Causo do Gibão (Do Livro Campo de Trigo Com Corvos)

GIBÃO (“CAUSO” DE ITARARÉ)

Aquele junho de mil novecentos e setenta e tanto estava friorento que só vendo. Mas nem isso arrefeceu o estupendo entusiasmo do Gibão, que tinha esse apelido, quase nome popularesco, por causa de uma "cacunda" que nasceu e cresceu nas grossas omoplatas altas lá dele, desde a tenra infância quando era adoentado, maleixo, miudinho, quando, então, os piás amigos brincavam que ele tinha era uma espécie de “trem de pouso” que guardavam suas asas invisíveis de anjo cor de mortadela de soja. Gibão botou um capote polonês do velho patriarca (que se dizia antigo primo próximo do Papa); vestuário este todo puído, tosco, antigo e desusado de velho que era - vestimenta que encontrara dependurada num prego sem cabeça, e, após virar mais um golpe de pinga Rosário do Alambique do Padre Natale Moretti, garrou pros lados ermos do Mercado-Rodoviária de Itararé. Sem ter tino de sequer pestanejar, pois que o tempo acuava e, um ventinho ruim punha amuo no relho gélido dos trancos idos e vindos de um frio lazarento, fora de ocasião, anunciando geada temporã. Num barzico perto do mercado municipal tomou depressinha meia dúzia de cervejas, fazendo rapidez no aprecio que a hora estava apurando e o filó do tempo era chegado. Depois, finalmente, embarcou na jardineira que iria para a capital paulista, distante quase quatrocentos quilômetros de Itararé, ali na rabeira com a divisa do Estado do Paraná. Fez a fuzarqueira, o "guaiú" de sempre. Um espandongo de converseira e gozação por atacado. Um forfé danado. Sapecou um bobo apelido maldoso no motorista feito um paroara em tolete de tamanho (vestido igual a um guarda-noturno de terceira categoria), aprontou depressinha pra cima de alguns conterrâneos viajantes para o mesmo trajeto intermunicipal, e, só bem depois, miando de bêbado e passado das contas, é que resolveu de conferir o bilhete da passagem para a viagem já iniciada. E foi então procurar seu bendito lugar para o acômodo esperado, com um bafo lazarento de arrepiar até cabelo de milho-pipoca. Número dezesseis, conferiu, reparando com panca. Olhou direitinho e não acreditou. Onde já se viu? A guria, sua ocasional parceira da viagem longa, era uma gostosa bonequinha de luxo, uma belezoca de ninfeta com tez de seda rósea. E ainda na casa dos dezesseis aninhos, se tanto. Olhos azuis, boca pequena em batom carmim suave e seios de pêssegos. Crendeospadre. Levou quem trouxe, disse de si para si mesmo. Gibão atiçou-se e ficou exageradamente solícito, inoportuno, jeito de porqueira no cio. No bom português, tesão por atacado. Gibão, apesar de ser boa gente, falastrão e até querido por atacado na sociedade Itarareense, não é flor que se cheire, muito menos de fritar bolinhos. Assim sendo, reinou um falso arremate de galã babaquara, e depois resolveu de apimentar o montado pique de artista de meia-tigela. Só vendo pra crer. O céu por testemunha. Cumprimentou a zinha. Fazendo charme. Fez tipo, mostrou feição de metido a besta, topete arrebitado. Parecendo uma mera imitação barata de Burt Lancaster depois de maleita dupla. Ou tudo isso piorado ainda mais. Notou que a polaca companheirinha de banco de ônibus da Viação Penha estava era preocupadíssima com o seu "caipora" bafo-de-onça. E parecia, no alumbrado etílico do momento, um filhote-de-cruz-credo com más intenções. Gibão, claro, sabido como ele só, percebeu a desdenha acintosa da guria riquinha. Azedou a polenta, o disgramado do Gibão. Desafio? Pois queria mesmo era levar a tipa no bico. Passá-la nos beiços de quase meio quilo de torresmo de anta de terceira. Sentou-se abrupto, de-vereda aprumou-se e resolveu de procurar uma mera bala "toffe" que fosse, ou mesmo uma simples bala paulistinha (de anis ou framboesa) para pelo menos "perfumar" a dentadura dupla. Achou, no capote antigo do velho genitor arigó, um negócio branquelo e redondinho de tudo, e que veio do bolso esquerdo meio com cerzido de desbotado pelo encardido uso de décadas. E começou candidamente a chupar aquilo, fazendo panca de pronto para uma atinada conversa fiada com a companheira bonita, cantando-a, norteando-se para uma pretendida paquera ocasional ou peleja de namorico em trânsito, com as ocasionais tramóias do "namoro em braile" que tudo poderia por permitir ou certamente dar de render. Sem tirar nem pôr. Nesse cismar de momento e situação, entreteu-se, cansado e bêbado, ninado pelos solavancos do coletivo na Rodovia Castelinho, entre Itararé e Itapeva. Por um capricho do destino, cabeça mole e fuça cheia de álcool, tenteou a cabeça "ervada" (os gorós etílicos) e, grosso modo, pegou no sono sem mesmo se aprumar direitinho no banco ruim. Acordou horas depois, perto de Sorocaba. São. São mas com uma ressaca desgraçada, das bravas, das feias para qualquer "boêmio" que se prestasse a tamanho exagero nas cervejas sem medida. A guria, que não era boa bisca nem nada, tinha se mandado estrategicamente e em silêncio para um banco vazio na parte detrás da jardineira, a modo de preservar-se daquele entojado (ou mesmo eventual possível estremilique do Gibão que redundasse em vômito.) Tudo era possível. Gibão, refeito do pesado sono alcoólico, procurou achar-se. Mal-acomodado em si, sentiu que desmaiara de bêbado, tinha os músculos doloridos, o estômago azedo de tudo. Procurou madurar o momento, despertar-se inteiramente em todos os sentidos vitais. Captou sentir aonde se restava, quem era, essas coisas. Pondo reparos em si e na situação como um todo, naquela altura da jornada e da noite friorenta demais. Primeiro deu pela falta da "caça" que perdera, o sem-vergonha do disgramado urdindo pelejas íntimas em trânsito.

Foi quando, aos poucos deu-se por si, sentindo se despertar plenamente, surpreendendo-se assustado em seguida, por causa de um maldito cheiro esquisito.

O quê seria aquilo? Empacou.

O instinto de sobrevivência mal-acudido, alertou-o de um medo caipora de ruim.

Alarmou-se, ficou nervoso por demais.

CHEIRO DE QUEROSENE!

QUEROSENE?

O ônibus estava vazando gasolina; sim, santo Deus, iria pegar fogo. Tinha que agir rápido. Tentaria evitar uma tragédia, deusolivre-e-guarde, matutou ainda meio sapecado de sono e álcool. Tinha tempo ainda para virar um famoso herói do bunda-mole que ali era? Precisaria avisar o conterrâneo motorista Batatinha.

Quis armar um "forfé" danado, um despertar geral - salvar vidas! Sair a manchete chique na Tribuna de Itararé do amigo João Contieri - fazer um "guaiú" dos diabos, alarmando os colegas passageiros todos, pondo-os para fora do risco ali emergente. Os passageiros que estavam sonados, tranqüilamente roncavam no bem-bom do sono e da viagem. Depois, conteve-se. Segurou o facho. Apreciou bem, sondou melhor. O cheiro ruim parecia vir de si mesmo, concluiu não entendendo, estupefato. Onde já se viu? O gosto nojento de querosene ou coisa que o valha vinha de sua própria boca. Será o impossível? Ensimesmou-se, inda muito preocupado, alerta.

Depois de muito cismar entrevado, feito uma centopéia espeloteada, com um ar maleixo de lambari defumado, finalmente – (em rápida pantomina de gestual e feição de não se acreditar) – concluiu o inédito, o Inusitado!

-Tinha chupado uma naftalina.

(FIM)

Poeta Prof. Silas Corrêa Leite, E-mail: poesilas@terra.com.br

De Itararé-SP – Autor do e-book “O Rinoceronte de Clarice”, no site

www.itarare.com.br blogue: www.portas-lapsos.zip.net

Conto do Livro “Campo de Trigo Com Corvos”, Editora Design, Santa Catarina