso de costura. Não sei onde vai arranjar tempo para estudar, mas ela diz que precisa ajudar meu pai nas despesas.
Hoje o dia vai ser diferente porque na casa de vovó a gente pode brincar a vontade, sujar a roupa, comer muitos doces, e fazer muita traquinagem. Ela não diz nada pra mamãe. Ela é amigona mesmo. Acha graça de tudo que a gente faz. Já com minha mãe não dá pra fazer nada, ela reclama de tudo: se a gente suja a roupa reclama; se a gente pula, ela acha que a gente vai quebrar a perna; se corre dentro de casa, vai quebrar as coisas; se puxa o rabo do gato, é malvadeza; se vai ao banheiro tem que lavar as mãos e ainda entra pra ver se a gente deu descarga. Acho que minha mãe tem olhos na frente e olhos atrás na cabeça. Percebe tudo. E os ouvidos? Tem um ouvido bom que só! A gente cochicha e ela entende. Acho que ela estudou a língua do cochichês. Será que tem essa língua? Sei lá! Só sei que minha mãe pega muito no meu pé, e diz que faz isso para que eu aprenda a ser homem.
Se me manda tomar banho, parece que tem um olho biônico. Eu entro, fecho a porta, abro o chuveiro, e disfarço: pulo( para dá a impressão que estou achando a água fria), ponho o pé debaixo da água, passo sabonete nas mãos, e molho o cabelo. Quando eu saio, pensa que consigo enganá-la? Ela me chama, me olha com aquele olhar de mãe que pega no pé, e tudo vai por água a baixo. Ela pergunta:
- Você tomou banho mesmo?
Faço cara de sério e respondo baixando a vista.
- Sim, mamãe, tomei direitinho.
Ela me olha de um jeito, e eu vou ficando com uma coisa dentro do peito. Essa coisa vai crescendo, e aí eu abro a boca! Não posso mentir pra minha mãe:
- Não, eu não tomei banho. Fingi que tomava.
Ela me dá aquele sorriso de mãe que sabe de tudo, e diz:
- Eu sabia, filho, só queria que você me dissesse a verdade.
Quando eu penso que ela vai deixar passar essa. Por que acho que eu mereço um prêmio por ter dito a verdade. Aí ela sai com a próxima:
- Agora vá para o banheiro, porque quem vai lavar o ¨porquinho¨ sou eu!
Aí ela sai rindo e me puxando pelo braço. Eu não disse que minha mãe tem olhos e ouvidos que conseguem penetrar em qualquer lugar? Ela vê e ouve tudo.
Na hora do banho é um esfrega dali e esfrega daqui. Encontra sujeira em cada canto! Depois da batalha contra a tonelada de bichinho que ela diz que encontrou no filho amado, aí dar-se por satisfeita. Chegou a hora de talco e perfume. Por que será que mulher gosta tanto dessas coisas? Minha mãe nem se fala. Sufoca-me com tanto talco. Até lá naqueles cantinhos ela quer colocar, diz que é pra quando alguém for me cheirar dizer: ¨Que menino cheiroso!¨
Quem disse que eu gosto de cheiro? Só gosto do cheiro dos meus pais, dos meus avós e pronto. E não pode ser dado na frente de outras pessoas porque sinto vergonha.
E o perfume? Ufa! Coloca nos cabelos, nos braços, no pescoço, nas roupas... E até nas minhas costas! Só pára quando começo a espirrar. Ela diz com aquele sorrisão:
- Você é igual a seu avô Manoel, espirra com tudo.
Mas ela não entende que eu não espirro com tudo. Começo a espirrar é quando ela me enche de talco e depois me molha com perfume.
Sabe quando ela não pega no meu pé? É quando eu fico doente. Aí descubro o tamanho do amor que ela tem por mim. Fica com um olhar tristonho, me enche de dengo, levanta a noite toda pra me olhar, e quando não quero comer, depois de várias tentativas; corre pra casa de vovó Nona e pede que ela venha socorrer o netinho que está dodói. Sob os cuidados de vovó e da mamãe, se não for doença que só doutor pode curar, eu fico logo bom.
Vovó tem mãos de fada. Ela é toda fofinha. Quando me põe no colo me derreto todo. Minha mãe é bem parecida com ela. Acho que todos os filhos admiram sua mãe e avó, mas eu acredito que tenho a mãe e a avó mais bonita do mundo... Do planeta... Do universo... De tudo que está depois do universo...
Minha mãe pega no meu pé porque eu acho que isso é mania de toda mãe; se não fosse assim não seria mãe, né? Mas tenho que reconhecer que Deus me deu pais maravilhosos, avós que são nota dez; não tenho que desprezar isso; antes devo zelar pelos pais e por toda família que tenho.
Antes de terminar essa história quero me apresentar: meu nome é João. Voltarei a contar outras coisinhas dos meus poucos anos de vida, e espero poder encontrá-los outra vez.
Ah, uma pergunta: Quantos anos vocês acham que tenho?