Peripécias Quase Tragicômicas (mais cômicas do que trágicas) de um "Desligado"

Quando vejo na TV certa publicidade de um belo rapaz que esquece uma pasta aberta sobre o teto do carro, saindo tranqüilamente com o veículo enquanto folhas de papel esvoaçam pelo ar, logo me identifico com o indivíduo. Não que eu seja “belo”. . . Na verdade, nem “rapaz” poderia ser considerado, já que, embora ainda não tenha alcançado a chamada “terceira idade”, estou seguramente atravessando a segunda e meia. . .

É que sou daquele tipo de pessoa tida por “desligada”, que fixa os óculos de leitura no alto da cabeça e sai a procurar por eles por toda a casa até alguém, girando os olhos com quase incredulidade, apontar: “Estão bem aí em cima da sua testa”.

Não sei se isso já se deu com muita gente, mas já fui de carro para o centro, estacionei-o por lá, e depois de percorrer todo o circuito de bancos e outras entidades públicas e privadas, voltei para casa para ser recepcionado pela esposa com a surpresa indagação: “Cadê o carro?” É que o havia deixado no estacionamento bem antes de ter embarcado no ônibus de volta ao lar.

E falando em circuito de bancos, houve também ocasião de ir a um desses estabelecimento para um rápido saque num “Caixa Automático” ante a necessidade de adquirir certo artigo para casa. Enfiei o cartão na abertura apropriada, ouvi o clique-claque da máquina processando a operação, e logo mais o cartão despontava pela abertura para ser recolhido. Depressa coloquei-o de volta na carteira e saí rápido para a tal compra, em vista das muitas outras coisas que ainda teria de cumprir. Ao entrar na loja e adquirir o artigo chegou, logicamente, a hora de pagar. Mas, cadê o dinheiro? Não me havia dado conta de que a operação bancária precisava ser completada com a devida retirada do montante solicitado. Ou seja, a grana liberada pela máquina ficara por lá . . .

Voltando ao tema de carro e esquecimento, se o episódio de deixar o carro estacionado no centro representou-me apenas um contratempo, o que se deu há uns anos, quando residia em Santo André, São Paulo, poderia ter-se constituído num razoável prejuízo financeiro.

Numa sexta-feira à tarde eu tinha folga do trabalho e resolvi dar uma “geral”, lavando o carro caprichadamente para as atividades do sábado e domingo. Já pelo fim da tarefa, a esposa chamou-me para atender um telefonema dentro da casa. Interrompi os trabalhos e fui ver quem queria falar comigo. Conversa vai, conversa vem, o sol descendente se ocultou por detrás do perfil dos edifícios da selva de pedra urbana, e tratei de ir tomar um banho e preparar-me para o jantar e para dormir.

A noite foi repousante e tranqüila. De manhã cedo, qual não foi minha surpresa ao ver o carro perto do portão rodeado de mangueira, baldes, caixa de sabão em pó e panos sujos, com a porta do motorista semi-aberta e as chaves de ignição sobre o muro ao lado da rua. Sendo que o índice de furto de automóveis é bem elevado na região, imaginei que se algum ladrão de carros tivesse passado por ali, achou a coisa tão fácil que logo pensou: “Isto deve ser uma armadilha”.

Noutra ocasião de faxina automobilística, o problema poderia ter sido muito maior, mesmo trágico. Eis o que se deu: A faixa cimentada que vai do portão até o abrigo do carro era ligeiramente inclinada. Deixei o carro parado próximo do portão e, provido dos apetrechos apropriados, dediquei-me a mais uma das tarefas de limpeza automobilística com disposição.

Meus filhos pequenos brincavam pelas proximidades e as aulas do turno da tarde de uma escola próxima haviam há pouco findado, com a leva de estudantes descendo a rua rumo a suas residências. A certa altura, apoiei-me sobre a frente do carro, e, horrorizado, percebi como começava a se deslocar devagar, depois, aumentando a velocidade, atravessou o portão e atingiu a calçada. Percebi um estudante detendo com o braço os passos de um companheiro enquanto o carro avançava pela calçada em direção à rua. Esta era ligeiramente abaulada, com as laterais rebaixadas para efeito de fluxo de águas pluviais. Assim, o carro subiu até o centro da mesma, que, felizmente, estava sem tráfego, e retornou no mesmo ritmo ao meu quintal. Parece que o veículo era um bom cristão pois o fez sem se desviar “nem para a direita, nem para a esquerda”, como diz a Bíblia. . .

Ao voltar até onde eu estava, agarrei-me como pude ao parachoque dianteiro, mas fui arrastado de volta para a calçada e início do asfalto. Mas com isso o carro perdeu o impulso, e a força da gravidade foi parcialmente detida pelo meu “heróico” esforço. De algum modo consegui abrir a porta, agarrar-me ao freio de mão e puxá-lo com toda força enquanto ouvia expressões de admiração dos escolares, não sei se de elogio à minha proeza ou de condenação a meu desleixo. Estava por demais excitado tratando de conduzir o carro de volta a seu ponto de origem. Depois disso, sempre me tenho lembrado de puxar até o limite o freio de mão dos carros que dirijo, ao estacioná-los, logicamente.

Admiração alheia também ocorreu quando, ao chegar a um escritório para o qual prestava serviços profissionais certo dia frio, um conhecido da entidade aproximou-se de mim, puxou-me a manga do suéter ligeiramente e comentou de forma que, a princípio, me pareceu enigmática: “É. . . começa assim!. . .” Ele esticara para me mostrar exatamente a parte da costura interior, que estava no exterior! Eu vestira o suéter pelo avesso!

E também houve o episódio do par de sapatos. Bem, isso ocorreu quando eu era adolescente, e nessa idade é normal a gente ser desligado. Mas a coisa comigo foi até engraçada. Deu-se o seguinte: Deixei um par de sapatos no sapateiro para necessários consertos. No dia aprazado, fui recolhê-los. Em casa notei que eles estavam um pouco mais apertados, mas imaginei que o sapateiro usara algum verniz que deixava o coro mais rijo, ou algo semelhante, e não me preocupei muito com o fato. Dias depois, minha mãe disse-me que o sapateiro estava desesperado à procura de quem fora o idiota que levara um par de sapatos errado, deixando-o em situação difícil junto a um de seus clientes. Pesquisando entre os que estavam por lá, o profissional deu com o meu bendito par de sapatos que jazia há vários dias na sua prateleira à espera de ser buscado.

Fui até lá para os devidos esclarecimentos e troca de pares, e o homem só faltou me estrangular: “Em trinta anos de profissão nunca uma coisas dessas se deu comigo”, reclamou com o seu português atropelado, típico de sua Portugal nativa. “Que direi agora ao outro cliente?” Não sei se a culpa foi inteiramente minha neste caso. Afinal, ele devia ter conferido melhor no ato de entrega, pois, pois!

Finalmente, um episódio ocorrido quando seguia um programa de mestrado numa universidade dos Estados Unidos foi realmente marcante. Os estudos lá eram puxados e não havia tempo a perder, com tantas pesquisas, dissertações e testes a enfrentar. Se havia algo que me irritava particularmente era ser interrompido pela esposa ao estar embalado em minhas atividades acadêmicas com pedido para eu ir até o supermercado realizar compras. Foi o que se deu certa manhã, e não havia escape. Tinha que ir, do contrário não haveria meios de preparar o almoço.

Saí correndo com a listinha de compras que ela me deu, entrei no carro e mandei-me para o grande supermercado da comunidade. Percorri bem depressa os diferentes corredores entre prateleiras abarrotadas dos mais diversos produtos, e com as mercadorias da lista no carrinho aproximei-me de um dos caixas para o necessário acerto de contas. Havia uma pequena plataforma onde redigir cheques e vali-me da instalação para ir preenchendo o valor das minhas rápidas aquisições, enquanto a moça do caixa passava as mercadorias e digitava seus valores na registradora. Terminada a transação, o jovem empacotador entregou-me o saco de papel cheio, mas logo reparei que algo estava errado. Do saco destacava-se um objeto longo que eu não havia comprado. “Estas não são minhas compras”, eu lhe expliquei. “Oh sim, claro que são! O senhor acabou de pagar por elas. . .” insistiu o jovem. “Não, eu não comprei isto. . .”, protestei. Abri, então, a boca do saco e percebi lá dentro coisas bem diferentes daquelas da lista que a esposa me havia entregue.

“Espere um instante”, disse ao jovem, enquanto avançava para dentro da loja. Em certo ponto, vi o carrinho com todas as mercadorias que eu realmente havia adquirido. Vi também uma senhora nas proximidades que comentava com a filha: “Mas estava aqui agora mesmo!!!”

“Está à procura de seu carrinho de compras?” perguntei-lhe um tanto embaraçado. Com sua confirmação, expliquei-lhe o que se passara, e apanhando o carrinho certo, dirigimo-nos ao caixa para novos acertos. . .

Saí do supermercado o mais depressa que pude, não só pela ansiedade em reencetar minhas tarefas escolares, como também para fugir ao vexame das risotas do caixa, empacotador e clientes das compras que eu havia equivocadamente “checked out”, em lugar das minhas.

Creio que tudo isso se dá pela agitação da vida moderna. São sintomas do chamado “stress”, não são? Tomara que sim, do contrário pode ser doença mesmo. . .