CANTAR
O sereno marcava o clima naquela manhã. O roxo e o amarelo, dos ipês, coloriam o vale e o aroma da dama da noite perambulava ao sabor da brisa. Próximo, o rio corria mansamente carregando consigo as folhas das árvores que o margeavam. A floresta e seus segredos cobrindo os morros e dando um descanso a vista que prescutava o horizonte.
Na soleira da porta, Zé Bento com sua caneca esmaltada bebericando um café quente que inundava o ambiente com seu aroma. Observava a fazenda e se organizava para sua labuta diária até que viu Ditinho, Zilda e Oristídes entrando com um objeto.
— Bom dia. Você sabe o que é isto?
— Bom dia. É uma homenagem a um mestre.
Ditinho o virava e o desvirava. Zé Bento vê o jeito curioso dos amigos e os convida para tomarem um café quente. Sem pestanejar, aceitam e se acomodam na varanda e ele:
— Foi uma homenagem ao grande e magnífico Pavarotti.
— Quem era? Perguntou Ditinho.
— O maior tenor de todos os tempos. Ele nos brindava quando a noite começava a dar a vez pro dia.
E apontou para o céu:
— Ás estrelas faziam um lindo tapete aguardando a entrada do sol, e ele enchia o peito de ar e se esticava todo para soltar aquela maravilha de acorde. Fazia tanto esforço para se fazer ouvir que chegava às vezes a perder o equilíbrio.
E todos se mechem inquietos e Zé Bento os observa fazendo um gesto com a mão para acamá-los e com uma expressão séria gesticulava com o indicador para o alto.
— Mas nunca titubeou, muito pelo contrario, com aquele esforço estremo chegava às notas mais altas para ser escutado por todos, incólume, e sem desafinar. E todo o vale ficava em silêncio durante aquela ária maravilhosa e quando acabava só se ouvia aplausos, assobios, gritos de bravo, bravissímo entusiasticamente. O tilintar de taças, copos, tulipas eram ouvidos em brindes empolgados. Olhos marejavam, faces se enrubesciam, mãos se apertavam e se abriam erguidas ao céu. E repetiam incansavelmente: divino, bravo, bravo, bravíssimo. Não havia garganta que não sentisse um “nó” com tanta emoção com aqueles acordes maravilhosos. Muitos acordavam mais cedo só para ouvi-lo cantar. Quem estava trabalhando parava para não perder aquela chance única de ouvi-lo. Enamorados se abraçavam fazendo juras de amor eterno. Não existia canto que chamasse atenção depois de Pavarotti. Todo dia pareciam-lhes mais afinado, apurado. E se perguntavam: - O que ele pretende? É demais tanta emoção. Corria a boca pequena uma aposta de seu melhor desempenho. Não havia roda de conversa “ao pé” de uma viola que ele não era citado. No fim, emocionados saiam ébrios de tanta emoção. Até uma moda ele lançou.
E Zilda:
— Até isso?
E Zé bento olha sério para eles alisando o peito e impostando a voz e fazendo trejeitos continua.
— Quem podia! Tinha dinheiro. Usava um fraque, bonito, vistoso. Quem não podia usava mesmo era um casaco. Não confundam com casaca. Um preto ou uma capa qualquer, podia até mesmo ter uns rasgadinhos não importava o importante mesmo era usar também alguma coisa colorida na cabeça, lapela ou pescoço. Ricos e pobres juntos, o imitavam unidos e apaixonados. Dava gosto de se ver.
E Ditinho:
— Não é atoa que ele foi homenageado.
E todos:
— É justo.
E Zé Bento:
— Quando acabava saiam pelas ruas abraçados e cantando. Tentavam imitá-lo. Cantar! Só o Pavarotti. A bem da verdade, todos treinavam o dia inteiro, mas alcançar o mestre era impossível.
E Oristídes:
— Como ele era.
— Era bonito, alto, esquio, corpo atlético, esporas proeminentes e unhas enormes. Um jeito magistral de andar pelo terreiro. Um galã com sua capa de penas negras e com algumas coloridas saindo em meio ás de sua asa e de seu rabo. Que fazia um longo arco até quase tocar o chão. Dominava o galinheiro, também pudera com aquela crista enorme e fazendo movimentos rápidos para jogá-la de um lado para outro da cabeça, esbanjando charme com seu olhar determinado. Entre eles, saia um magnífico bico dando-lhe um toque de imponência e arte. Até para alguém dar ração tinha que se cuidar, pois a bicada era certa. No seu terreiro era o rei. Qualquer outro penava, ou melhor: era depenado se resolvesse ciscar na sua área. Senhor de todas as galinhas e porque não do tempo. Um despertador prestimoso. Quatro horas da manhã. Infalível!
Mal acabou de falar chegou Damião em seu cavalo alazão perguntando:
— A prosa deve estar boa, logo cedo, todo mundo aqui?
— Eu estou falando do Pavarotti.
— Aquele sim era valente.
Damião era um sujeito grandalhão meio corcunda, fama de destemido. Andava sempre com seu facão extremamente amolado. Quando começou a falar atraiu a atenção de todos com aquele tom de voz rouca.
E Zilda:
— Você o conhecia?
— Claro! Um guerreiro romântico até o dia em que o Zébedeu comprou a fazenda. Um sujeito ruim, sem amigos, vivia sozinho e não se dava com ninguém ao contrario de Pavarotti que era amado por todos os viventes e os não viventes.
E Zilda:
— Não viventes!
— Isso mesmo! A mula sem cabeça o boi-tatá e até o capiroto.
E todos ficaram atônitos, boquiabertos e Damião passa a mão na barba rala e olha um a um.
— Têm gente que não sabe dar valor as coisas da roça com seus encantos e magias. Não acreditam nem mesmo nas assombrações da floresta. Zébedeu era um deles, cabra ruim. Grosso que só vendo. E numa noite agarrado com suas perturbações acordou de seus pesadelos com o barulho que vinha de todos os cantos. Uma cantoria danada de bonita. Todo mundo no vale estava cantando de felicidade e ele não queria saber de nada. Do jeito que acordou saiu tropeçando em tudo querendo se vingar.
Damião faz uma pose bem séria e pega seu facão. E todos:
— O matou?!
— Calma, Saiu em disparada para o meio da floresta. Demorou um pouquinho e veio com um monte de galhos. Passou o dia inteiro fazendo uma gaiola. Quando a noite caiu foi no galinheiro e prendeu o Pavarotti. Ele ficou tão triste que não cantou mais e o vale pela primeira vez ficou sem ouvi-lo. A tristeza tomou conta de todos. Tupã o deus da floresta queria ajudar Zébedeu.
E Zilda:
— Ainda foi ajudar esse traste!
E Oristídes:
— E o coitado do Pavarotti sozinho, triste e preso.
E Ditinho:
— Fora o povo que cantava e namorava.
E todos eles começaram a se levantar nervosos. Não estavam nem um pouco satisfeito com o rumo da conversa. Zé bento vendo a inquietação fala:
— Calma pessoal! Vamos tomar café e tratar de esperar o fim da estória.
E assim foi feito e Damião:
— Tupã juntou todas as nuvens do céu e cobriu a lua e as estrelas. A escuridão era tamanha que ninguém enxergava um palmo na frente do nariz e ai, mandou a mula sem cabeça saber se estava tudo bem com o Pavarotti. Para ela era tranqüilo andar naquela escuridão, porque em vez de cabeça ela tinha era um fogaréu enorme saindo do pescoço que iluminava tudo, e por isso não tinha nenhum problema correr naquela escuridão.
E todos:
— Até da mula sem cabeça ele cuidava. E o Pavarotti?
Damião se irritou e falou:
— O jeito é ir embora. Pego meu cavalo e acho meu rumo.
E Zé bento:
— Todo mundo aqui vai te ouvir quieto.
E Damião:
— É bom ter paciência! O fato é que a mula sem-cabeça ficou correndo em volta da casa procurando um jeito de entrar, pra ter noticia do Pavarotti, só queria isso. Zébedeu, quando viu aquele fogo galopando em volta de sua casa, ficou apavorado e a fechou ainda mais. E um raio imenso brilhou entre as nuvens iluminando todo o vale e caiu bem perto dela fazendo a noite virar dia. E aonde tem raio, tem trovão. Foi tão violento que a sacudiu. E logo depois ás nuvens sumiram e as estrelas brilharam ainda mais e tudo voltou ao normal.
E Ditinho:
— Só isso!
E Damião.
— Zébedeu saiu da casa surdinho e Pavarotti aproveitou que ele tinha esquecido-se de trancar a gaiola, saiu correndo para o galinheiro.
E Zilda:
— Deixou o coitado do Zébedeu surdo?!
Damião olha pra todos e fala:
— Pelo menos assim ele não se incomodaria mais com o maravilhoso canto do Pavarotti e o cantar de toda gente. Trancou-se dentro de casa e não queria mais sair. Pois bem! Com o tempo, mesmo surdo, se cansou da solidão e foi ao encontro deles que o receberam de braços abertos. Ele ficou tão agradecido que numa bela noite, enquanto todos aguardavam os maravilhosos acordes. Pediu desculpas, a todo mundo e disse olhando para as estrelas que tinha entendido que a felicidade dele jamais poderia ser a infelicidade dos outros. E se desculpou, olhando pro céu, também a tupã. E antes de acontecer aquela maravilhosa ária ele voltou a ouvir. E foi a melhor apresentação de todos os tempos e brindaram a musica e a alegria de telo como amigo.
E Oristídes:
— E essa homenagem, o que é?
E Damião:
— Muitos anos se passaram e um dia Pavarotti morreu em combate com um bicho que queria bulir com suas galinhas. E para que ninguém jamais se esquecesse dele fizeram essa escultura e a colocaram em pé em cima dessa seta larga, que se movimenta girando com a força do vento e aponta para essas indicações: N(norte), S(sul), L(leste), O(oeste). Que são os pontos cardeais e assim nos dá a sua direção.
E a pregaram na parte mais alta bem na frente da casa. E na mesma hora ele girou apontando para todos a direção do vento. E comemoram imitando o grande, maravilhoso Pavarotti.
DiMiTRi
PRIMAVERA - 22/09/08 12:45