Morreu reclamando
Afrânio nasceu reclamando. Dizem que assim que saiu do útero, chorou como todo recém-nascido - mas o choro dele tinha um tom diferente, uma insatisfação peculiar. Se alguém tivesse traduzido, soaria como "Que tipo de hospital é esse? O serviço é péssimo, minha mãe está gritando e o médico tem mau hálito".
Cresceu assim, torcendo o nariz para tudo. O leite estava sempre quente ou frio demais. A escola era muito rígida ou muito frouxa. Os amigos nunca eram suficientemente leais, engraçados ou interessantes. Afrânio não queria só que as coisas fossem melhores, queria que fossem exatamente como ele imaginava. Como ele imaginava? Nem ele sabia.
Aos trinta, tinha um emprego que odiava, amigos que suportava e um casamento que considerava uma “instituição falida” - mas, Deus o livre ficar solteiro! Se adoecia, o médico era incompetente. Saudável, os remédios eram uma farsa. Se chovia, que tristeza, se fazia sol, onde já se viu esse calor infernal?
Se achava firme, rígido, inquebrável. Ceder era para os fracos! Adaptar-se? Jamais! O mundo que se moldasse a ele. Quando os jovens começaram a falar de coisas que ele não entendia, quando as regras sociais exigiram um mínimo de flexibilidade, Afrânio se manteve firme: "No meu tempo era melhor" - mesmo que seu tempo tenha sido a mesma sequência de reclamações.
Afrânio não queria só estar certo, ele queria que os outros reconhecessem isso. Precisava da validação constante de que sim, o mundo era um lixo e ele um gênio incompreendido. Mas as pessoas cansam. Começaram a rir pelas costas, a se afastar. Afrânio não percebeu: estava ocupado demais reclamando do preço de produtos que ele não consumia, da juventude perdida e da TV que só passava bobagem.
E então, um dia, Afrânio morreu. Reclamando.
O velório foi discreto, ninguém aguentava mais. No caixão, sua expressão parecia dizer "Era só o que me faltava". Alguns parentes fizeram comentários educados. "Sempre foi honesto", "Tinha princípios". Mas, no fundo, todos sabiam: morreu como viveu, com raiva de tudo e saudades de um passado que nunca existiu.
E assim o mundo seguiu sem Afrânio: sem a aprovação dele, como sempre foi.