O eminente

Este diálogo tem como personagens o doutor Edson e Carlos, seu auxiliar.

Carlos:- Mas doutor, o que houve na sexta-feira? O senhor não compareceu à audiência, e o seu cliente foi condenado a quase 20 anos de prisão em regime fechado.

Edson: - Era causa ganha, mas vou recorrer. O problema maior foi a confusão criada por você. Eu tinha provas cabais que inocentariam de vez o seu Francisco, e, no entanto, ficou tudo guardado na minha gaveta.

Carlos:- Doutor Edson, as provas estavam na sua gaveta...E que tumulto foi aquele no presídio, quando o senhor chegou para visitá-lo?

Alguns detentos gritavam enlouquecidos que ainda iriam te pegar quando saíssem do presídio. Havia presos ali com quase 20 anos encarcerados.

Edson:- De fato, conheço alguns, pois vários são ou foram meus clientes. Não se conformam de terem sido condenados. Você sabe como é a justiça no nosso país.

Carlos:- Mas doutor, conversei com muitos e ouvi coisas horríveis. Ficou evidenciado que o senhor foi negligente e imperito em vários processos. Perdeu prazos para recorrer, deixou de carrear provas fundamentais, que inocentariam muitos daqueles que se encontram cumprindo pena no presídio há anos, por crimes que talvez não tenham cometido.

Edson:- ...Mas sou muito ocupado, não posso dar conta de tudo.

Carlos:- Como assim, doutor? O senhor tem poucos clientes...Além do mais, nesse último processo, quando ligamos para o senhor, ouvimos música de pagode muito alta, nos pareceu, pela gritaria, que o senhor estava num churrasco.

Edson:- Psiu! Fica quieto, vai que te ouvem.

Carlos:- Doutor, voltando ao quase motim daquele dia, muitos pediam para que o colocassem na galeria para dar cabo da sua vida. E o senhor acenava para todo mundo, como se nada estivesse acontecendo, dizendo para eles que não perdessem a esperança, pois estava trabalhando duro por eles. Confesso que fiquei assustado, acho que vou deixar de trabalhar para o senhor.

Edson:- Deixa de ser medroso! Ingratos é o que eles são. Se me encherem muito, não levo mais notícias para eles, e não me esforço mais para tirá-los de lá.

Carlos:-Mas eles estavam com muito ódio, pareciam fora de controle. Muitos gritavam que eram inocentes e, que por sua culpa, foram presos e passaram por toda a sorte de infortúnios... que haviam sido violentados sexualmente, mutilados e que as suas vidas estavam acabadas.

Edson:- Exagero. Uns ingratos, volto a afirmar; pagaram-me honorários ínfimos e não reconhecem o meu valor.

Carlos:- Ínfimos, doutor?!Muitos venderam tudo que tinham...suas casas, seus carros...Tudo.

Edson:-Tenho família, preciso comer. Essa gente é ingrata mesmo, se lembra da dona Marisa, que visitei no Talavera Bruce, semana passada.

Carlos:- Claro que sim, doutor. Quando ela o viu, ficou simplesmente furiosa. Ela me contou toda a história, me falou que não fora a responsável pelo furto do televisor. Disse-me que alertara o senhor de que naquela casa de família em que trabalhava, o filho mais novo, de nome José, era viciado, e que ele furtara o bem. E mais, que o senhor lhe dissera que a causa era simples e fácil, que não se preocupasse.

Disse mais, que ela mesma indicou dona Joana, vizinha da família, que poderia servir de testemunha no processo, pois vira o José sair furtivamente de casa com o televisor.

Edson:- Dona Marisa fala demais...Não me pagou tudo o que me devia e ainda reclama...Ficou transtornada quando lhe contei que o seu filho único havia sido preso. Rapaaaaz, você tinha que ver como ela gritava, babava e batia com a cabeça nas grades...Dizia que eu era o culpado pela destruição da sua família, e que era um péssimo advogado. E olha que me ofereci para dar toda a assistência jurídica ao seu filho...Aí ela gritou ainda mais dizendo que me mataria, e desmaiou.

Carlos:- Doutor...Aquela testemunha era decisiva e não compareceu à audiência porque o senhor não a arrolou no processo.

Edson:- Mas ela tem que entender que errar é humano...e que por causa de um dia, o juiz não aceitou o recurso...Nesses 10 anos em que ela está no Talavera Bruce, sempre que posso a visito...Ficar transtornada daquele jeito. Tenho culpa por seu filho, após a sua prisão, ter se revoltado e ter se envolvido na criminalidade. Faço-lhe o favor de informá-la, e olha o que recebo.

Carlos:- Acho melhor o senhor mudar de profissão.

Edson:- Mas eu gosto muito desse título de doutor. Se for para mudar, serei médico cirurgião, talvez cardiologista. Assim, não perderei o título de doutor, e estarei cuidando dos bens mais preciosos que uma pessoa pode ter:A vida e a liberdade.Ou melhor, da liberdade já cuido, em breve cuidarei da vida, com o mesmo empenho e zelo.