A biópsia.
Os solavancos do ônibus faziam Romulo segurar com força o embrulho que envolvia o pequeno vidro.De modo algum ele arriscaria perder aqueles dois milímetros de pele retirados de suas costas.Recordava sem parar,sentado naquele banco desconfortável do coletivo,as advertências maternas:"você é muito branco meu filho!não vá a praia sem protetor solar!Conselho ignorado na infância e adolescência,consequência inevitável na maturidade.
A cirurgia até que foi melhor do que o esperado:chegada na clínica,atendimento na recepção,instruções da enfermeira,colocação do avental cirúrgico,comprimido sub-lingual,penumbra na cama da ante-sala de cirurgia,sonolência,barulho da maca sendo empurrada pelos corredores,visão rápida das luzes do centro cirúrgico,espetada no dorso de sua mão direita,inconsciência.... e despertar;na sala de recuperação.
Deixou a casa de saúde com a impressão de ter sido purificado. Levou,Junto com ele,um vidrinho contendo um pedaço seu dentro,boiando num líquido transparente.
Havia,no entanto, um problema:Seu plano de saúde recusara-se a pagar a biópsia.Romulo foi então pesquisar o preço nos laboratórios particulares.Ficou estarrecido com o valor do procedimento.Por sorte achou um laboratório conhecido,de boa reputação,que tinha um preço mais razoável.O único problema era o endereço,totalmente contra-mão para ele.Decidiu levar o material de ônibus,para não ter que preocupar-se com o carro.
Uma freada brusca jogou-lhe novamente na realidade.Sem que ele notasse,um senhor calvo,vestido de maneira simples,quase empobrecida,sentara-se no banco ao lado.Como Romulo,trazia um embrulho no colo,que também segurava com cuidado.
Dizem que os semelhantes identificam-se uns aos outros.Romulo teve a impressão de que aquele desconhecido,pelo zelo com que segurava o embrulho,levava,assim como ele,material para ser examinado à luz da ciência!Era apenas uma intuição,é verdade,mas que o deixou cismado.
O ônibus,indiferente aos dramas de seus passageiros,continuava seu trajeto diário.Assim que dobrou uma esquina,entrando numa rua de pouco movimento,o pesadelo começou:
__Pára o carro "motô"!!!Pára agora e encosta ali!!!__Um rapaz de seus dezessete anos empunhava o trinta e oito com uma disposição de Rambo anabolizado.Gritos femininos(masculinos também),respiração acelerada,taquicardia geral...Após a parada,o meliante deu as ordens:
__Meu colega aqui__Apontou para um baixinho de gorro vermelho que tinha um saco plástico nas mãos__Vai recolher uma "ajuda" de vocês para financiar a nossa faculdade de economia!
Reco(apelido do marginal)não tinha nem o primário completo,mas ouvira a bravata num filme de ação e resolveu adotá-la como sua "frase oficial de assaltante".Cadinho(apelido do ajudante)andava pelo ônibus passando a bolsa aberta,e as pessoas iam jogando carteiras,relógios,bolsas,bijouterias...etc.
Chegando na sua vez,Romulo jogou sua carteira e relógio sem exitar.Reco olhou e disse:
__Ô "bonitão";Joga o embrulho também!!
__Mas aqui só tem... __Tentou explicar Romulo
__Não quero saber!!Joga;senão você vai falar com São Pedro hoje à noite...e não vai ser rezando!!
A ameaça surtiu efeito,e o embrulho contendo o material a ser biopsiado foi entregue!Depois foi a vez do senhor calvo fazer sua doação.Ao contrário de Romulo,ofereceu seu embrulho de bom grado,junto com a carteira.
Trabalho concluído,Reco e cadinho saltaram do ônibus correndo feito loucos,e pegaram a primeira entrada que dava acesso ao morro da localidade.
Passado o trauma,o motorista levou todos para a delegacia,a fim de comunicar o assalto.No distrito,Romulo ficou sentado novamente ao lado do senhor calvo,enquanto aguardava sua vez de fazer o registro da ocorrência.Não resistindo a curiosidade,puxou papo com o homem:
__Mas que coisa não é?Não se está seguro em nenhum lugar.
__Perfeitamente!__respondeu o calvo,usando um legítimo sotaque português__E ainda por cima eu tive que dar o material de exame que estava levando!__Completou.
Romulo estremeceu!Era verdade!Sua intuição estava certa!Os dois viviam o mesmo drama!Decidiu expôr-se,e contou seu caso ao antes desconhecido,agora amigo-quase-irmão:
__Eu também levava um tecido para biópsia,e não sei se vou conseguir conviver com a ausência do diagnóstico!!
O homem arregalou os olhos e perguntou:
__Como assim;ausência?
__Ora, todo o material que foi retirado estava naquele vidro!!!!Não sobrou nada para exame!!!__Romulo abria e fechava os braços,numa mímica corporal de estresse.
__Olha..__o senhor apertou com o indicador e o polegar o lóbulo da orelha direita,constrangido com a declaração que estava prestes a fazer__No meu caso,o único empecílio é a minha prisão de ventre;mas se eu tomar um bom purgante,consigo material à beça para o exame.
Surpreso com a revelação,Romulo soltou uma risada que o fez relaxar.Logo os dois estavam rindo e papeando como velhos amigos.Descobriram,inclusive,que torciam pelo mesmo time.
Romulo decidiu que passaria protetor solar regularmente e não encucaria mais com o assunto....