Auto da Epistemologia
Ato I
Numa noite tempestuosa,em um bairro de Lisboa escuro como as regiões profundas do Inferno e iluminado pelos candelabros centenários,um francês chamado René Descartes busca abrigo da chuva e dos trovões entorpecedores que rasgam o céu.
Mesmo batendo a quase todas as portas que encontrava,ninguém lhe dava abrigo,devido ao seu ar alcoólatra( e não só) .
Até que o nosso aventureiro avista uma taberna no fundo da rua, com um aspeto acolhedor,rodeada de luzes quentes e madeira aparente de Abeto Branco.
Na sua ementa estava escrito com um giz branco,quase apagado pela chuva,”Vendemos Coq au Vane”.
Como se costuma dizer,os franceses não foram lá muito bem educados, e neste caso não foi exceção.
Por isso, não perdeu tempo e enfiou-se no estabelecimento,mesmo sem ter um único tostão.
Ato II
Cena I
Convencido de que o restaurante era de origem Francesa,no cúmulo do seu ar soberbo e repleto de tremenda simpatia,Descartes,dá se a si próprio o luxo, de ultrapassar toda a fila de espera, e dirige-se diretamente ao empregado de mesa:
Descartes-Employe!-gritou com tamanha gravura na voz,que todo o restaurante ficou a saber da sua presença.
Cena II
Vem ate René,um jovem empregado por volta dos seus 20 anos,que o olha de cima a baixo como se o mesmo fosse um autêntico de um sem abrigo, e num tom ofendido lhe responde:
Empregado-Bon Jour…Em que posso ajudar?
Descartes-Quero uma mesa para Je, e o prato da casa.
O empregado levantou-se na ponta dos dedos dos pés,e olhando sobre o ombro do francês,detectou a fila que se perdia de vista por trás das suas costas.
Empregado-Lamento senhor,mas não me parece que consiga arranjar mesa tao cedo…-disse sem nunca tirar os olhos da fila.
Descartes-Eu recuso-me a esperar lá fora! Quase que dava para fazer praia na Suécia se compararmos os climas!-disse aumentando o volume novamente.
O empregado vira se para o público e diz:
Empregado-Maldita seja a hora que plantaram a Serra da Estrela tão a Norte!Aí sim eu gostava de o ver de sunga e toalha de praia!
De seguida vira-se para Descartes:
Empregado-Pois se assim é,temos uma mesa de espera no canto da sala,-olha para os pés descalços de René-isto claro,se conseguir pagar a cota de espera.
René pensou umas três vezes antes de dizer alguma coisa, e até pensou em rejeitar a proposta,mas depois lembrou se que,se foi perseguido pela Inquisição, e sobreviveu,não vai ser um restaurante que o vai fazer esticar o pernil.
Descartes-L’habit ne fait pas le moine…-susurro para si-Tudo bem vou aguardar aqui dentro-afirma com um grande ar de indiferença,como quem lhe está a fazer um favor.
Incrédulo, o empregado leva o arrogante ate á mesa,onde estavam sentados dois homens.
À direita do lugar de René,está um homem pálido,de camisa branca,que contempla a figura do novo integrante.
À esquerda, um homem com ares europeus,de roupa preta com um crucifixo ao peito,sorri para o francês.Um autentico Padre.
Entretanto senta-se, e mal o atendente vira costas para atender a mesa do lado, ele ergue o seu dedo mindinho,e tocando levemente nas costas dele,exige:
Descartes-Employe!Quero uma bouteille de vin blanc sem frappe.
Empregado-Sim senhor!
Cena III
O empregado abandona assim a mesa,deixando-o com os dois homens.
Homem de branco-Era só o que mais me faltava à mesa,um mendigo de Lisboa…Primeiro a bovina da minha mulher saltou a cerca, depois perco o emprego e por fim acabo num restaurante onde tenho de pagar para literalmente esperar sentado…-olha para o Padre-Como pode alguém acreditar que Deus existe na presença de tanto infortúnio?!
Padre-A crença é o início de todo o conhecimento.-vira-se para o René-Peço imensas desculpas pelo meu amigo…sabe, ele tem um costela de cético e cínico de vez em quando.
Descartes-Eu também já fui assim,acho que todos somos até acreditarmos no fato de que Deus existe.
O homem de branco manifesta-se com um olhar atravessado e um sorriso sarcástico,de seguida vira se para o francês
Homem de Branco-A fonte do conhecimento é a experiência, e se não consegues testemunhar que Deus existe de alguma forma, então a crença é falsa, o que invalida o conhecimento.Como acabou de ouvir, a minha mulher traiu-me ...como acha que eu descobri a traição?
Descartes-Bem se usasse a razão teria deduzido facilmente...Loin des yeux,loin du coeur.
Homem de Branco-A dedução não é certeza, por mais evidente que seja.A Razão está sempre dependente da experiência devido às suas limitações.Neste caso eu descobri que a minha mulher me traia,porque a apanhei a ir ao dentista errado.Eu ja contava com a traição?Sim!Tinha como saber que era verdade sem a devida prova experiencial?Não.Os sentidos são fulcrais para o conhecimento.
Descartes-Os sentidos podem ser enganadores,enquanto fui céticista,desenvolvi e provei essa teoria.Se nem sempre os sentidos são confiáveis,então mais vale nunca confiar neles.
Padre-Nao concordo muito com o senhor.Provavelmente nunca teve uma época natalícia como a minha,mas quando era pequeno, a minha mãe mentiu-me várias vezes acerca do Pai Natal,e do Coelhinho da Páscoa,Fada dos dentes…Apenas porque me mentiu num campo fechado de sensações e experiências,não significa que me mentiu em tudo na vida.Há que ter sensibilidade.
Descartes-A minha mãe morreu cedo,e com ela se foi a minha infância,nem todos temos o prazer de poder viver na ignorância.E aqueles que não tiveram essa comodidade são chamados de gênios.Eu sou um gênio,e o monsieur?
Padre(pensativo)-Eu sou aquilo que Deus bem entender que seja.
Faz-se silêncio na sala.
Descartes-Por falar em muita inteligência,ou neste caso,escassez dela,onde está o Employe!
Cena IV
O berro ouviu-se por toda a sala, o que obviamente chamou a atenção do empregado,que já reconhecia a voz do francês à distância,e que também tinha estado a escutar a conversa epistemológica dos 3.
Empregado-Aqui tem o vinho,quente como o pediu.E já que estou com a mão na massa,tenho que afirmar que a sua conversa tem me fascinado.-contendo um sorriso na boca,continua de forma sarcástica-Diga me “grandioso”,no sentido metafórico claro,senhor Descartes…se a experiência não é a fonte do conhecimento,e o proprio ate duvida dos seus sentidos,então,qual é a fonte?
Descartes-Uma vez que os nossos sentidos não são confiáveis,há que depositar essa confiança em algo mais seguro,a razão.A essa linha de raciocínio chamei-lhe racionalismo.
Empregado-Ok,mas de que maneira o racionalismo confronta as teses ceticistas?
Descartes-Sabemos que as crenças são justificadas por outras crenças, certo?No entanto,existem crenças que não necessitam de justificação,ou seja,são básicas e fundacionais auto justificando-se.A partir delas,vou construir um sistema de crenças, o que exige que as crenças básicas tenham de ser infalíveis.
O empregado não parecia muito convencido com a resposta,mas tendo trabalho pela frente, limitou-se a engolir o sapo.
Empregado-Bem tenho de ir andando, não posso ficar aqui por muito mais tempo mas voltarei brevemente.
Padre-Com licença jovem,nós estamos a aguardar há muito tempo por uma mesa, de certeza que ainda não há disponibilidade?
Empregado-Estamos mesmo com sérios problemas em orientar os senhores, mas estimo que daqui a uma hora haja mesa?
Descartes-Uma hora?!-levanta se da mesa revoltado e aos prantos-Celui qui a honte meurt de faim, eu vou comer nesta mesa!Já estou a pagar para me sentar e tudo!
Empregado-Creio que isso não seja possível…
Descartes-Então que o torne possível,eu não vou esperar mais uma hora!Se débrouiller!
Empregado-Assim seja.
O empregado dirige-se ao público:
Empregado-Qual foi a última vez que serviram uma dose a um meia dose?Já experienciei de tudo,mas um homem de 1,55m com o ego de 2 metros é algo fenomenal.
Dá as costas á mesa e prepara-se para se ir embora,mas…
Homem de Branco-Bem,já que tenho de compartilhar a mesa com um vagabundo,recuso me a dar me ao luxo de esperar mais-Olha para o Empregado com desprezo-Pode trazer comida para nós os dois também.
Fica a observar o cardápio por alguns momentos
Homem de Branco-Vou querer uma paleta de cordeiro assada no forno e uma cerveja artesanal.
Padre(Desconfortável)-Vou querer um para primeiro prato um ensopado de feijão e depois uma Caldeirada de Sardinha e uma garrafa de água por favor..Mas imploro meu jovem mesmo no meio de tanta confusão,faça me só o favor de trazer pão.
O empregado de mesa sorriu para o padre e foi se embora.
Cena V
Homem de Branco-Voltando ao nosso diálogo descabido,onde é que entra Deus nisto tudo?
Descartes-Dieu é fundamental na minha teoria.Ele vai sustentar todo o novo conhecimento que surge após o uso da dúvida metódica.
Homem de Branco-Então deixa-me ver se percebi,Deus sustenta a razão, e a razão sustenta Deus?Isso não é uma petição de princípio?
Descartes-Agora que penso bem nisso…creio que até seja-diz enquanto começa a dar goles da garrafa-No entanto independentemente do que possas vir a dizer,Deus tem de existir, não por vontade mas sim por necessidade.
Homem de Branco-Não estou a perceber…-diz confuso.
Descartes-Eu estou tão confiante que Deus existe,que até te consigo comprovar com dois argumentos!-diz já sobre o efeito do alcóol.
Homem de Branco-Olha que eu pagava para ver isso!Sem quaisquer sombras de dúvida,se me convencer eu pago-lhe uma jola.
Descartes olhou sisudo para o ateu e disse
Descartes-Só uma?Vais ter de fazer melhor que isso-disse enquanto desviava o olhar do homem.
Homem de Branco(revoltado)-Mas quem é que pensa que é?Eu nunca conheci um homem com tamanha capacidade de presunção!Parece que andou comigo na costura!
Descartes(bêbado e indiferente)-Couture é p`rás mulheres,a não ser claro,que seja um homem de má fama.
Homem de Branco(revoltado)-Está a afirmar que eu sou homossexual?!
Descartes(bêbado e indiferente)-Os jovens e as suas neologias…O que estou a afirmar,é que só porque o vento sopra para sul,nada o impede de navegar em direção a Norte.-Dá um gole na garrafa-Vocês é que inventaram a bolinagem não foi?
Homem de Branco(revoltado)-Pois, mas eu não ando envolvido nesses invólucros!Cá em Portugal costumamos dizer que “Quem desdenha quer comprar”, e cá para mim…Diga-se de passagem,nenhuma mulher se interessa por Alpinistas de calçada.
O Padre teve de se conter bastante para não deixar escapar o sorriso,mesmo assim,conseguiu manter a sua neutralidade.
Descartes(bêbado e indiferente)-Não me importo com o que os outros pensam ou dizem.Eu descobri a verdade absoluta,eu sou o ser exemplar que Deus extraiu da Terra após Adão.Toda a gente devia tentar ser como eu,mas so tentar.Pois ambos sabemos que eles iriam ficar só pela expectativa-termina calado por uns segundos com um sorriso ligeiro.
Padre-Por falar em verdade absoluta,tive a pensar no que disse em relação ao cogito, e lembrei me de que houve uma pessoa,chamada Nietzsche, que conseguiu argumentar contra isso.Ele afirmou que “o pensamento vem quando ele quer,não quando eu quero” ou algo do género.
Descartes-Sinceramente, á medida queo tempo passa, cada vez mais percebo o que Nicolau Maquiavel quis dizer lá com o “é impossível libertar um povo que gosta de viver em escravidão”.-diz com ar de troça enquanto gesticula com a garrafa sempre na mão-No entanto, a curiosidade está a matar me.-diz enquanto se senta melhor na cadeira-Para pessoas como vós,hereges,que já não devem existir muitas,dado á igreja suponho eu, de onde vem o conhecimento?
Homem de Branco-Empirismo.-diz com o ar mais pragmático alguma vez visto-Um homem tão genial,e desconhece o empirismo?
Descartes(diz rir á gargalhada)-Bâtir des châteaux en Espagne!
Entretanto o Empregado dirige-se à mesa para entregar a comida que tanto esperavam os clientes.
Cena VI
O empregado dirige-se à mesa e entrega o pão e o ensopado do padre,o galo de Descartes,e o cordeiro do Homem de Branco.
Empregado-Ora cá está meus senhores,mais vale tarde do que nunca.
Padre-Obrigado meu jovem
Homem de Branco-Para si é fácil falar, a trabalhar de barriguinha cheia.
Empregado-De que nos vale a todos ter a barriga cheia se a alma permanece vazia?
Homem de Branco(sem dar muita importância)-Um bom poço é aquele que tem mais ar do que água,e talvez a “sua alma” só sirva mesmo para justificar essa escassez de líquido.
Empregado(sarcástico)-Com o devido respeito senhor,há que ter uma alma muito vazia para comer um cordeiro frente a um padre,por isso acho que neste caso tem razão não é?Quer dizer, as razões são aqui mais para o lado da meia dose…
Descarte já estava tão bêbado que nem se apercebe da indireta do empregado, e limita-se a fazer um esforço para acertar com o garfo na comida,que parece estar sempre em movimento constante.
Descartes(exausto)-Employe!-olha para o lado-Ah está aqui!Finalmente tirou o curso superior em ser prestável.De qualquer forma, mande vir outro vinho igual,mas traga um mais caro, que este bate pouco-diz ao dar toques na garrafa vazia com a faca.
Empregado(confuso)-Mas…É suposto eu trazer um mais caro ou um igual?
Descartes-Cada tolo que me aparece…-murmura para si próprio- Tem sorte que estou de bom humor,e vou confiar na sua recém obtida competência,mesmo que não seja muito promissora.
Empregado-Mas senhor, a falta de nexo foi sua…Para além disso,ainda não percebi qual dos dois devo trazer.
Descartes revira os olhos e atira a garrafa vazia para as suas costas,o que resulta num monte vidros partidos espalhados por toda a sala.
Descartes-Tudo bem,já que não é capaz de fazer o seu trabalho,mande alguém vir limpar esta espelunca de chão,que já estava sujo por sinal,e leve me à sua garrafeira.
Empregado-Mas a garrafeira é do meu patrão senhor..para além disso,não está autorizado a entrar sozinho.
Descartes-Quem disse que eu ia sozinho?
Padre-Senhor,a comida vai arrefecer..
Descartes-Que se dane,eu não como sem vinho!É que nem pensar!
Ato III
Cena I
Descartes então é direcionado pelo Empregado até a garrafeira do restaurante.
Era um sítio fechado,cheio de pó,com teias de aranha por todo o lado e com um ar de abandonado.
As luzes eram poucas, o que fazia com que para se ler os nomes inseridos nas garrafas,os colaboradores tivessem que chegar muito perto das mesmas.
Assim,encontra-se Descartes e o Empregado no meio destes preparos,à procura do vinho.
Empregado-Espero que a gorjeta seja boa!Se o meu patrão descobre eu sou despedido e quem sabe…Multado!
Descartes-Sim…A gorjeta que prometi vai ser a mais bem recheada que algum employe alguma vez recebeu,tanto em França como em Portugal.
Empregado-Sabe,eu estudei sobre si na escola..Mas nunca percebi as suas ideias.Acho que alguns professores falham miseravelmente em cativar os alunos e a sua aprendizagem,e no fim, as pessoas saem de lá quase a saber o mesmo do que quando entraram.Até hoje,percebo mais de vinhos do que das leis da sua teoria…e olhe que eu nem bebo álcool!
Descartes(sem tirar os olhos dos vinhos)-Elas são bem intuitivas até…Dividem-se em quatro leis ou regras, a evidência;análise,síntese,resolução.Evidência:Não devemos aceitar uma verdade se não a reconhecermos de forma evidente.Análise:Dividir problemas complexos em problemas simples,para facilitar a sua resolução.Síntese:Ordenar os pensamentos dos mais fáceis para os mais difíceis.Enumeração:Enumerar e rever de forma geral para que não se omita nada.No fundo é isto.
Empregado-Bem se o nosso ensino não consegue explicar algo tão simples,até que ponto o simples que sabemos não terá falhas?
Descartes-Não sabemos, e isso assombrou-me por muito tempo…-olha para a prateleira do topo-Bem, acho que já encontramos o vinho predileto-diz a apontar para cima.Vou precisar da tua ajuda,como deves imaginar-aponta para as suas pernas-não lhe chego.
Empregado-De todos os vinhos,teve que escolher um que nenhum de nós os dois alcança!O que é que fazemos agora?
Ficam os dois em silêncio a olhar para a garrafa durante um bocado,virados de costas para o público
Descartes-Já sei,tu vais me abraçar pelos joelhos,e vais me fazer subir,e eu tiro o vinho!
Empregado-Tem a certeza?O senhor não me parece apto para isso…
Descartes-Cala-te e sobe-me!
O empregado,abraça os joelhos de René e fazendo força para cima fá-lo ir ao encontro da prateleira da garrafa.
Após descer com ela,René aproxima a garrafa da luz, para ler o nome do vinho predileto.
A garrafa dizia:”Romanée-Conti tinto.
Descartes(quase sem ar)-Oh sim…ESTE É DOS BONS!
Empregado-Se qualidade é sinónimo de preço,estamos a falar de quantos euros?
Descartes(ainda sem ar)-Se o seu Chefe for humilde..uns 33 950,00 euros.
O Empregado observa as roupas de Descartes e pergunta:
Empregado-E o senhor consegue pagar isso?!
Descartes olha para a plateia:
Descartes-Este tipo não é lá muito inteligente…-de volta para o empregado-Sauve qui pute!
Empregado-O que é que isso quer dizer?
Descartes-Vai descobrir daqui a bocado.
Ato IV
Cena I
Entretanto, o Homem de Branco e o Padre,ficarão a degustar da comida sentados à mesa,à espera do improvável retorno de Descartes e o seu sangue de Deus.
Homem de Branco-Ainda não acredito que aquele homem subornou o Empregado!-diz enquanto come- ainda por cima com uma gorjeta!As pessoas fazem cada coisa por dinheiro hoje em dia…
Padre-Judas fez pior por trinta moedas de prata jovem..Não temos motivo pelo qual julgar os outros, se nos espelhamos nas mesmas imperfeições.
Homem de Branco-Juro que não compreendo,aquele homem leva sempre a dele avante…Mas porque?
Padre-A vida pode ser cruel com as pessoas,tu ouviste-o assim como eu,ele perdeu cedo a mãe
Homem de Branco-O que é que isso tem a haver?
Padre-Bem..Todas as ações têm consequências,sejam elas negativas ou positivas, e o facto de que ele perdeu a mãe cedo,influenciou bastante a infância dele de forma permanente.Ele não teve ninguém que o apoiasse,pois no séc XVII os pais não eram presentes como hoje em dia,o que fez com que ele não tivesse figuras parentais algumas.Como resultado auto desenvolveu um egocentrismo como mecanismo de defesa, e mais tarde chegou ao ceticismo.Com o passar do tempo ele percebeu que se estava enganar a si próprio, e que entre bebidas e mulheres,decidiu que queria deixar a sua marca, e criou o Racionalismo.O Racionalismo nada mais é do que um resultado de uma criança sem mãe,sem pai, e sem amor próprio,que tudo que queria era ser amada e nunca o obteve, o que resultou num bêbado compulsivo que se muda com frequência,e com problemas de hipotermia.
Homem de Branco-Não tinha pensado dessa maneira…
Padre-Não te julgo irmão,todos nós somos iguais aos olhos de Deus,mas vemo-nos como diferentes,pois a única coisa que estes olhos observam é a casca e não o verdadeiro fruto.
Homem de Branco-Eu tentei tantas vezes expor o meu ponto de vista,mas parece que ele simplesmente não queria ouvir!
Padre-Após tanto tempo,a única coisa que lhe resta é a razão, se ele perder isso,deixará de ser ele próprio.Mas de qualquer forma,podes explicar-me o que é esse tal de empirismo,para evitarmos futuras discussões e comermos em paz.
Enquanto o Homem fala,o padre come o ensopado.
Homem de Branco-O Empirismo é um contraste ao Racionalismo,onde há a crença de que o conhecimento provém da experiencia.No entanto,não deixa de existir o conhecimento á priori,através das relações de ideias.Defendemos a existência de ideias,que são criadas na nossa mente á priori,e impressões,que são vividas(posteriori) .Isto é possível,pois John Locke,defendia que todos nascemos tábuas rasas,que se vão moldando consoante a experiência.Claro que tudo isto vai trazer complicações,como o problema da indução.
O Padre pára de comer por uns segundos e pergunta:
Padre-E o que é isso de problema da indução?
Homem de Branco-Tudo se deve devido ao hábito.O nosso conhecimento de causa e efeito aparenta ter uma conexão necessária,mas inexplicável.Por exemplo,possuímos o hábito que o gelo derrete com o calor,e alguém que tenha esse conhecimento acredita de facto que sempre que um cubo de gelo se deparar com uma temperatura alta,derreterá.No entanto não há quaisquer certezas de que o gelo vai derreter da próxima vez…o que torna o hábito irracional.Logo se não o podemos comprovar induzimos que ele vai derreter,na esperança de que aconteça.Essa indução vai ser explicada pelo PUN,princípio da uniformização da Natureza.Mas infelizmente Hume falha na tentativa de justificar a indução,caindo numa petição de princípio,ou seja,voltas infinitas em que a indução justifica a PUN,e a PUN justifica a razão,uma autêntica falácia,pois agora nenhuma tem justificação.
Padre-Tudo isto para concluirmos que ninguém sabe de onde surgiu o conhecimento,e que nenhuma das teorias é sólida de facto…Bem,não nos vale de nada lamentar,se não o sabemos,é porque Deus não quer que saibamos,vá coma,que o corpo do cordeiro já sofreu que chegue nas nossas mãos vis.Mas sabe ,não precisamos de saber de onde vem ou o que é,se tivermos fé em Deus,o Senhor tem tudo no sítio.
Homem de Branco-Ainda estou curioso acerca do assunto da existência de Deus-diz enquanto come-Descartes não chegou a explicar.
Padre-Não deixe cair muito cabelo que eu explico-lhe!Existem dois principais argumentos: O argumento da marca impressa, e o ontológico.No argumento da marca,descartesd afirma que,nós não temos como saber o que é perfeição,se alguém não a puser na nossa cabeça,pois se não somos perfeitos,como vamos saber o que é a perfeição?E ontológico,é mais simples ainda,Deus tem de existir para ser perfeito,pois não existir é uma imperfeição.
O Empirista fica chocado com tal informação,e entre cordeiro e falta de palavras na boa,limita-se a acenar a cabeça,como sinal de aceitação das ideias.
Homem de Branco-São melhores do que julgava…-perplexo com o garfo na mão-talvez eu não esteja tão certo como julgava…
Entretanto,passa um empregado diferente,que levanta o prato do Padre,e lhe deixa o ensopado. Mas de repente,quando o Padre abre a primeira sardinha,desata-se a chorar.
Padre-Olha só para ti,pobre criatura..O que te fizeram?Pensaste que podias viver uma vida inteira a usufruir dos pequenos,e a escapar das redes da razão,que Deus bem que lançava..Tudo para no fim,terminares no meu prato.-diz enquanto abre o peixe ao meio-E agora,Deus tirou a tua alma, e abandonou o teu corpo na Terra,mas como castigo,deivdo a não teres tido coração em vida, o grande Senhor,cujo o nome está escrito no céu estrelado, e nos grãos de areia dos mais vastos desertos,ordenou que Azrael,te tirasse tudo o que te mantinha vivo, o coração…
Deixa cair mais uma lágrima em cima do peixe,e sem nunca desviar o olhar,agarra no frasco de sal,á sua direita e olha para o Homem de Branco.
Padre-”Vós sois o sal da terra”.
Cena II
Ninguém teve muito tempo para se comover,pois,Descartes chega logo de seguida acompanhado do empregado,e claro,também do vinho.Descartes não perde tempo e atira-se ao empirista.
Descartes-O que é que fizestes ao santo do Padre,para ele estar a chorar desta maneira?!
Empregado-Não me diga que isso é um pão de Judas-diz a rir-se descaradamente.
Homem de Branco-Longa história,o que importa,é que o Padre convenceu-me,e eu vou batizar-me semana que vem…Por consequência,parece que lhe devo,não uma,mas sim duas garrafas de vinho.
Descartes-Je ne peux pas croire ce que je entend?Batizar?
Empregado-Está para cair um Padre da cadeira!E talvez também dois bancos lisboetas,se forem garrafas daquelas-diz a apontar para a garrafa que o francês tem na mão.
Homem de Branco-A mim pouca me interessa o seu valor,vou me redimir dos meus feitos passados,e por não acreditar na existência do meu Senhor,não só pago as desgraças das garrafas mas também pago o jantar de toda a gente!
Ora,Descartes sorriu da ponta de uma orelha à outra!Isto sim era uma obra divina!Nada mais queria ele ouvir naquela noite.
Descartes-Eu bem vos disse!-exclama ao colocar o pé descalço em cima da cadeira vazia onde se iria sentar-Passei o tempo a alfinetar-vos e ninguém me notou!Eu sou um messias!
Empregado-Um messias bêbado…
Descartes olha-lhe de lado pelo canto do olho e sem nunca o deixar de fintar prossegue.
Descartes-Bêbado não,mas sim afogado pelo sangue de Deus…De qualquer forma,ainda assim,um messias!
Empregado-Vá, escreve lá uma Bíblia, que se fores tu a fazê-lo eu até leio.
Já se preparava o filósofo francês para partir a garrafa na cabeça do empregado,mas entretanto,começou a sentir o cheiro peculiar do galo.Sem perder tempo,senta-se à mesa,e começa a come-lo com as mãos.
O Homem de branco olha para aquela atitude e dirigindo-se ao Padre diz:
Homem de Branco-Não deveríamos impedi-lo?
Padre-Deixa-o estar e aproveitar a refeição.
E assim comeram todos,cada um á sua maneira,e se encerrou a discussão epistemológica,à base do apetite.
FIM