Horas de infância
Dedico esse continho a minhas irmãs Rafaela e Gabriel. (Coloquei no feminino, porque essa coisa de botar no masculino sempre que tem um homem é uma marca machista na língua portuguesa).
O sol, que se espreguiçava depois de uma longa noite de outono, reluzia nas folhas ainda molhadas de orvalho; a grama úmida esfriava os pés descalços do menino que passeava pelo jardim. O menino chamava-se Gabriel, tinha seis anos e estava no quintal de sua casa, explorando-o, como gostava de fazer.
Nesta manhã, Gabriel descobriu uma trilha de formigas, as quais, ansiosamente, carregavam pedaços de folhas para o formigueiro. Elas haviam aberto uma verdadeira estrada na grama e seguiam sem parar para o buraco onde moravam. Gabriel as observava com dedicação: ia até o formigueiro e depois retornava até o lugar onde elas pegavam os pedacinhos de folhas, e as acompanhava de novo até a entrada do esconderijo; fez isto inúmeras vezes.
Não demorou muito para Gabriel ter a idéia de testar a determinação das formigas; para tanto, decidiu jogar pedrinhas e gravetos no caminho delas. Jogava o obstáculo e observava a reação das bichinhas. Depois de algumas tentativas, percebeu que elas eram mesmo persistentes, não desistiam de prosseguir no árduo trabalho.
No entanto, depois de ficar algum tempo olhando para um trecho específico da trilha, Gabriel viu uma formiga que não carregava nada nem andava num único sentido. Esta formiga ia um pouco na direção do formigueiro, e depois voltava. Surpreso, o menino prestou mais atenção, e constatou que a bichinha montava nas costas das outras para ser carregada durante alguns segundos; parecia brincar enquanto as irmãs trabalhavam.
Gabriel passou um bom tempo observando a formiguinha brincalhona, que subia em cima das outras, tal como ele gostava de fazer com o seu pai. Jogou um gravetinho, que caiu transversalmente no caminho dela, e esperou para ver o que ela faria. A danada da formiga foi até uma ponta do graveto e ficou esperando que suas irmãs passassem pela outra extremidade, o que transformou o pedacinho de pau em uma gangorra. Gabriel assistia compenetrado e surpreso às brincadeiras da formiga, e começou a pensar que aquela devia ser uma formiga de seis anos, uma formiga criança, como ele.
Passou a chamá-la de bagunceira e ria quando as formiguinhas pisavam na ponta do graveto fazendo a brincalhona subir do outro lado. Contudo, reparou que ela tinha o mesmo tamanho das outras, e que só ela se divertia enquanto todas as outras trabalhavam para o formigueiro; Gabriel começou, portanto, a desconfiar da infância da bagunceira.
Permaneceu ali e viu que a formiguinha deixara a gangorra de lado e foi até uma florzinha de amendoeira, que estava caída perto do caminho. Gabriel chegou a pensar que a bagunceira ia trabalhar, quando a viu pegando a florzinha; mas a bichinha queria mesmo brincar: colocava a florzinha na cabeça e sacudia-se até ver a pequena flor cair. Gabriel se divertia com as peripécias da bagunceira, quando ouviu uma voz lhe dizer baixinho:
- Você sabe, menino, por que esta formiguinha é tão brincalhona?
Gabriel olhou em redor, mas não viu ninguém.
- Menino, olha pra cá, olha pra goiabeira. Eu estou aqui – repetiu a voz.
Ele olhou para a árvore e, mais uma vez, não viu nada.
- Olha direito, olha com calma! - disseram de novo.
Gabriel aproximou-se da goiabeira e viu um sabiá laranjeira de asas abertas, que lhe disse:
- Está cego, menino? Sou eu quem lhe fala.
Gabriel perguntou ao sabiá se ele era um papagaio marrom, de peito laranja. O sabiá não gostou da pergunta do menino, e disse-lhe que não era papagaio, mas sabiá - sabiá laranjeira -, e que todos os pássaros falam, quando querem, não só o papagaio. Disse também que o papagaio era um exibido e que sua fama era devida à mania de repetir o que ouvia dos homens.
Gabriel então perguntou por que nunca tinha ouvido nenhum pássaro falar; o sabiá lhe respondeu:
- Os pássaros sempre falam. Os homens, porém, não nos escutam, porque acham que não temos nada a lhes dizer. Na verdade, nós, pássaros, desistimos de lhes falar, principalmente, aos homens adultos. O único pássaro que eles são capazes de escutar é o papagaio, que se restringe a repetir o que ouve. Os homens, quase todos, só conseguem ouvir a si mesmos, não compreendem nada que lhes seja diferente.
- Ah, então é por isso... Mas eu quero te ouvir, passarinho; o que você disse sobre a formiguinha bagunceira? - perguntou Gabriel.
- Eu disse que sei por que ela é brincalhona. E fique você sabendo que ela já não é mais criança, falou o sabiá.
- Não?!
- Não; o que quero lhe explicar, menino, é uma teoria muito difundida entre nós, pássaros, mas desconhecida de vocês, homens. A teoria é a seguinte: todos os animais nascem com um fixo número de horas de infância; cada espécie possui uma média de horas infantis. Eu falo em horas, mas poderia falar em dias, meses ou anos, de acordo com a espécie analisada. Os sabiás, por exemplo, tem cinco semanas de infância; depois disso, são adultos. Assim, todos os bichos, quando vêm ao mundo, têm um número de horas para ser criança, entendeu?
- Entendi. E isso eu já sabia: já vi cachorrinhos e gatinhos, filhotes, brincando; e depois os vi grandes, adultos. Já vi também fotos do papai e da mamãe crianças, brincando.
- Pois é; mas você sabia que cada espécie tem um número de horas definido para ser criança, e que essas horas nunca podem ser vividas de outra maneira? É nisso que se baseia a teoria da qual lhe falo: as horas de infância são obrigatórias, não se pode fugir delas. Você sabe qual é o animal que mais demora a se tornar adulto?
- Não, não sei.
- É o homem; são doze anos, em média, para entrar na adolescência, que ainda não é a vida adulta! Gerações e gerações de pássaros e insetos passam, enquanto você, homenzinho, ainda está na infância.
- Tá; isso eu entendi. Mas não sei ainda o que diz a tal “teria”.
- Não é “teria”, é teoria, e o que ela diz é o seguinte: se o bicho não gastar suas horas de infância quando for criança - lembre-se de que as horas são obrigatórias -, ele as gastará em outra fase da vida. É justamente o caso da formiga que você está vendo aí; ela já é adulta, mas como não usou as horas infantis quando pequena, está usando-as agora. Como lhe falei, não se pode fugir dessas horas.
- Mas por que a bagunceira não usou as horas de criança quando era pequena?
- Há casos, menino, em todas as espécies, de indivíduos que são sérios, rígidos e preocupados durante a infância, ou seja, casos nos quais não se gastam as horas de infância no início da vida; quando isto acontece, as horas infantis aparecem-lhes, de surpresa, no meio ou até no fim da vida. Esta é a teoria que explica os adultos e velhos que agem como crianças. Mas isso não quer dizer que só devemos nos divertir quando somos novos e nos tornar preocupados e sérios quando amadurecemos: o melhor é sempre saber brincar, seja qual for a idade.
Gabriel agradeceu ao pássaro pela teoria, e voltou a observar a bagunceira. Daí a pouco, resolveu jogar um pouco de água no caminho das formigas para ver o que aconteceria: continuou, portanto, vivendo as suas horas de infância.
Nesta manhã, Gabriel descobriu uma trilha de formigas, as quais, ansiosamente, carregavam pedaços de folhas para o formigueiro. Elas haviam aberto uma verdadeira estrada na grama e seguiam sem parar para o buraco onde moravam. Gabriel as observava com dedicação: ia até o formigueiro e depois retornava até o lugar onde elas pegavam os pedacinhos de folhas, e as acompanhava de novo até a entrada do esconderijo; fez isto inúmeras vezes.
Não demorou muito para Gabriel ter a idéia de testar a determinação das formigas; para tanto, decidiu jogar pedrinhas e gravetos no caminho delas. Jogava o obstáculo e observava a reação das bichinhas. Depois de algumas tentativas, percebeu que elas eram mesmo persistentes, não desistiam de prosseguir no árduo trabalho.
No entanto, depois de ficar algum tempo olhando para um trecho específico da trilha, Gabriel viu uma formiga que não carregava nada nem andava num único sentido. Esta formiga ia um pouco na direção do formigueiro, e depois voltava. Surpreso, o menino prestou mais atenção, e constatou que a bichinha montava nas costas das outras para ser carregada durante alguns segundos; parecia brincar enquanto as irmãs trabalhavam.
Gabriel passou um bom tempo observando a formiguinha brincalhona, que subia em cima das outras, tal como ele gostava de fazer com o seu pai. Jogou um gravetinho, que caiu transversalmente no caminho dela, e esperou para ver o que ela faria. A danada da formiga foi até uma ponta do graveto e ficou esperando que suas irmãs passassem pela outra extremidade, o que transformou o pedacinho de pau em uma gangorra. Gabriel assistia compenetrado e surpreso às brincadeiras da formiga, e começou a pensar que aquela devia ser uma formiga de seis anos, uma formiga criança, como ele.
Passou a chamá-la de bagunceira e ria quando as formiguinhas pisavam na ponta do graveto fazendo a brincalhona subir do outro lado. Contudo, reparou que ela tinha o mesmo tamanho das outras, e que só ela se divertia enquanto todas as outras trabalhavam para o formigueiro; Gabriel começou, portanto, a desconfiar da infância da bagunceira.
Permaneceu ali e viu que a formiguinha deixara a gangorra de lado e foi até uma florzinha de amendoeira, que estava caída perto do caminho. Gabriel chegou a pensar que a bagunceira ia trabalhar, quando a viu pegando a florzinha; mas a bichinha queria mesmo brincar: colocava a florzinha na cabeça e sacudia-se até ver a pequena flor cair. Gabriel se divertia com as peripécias da bagunceira, quando ouviu uma voz lhe dizer baixinho:
- Você sabe, menino, por que esta formiguinha é tão brincalhona?
Gabriel olhou em redor, mas não viu ninguém.
- Menino, olha pra cá, olha pra goiabeira. Eu estou aqui – repetiu a voz.
Ele olhou para a árvore e, mais uma vez, não viu nada.
- Olha direito, olha com calma! - disseram de novo.
Gabriel aproximou-se da goiabeira e viu um sabiá laranjeira de asas abertas, que lhe disse:
- Está cego, menino? Sou eu quem lhe fala.
Gabriel perguntou ao sabiá se ele era um papagaio marrom, de peito laranja. O sabiá não gostou da pergunta do menino, e disse-lhe que não era papagaio, mas sabiá - sabiá laranjeira -, e que todos os pássaros falam, quando querem, não só o papagaio. Disse também que o papagaio era um exibido e que sua fama era devida à mania de repetir o que ouvia dos homens.
Gabriel então perguntou por que nunca tinha ouvido nenhum pássaro falar; o sabiá lhe respondeu:
- Os pássaros sempre falam. Os homens, porém, não nos escutam, porque acham que não temos nada a lhes dizer. Na verdade, nós, pássaros, desistimos de lhes falar, principalmente, aos homens adultos. O único pássaro que eles são capazes de escutar é o papagaio, que se restringe a repetir o que ouve. Os homens, quase todos, só conseguem ouvir a si mesmos, não compreendem nada que lhes seja diferente.
- Ah, então é por isso... Mas eu quero te ouvir, passarinho; o que você disse sobre a formiguinha bagunceira? - perguntou Gabriel.
- Eu disse que sei por que ela é brincalhona. E fique você sabendo que ela já não é mais criança, falou o sabiá.
- Não?!
- Não; o que quero lhe explicar, menino, é uma teoria muito difundida entre nós, pássaros, mas desconhecida de vocês, homens. A teoria é a seguinte: todos os animais nascem com um fixo número de horas de infância; cada espécie possui uma média de horas infantis. Eu falo em horas, mas poderia falar em dias, meses ou anos, de acordo com a espécie analisada. Os sabiás, por exemplo, tem cinco semanas de infância; depois disso, são adultos. Assim, todos os bichos, quando vêm ao mundo, têm um número de horas para ser criança, entendeu?
- Entendi. E isso eu já sabia: já vi cachorrinhos e gatinhos, filhotes, brincando; e depois os vi grandes, adultos. Já vi também fotos do papai e da mamãe crianças, brincando.
- Pois é; mas você sabia que cada espécie tem um número de horas definido para ser criança, e que essas horas nunca podem ser vividas de outra maneira? É nisso que se baseia a teoria da qual lhe falo: as horas de infância são obrigatórias, não se pode fugir delas. Você sabe qual é o animal que mais demora a se tornar adulto?
- Não, não sei.
- É o homem; são doze anos, em média, para entrar na adolescência, que ainda não é a vida adulta! Gerações e gerações de pássaros e insetos passam, enquanto você, homenzinho, ainda está na infância.
- Tá; isso eu entendi. Mas não sei ainda o que diz a tal “teria”.
- Não é “teria”, é teoria, e o que ela diz é o seguinte: se o bicho não gastar suas horas de infância quando for criança - lembre-se de que as horas são obrigatórias -, ele as gastará em outra fase da vida. É justamente o caso da formiga que você está vendo aí; ela já é adulta, mas como não usou as horas infantis quando pequena, está usando-as agora. Como lhe falei, não se pode fugir dessas horas.
- Mas por que a bagunceira não usou as horas de criança quando era pequena?
- Há casos, menino, em todas as espécies, de indivíduos que são sérios, rígidos e preocupados durante a infância, ou seja, casos nos quais não se gastam as horas de infância no início da vida; quando isto acontece, as horas infantis aparecem-lhes, de surpresa, no meio ou até no fim da vida. Esta é a teoria que explica os adultos e velhos que agem como crianças. Mas isso não quer dizer que só devemos nos divertir quando somos novos e nos tornar preocupados e sérios quando amadurecemos: o melhor é sempre saber brincar, seja qual for a idade.
Gabriel agradeceu ao pássaro pela teoria, e voltou a observar a bagunceira. Daí a pouco, resolveu jogar um pouco de água no caminho das formigas para ver o que aconteceria: continuou, portanto, vivendo as suas horas de infância.