DAQUI NUM SAIO...

 

 

Aconteceu numa daquelas cidades do interior do Nordeste, bem lembradas por Suassuna, onde sempre há um doido que a coloca no cenário humorístico nacional.  Não, não vou dizer o nome da cidade, em respeito principalmente ao seu ex-prefeito, "coroné Mangueira ", falecido num exato dia de Carnaval de mil novecentos e... me esqueci.  Ele ficou lembrado por ter perdido a reeleição para prefeito e, alegando fraude nas urnas, não quis largar a cadeira de prefeito:

 

"DAQUI NÃO SAIO, DAQUI NINGUÉM ME TIRA"...

 

A justiça dos homens o tirou.  Agora é a justiça de Deus, que, às vezes, não sabe o que é fraude. 

A hora do sepultamento do "coroné" foi sendo prorrogada, não por negligência dos coveiros - que já limparam e prepararam o túmulo com todo o capricho que o falecido merecia -, mas para atender a pedidos de outras "autoridades" da região, que queriam despedir-se do "amigo" solenemente. 

Já eram quase 20h00 quando o cortejo se dirigiu ao cemitério.  

Marcha lenta pela rua principal da cidade, porque a multidão, inclusive as carpideiras contratadas, se interpunham piedosamente em meio aos carros de luxo dos "doutores" que vieram de longe para disfarçar suas condolências à família e à comunidade.

Tudo correndo bem, sem Carnaval, sem folias e sem fantasias, pelo menos por enquanto.  Rei Momo também estava triste.  Ouviam-se apenas os choros das carpideiras e os sons desencontrados de contritas Aves-Marias!...

Agora:

Paremos o séquito só por um instante, que é para lembrar um pobre diabo, figura que estava faltando naquela aglomeração.  Ele sempre acompanhava todos os funerais da cidade, mas não estava ali, certamente porque já era noite.  O que estaria fazendo o pobre e solitário "Zé-doidim" àquela altura? - Estranhavam e perguntavam-se, uns aos outros, os nativos  da cidade inteira que o conheciam, até relembrando algumas de suas engraçadas e extravagantes maluquices.

 

"Zédoidim" era morador de rua, aliás, do cemitério.  O povo da cidade sabia de sua situação de rua, mas não sabia que ele costumava dormir no cemitério, um berçário mais tranquilo - achava.  Arranjara, ali mesmo no cemitério, um caixão mortuário que lhe servia de cama.  Arrastava-o, à noite, para qualquer parte entre os túmulos, posicionando-o onde lhe fosse mais confortável.   Nessa noite, achando que os portões já estavam fechados, saiu à procura do seu cantinho.  Upa!... Lá estava o túmulo onde o "coroné" seria sepuitado:  limpinho, iluminado e rodeado de flores.  Parecia um jardim.  Nem precisou pensar:  "É ali que eu vou dormir!". 

Não deu outra:  acomodou seu caixãozinho lá no fundo, deitou-se, e ainda o cobriu com a tampa, que era pra evitar muita luz na cara.  Assim que adormeceu, começou a roncar.  Roncava como um gorila, ou um bichano, ou como alguns seres humanos "vivos".  

 

Aí, lá vem chegando o féretro, já passando do largo portão.  Era exatamente ali, naquela "alcova" improvisada, que o ex-prefeito e "coroné" seria sepultado.  Curiosos se adiantavam, apressados, com o intuito de alcançar o melhor lugar para assistir à cerimônia de corpo presente.  Um dos coveiros vinha acompanhando o carrinho que transportava o esquife. O outro, com as pás no ombro, dirigiu-se ao túmulo.  Chegando lá, escutou um ronco estranho vindo dos fundos do túmulo recém-aberto.  Viu que alguma coisa estava errada.  Por que aquele caixão ali?!...  Por que os roncos?!...   Lá do alto, tocou com a pá na tampa do caixão, e o seu ocupante começou a reclamar em tom carnavalesco: 

 

"DAQUI NUM SAIO, DAQUI NINGUÉM MIM TIRA", "DAQUI NUM SAIO, DAQUI NINGUÉM MIM TIRA"...

 

O coveiro, até que não, mas os curiosos que já estavam ao redor, precipitaram-se em correria e em  gritaria por entre as covas, alguns pisando e tropeçando em montes de ossos:

 

"CORRE, CORRE, QUE O DEFUNTO ESTÁ CANTANDO!"...

 

E a notícia se espalhou rapidamente pela cidade, como uma descarga elétrica:

"O ex-prefeito, "coroné Mangueira", foi enterrado vivo!".

 

Aí, a oposição deitou e rolou:

"... Quá, quará, quá, quá"...

 

Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 04/03/2025
Reeditado em 07/03/2025
Código do texto: T8277618
Classificação de conteúdo: seguro