Urutau

“Urutau”

Aqui em Formosa existe um campo para instrução do Exército. Como só entram humanos militares, todos fardados de verde e roupas camufladas, a bicharada resolveu vir para cá também. É porque eles fazem exercícios bobos de tiros e deslocamentos, mas não ferem ninguém. Esta noite dormi pertinho de um vigia tirando serviço. Ele ficava parado e eu de cima de um mel-de-arara, com aquela florzinha branca e folhas bem verdes e duras, só observando. A noite foi longa e o urutau lamentou o tempo todo.

Setembro de lua cheia, observei o urutau voando alto, bem grandão, silencioso e batendo as asas lentamente. O homem também viu. Impressionante o grito dele. Hu-hu-hu. Pregado com seus dedinhos tortos, numa palmeira bem alta, de cabeça para baixo as asas semi-abertas e os tons graves e decrescentes até terminar numa espécie de gemido, parecido com “ai-ai-ai”, é de dar medo. Se eu não tivesse saído da minha árvore e chegado bem pertinho – fiquei numa caraíba, que é o ipê-do-cerrado – não tinha visto.

O soldado montando guarda achou que era um fantasma. Era só a mãe-da-lua, ou urutau. Enorme, mais de meio metro, fora a cauda. Camuflada de maneira perfeita. Estendida no toco da gomeira queimada de um raio, meio que coberta de musgo e aquela casca rugosa, era imperceptível mesmo aos olhos mais treinados. Amanheceu e o recruta se aproximou.

Não viu aquela boca rasgada colossal, acho que cabe um punho nela. Nem notou que as penas de cor parda, meio canela com listras transversais escuras, confundiam-se com o tronco. O sol foi esquentando, o soldado –que não tinha nada que fazer- tentava rastrear a ave. Se colocasse um binóculo e focasse na pontinha do pau, veria que era um urutau.

Ao meio-dia ele mexeu levemente o pescoço, com o bico entreaberto. Acho que depois de comer aqueles besouros gigantescos e as mariposas tipo “bruxa”, ele precisa refrigerar a bocarra. Ele girou em direção ao sol. Aí que eu vi uma coisa tão impressionante que nem acreditei. Ele me olhava de olhos fechados!

Os olhos esbugalhados - do juratauí, ou então ibijouguaçú - parecem bolas de gude foscas de sapo. Esse senhor urutau tem uma fenda vertical no alto da pálpebra! De lá ele me vê e segue, tenho certeza. Eu rapidinha me afastei pelo campo cheio de flores alaranjadas e vermelhas –são as prediletas dele- e não é que o soldado me fuzilou! Tomei um tiro, mas não pegou. Ainda deu tempo de olhar para o urutau e ele não moveu uma palha! Limpei meu corpo das caliandras e de outras plantinhas e me embrenhei pela mata de galeria.

O homem não sabe das riquezas e se apavora com o desconhecido. Lá no toco o urutau choca seu ovinho único esbranquiçado que nem o filhotinho que vai nascer. Na forquilha da gomeira poderia haver outro. Demora uns 50 dias no oco até sair depois de um mês de choca. Debaixo dos pés do soldado tem diamante, entre as sementes cheias de mucilagem do mel-de-arara, igual eu vi na Chapada dos Veadeiros. Mais pra frente um pouco se encontra quartzitos nas raízes da gomeira. Dá até para fazer vinho da seiva dela.

Isso tudo o humano não sabe, e eu é que não vou contar. E será que você, consegue encontrar beleza e tesouros, escondidos entre a estranheza de um urutau e suas diferenças. Ou vai ficar metendo bala no que desconhece, em vez de se aproximar e descobrir novos mundos?

JB Alencastro