SÓ QUERIA UM RELOGINHO (para crianças de uns dez anos)

Estava muito feliz nos meus dez anos.

Iria ganhar finalmente um reloginho para substituir o que fora roubado três anos antes quando nossa casa fora assaltada.

Guardado numa caixa de sapatos, olhava-o todos os dias para ele, mas não podia usá-lo porque poderia se quebrar.

Não quebrou, mas o ladrão levou embora.

Agora teria um novo.

Era só esperar o domingo, logo depois da minha formatura de quarta série.

Meu tio dar-me-ia o relógio.

Ainda mais que iria fazer um discurso homenageando minha primeira professora.

Estava com ele na ponta da língua.

Quinta-feira à tarde, mais um dos ensaios.

Ao chegar em casa minha mãe estava aflita, mas não me disse nada.

Estranhamente meu pai chegou mais cedo.

Fiquei escondido escutando a conversa de meus pais e meu avô.

Um vizinho recebera um telefonema avisando que meu tio fora encontrado caído no banheiro da empresa.

Intrometi-me aos prantos.

Alguém, que tinha carro, levou-nos ao hospital à noite.

Eu não podia entrar, mas do corredor vi muita gente circulando pelo quarto.

Acho que naqueles tempos não existiam UTIs.

Inocente, perguntei se o tio não iria a minha formatura.

Meu pai, com a dureza necessária, disse-me que meu tio ficara muito doente e talvez não vivesse, mas que se ele sobrevivesse na sexta-feira poderia sarar.

Chorei muito até dormir.

No dia seguinte, o dia levou a rotina que era possível.

Fui para o ensaio da formatura, avô e mãe para o hospital e o pai para seu trabalho.

Sinceramente, acho que nem lembrei ou tive medo de perguntar sobre meu tio.

O ambiente era de muita tristeza, mas tinha esperança.

Meu pai chegou.

Olhei para o relógio da sala e disse:

Pai! O dia passou. O tio vai sarar?

O choque!

O tio morreu, filho!

Dia seguinte o enterro.

Passei toda a noite no velório.

O primeiro de minha vida.

Apesar de meus pedidos silenciosos persistentes meu tio que dormia não acordou.

Foi minha primeira discussão com um deus que naquela época acreditava existir.

Até hoje evito aproximar-me de caixões e olhar para os mortos.

No sábado pela manhã meu avô incumbido de avisar os parentes levou-me junto em sua peregrinação.

Não tínhamos telefone, nem a maioria dos parentes.

Lembro-me do meu avô dizer para um dos parentes que ele deveria morrer, pois estava velho e não seu filho.

Não vi o enterro no final da tarde.

Convencido que meu tio gostaria que eu me saísse bem na apresentação, fui para o ensaio.

Não falei nada para ninguém, como recomendara minha mãe.

Aprendia que a morte não respeita nossos compromissos e vem sem marcar hora.

Não estranhem, mas a formatura era mesmo domingo porque havia aula aos sábados e as solenidades eram domingo pela manhã e havia até missa.

Falei a homenagem à professora e fui parabenizado por que não errei nada.

Terminada a festa, a surpresa.

Um outro tio trouxe-me uma caixinha.

Era o reloginho que já estava comprado.

Mas eu não queria mais ele.

Queria meu tio.

Nunca usei para não quebrar.

Acho que o encanto estava quebrado.

Até hoje guardo o reloginho que não funciona mais.

Pedro Galuchi
Enviado por Pedro Galuchi em 05/12/2008
Reeditado em 09/12/2008
Código do texto: T1320145
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