As cores do crime
Casquinha foi visitar um amigo moribundo no Morro da Bola Murcha quando um elemento armado chegou de mansinho.
- O comandante não mora aqui, certo?
- Eu nunca vim aqui.
- Qual o motivo da vinda?
- Tenho um amigo que está nas últimas. Quero dar um abraço nele.
- Onde mora o cidadão?
- Eu? Miami.
- O outro cidadão. O presunto.
- Ele não morreu.
- Mas tá quase, positivo?
- Não vamos nos precipitar. Ele mora na Viela do Adeus, número 12.
- Zé Ardido, irmão do Tico Escanteio?
- O próprio.
- Conheço a peça. Ele assiste o Bom Dia Brasil com um copo de pinga. Não há fígado que aguente.
- Pois é. Bom, posso ir?
- Pode não. O ilustre visitante tá com essa vistosa camisa azulada. E essa é a cor da facção rival: Sentinela Azul. Não posso permitir que você entre nesse estado.
- O que eu faço? Tiro a camisa?
- Vá ao shopping e compre uma de outra cor.
- Que shopping? O mais perto daqui fica a 20km.
- Ordens são ordens. E eu tenho o fuzil.
- Mas...
- Mete o pé, mané.
Não dá para discutir com um sujeito que diz "eu tenho o fuzil". Indignado, Casquinha só retornou três dias depois, vestindo uma camisa amarela. Se o leitor pensa que não houve abordagem, está errado.
- Ô rapá! Para aí! - disse um magricelo carregando, ou sendo carregado, por uma bazuca - Vai pra onde?
- Eu? Viela do Adeus, número 12.
- Para entrar, tem que tirar essa camisa.
- Isso é um assalto?
- Tá me chamando de assaltante?
- Você está armado e me abordou com certa pompa criminosa na fala. Não pareceu ser vendedor de pano de chão.
- Tô falando que tu não pode entrar por causa da camisa amarela! Essa é a cor da facção rival!
- Mas anteontem era azul!
- Era. Tá vendo a faixa não? "Sobre nova direção: Sentinela Azul". Invadimos o morro ontem.
- Mas o certo é "sob nova direção".
- Sobre, sob, sub, sobe, sobra, saibro, sabre, dá na mesma! E você não vai entrar!
Na semana seguinte, só mudou a cor.
- Tá doidão? Ninguém usa camisa verde por aqui!
- Antes era azul e amarelo!
- Era faz parte do verbo "erro". Quem manda agora é nóis do Ministério Laranja!
Quatro dias depois...
- Ei, ei! Parado aí! Tu não tem medo de morrer? Entrar aqui vestindo lilás? Tem respeito por nóis, não?
- Nunca vi um morro tão disputado...
Dois dias se passaram e o insistente cidadão retornou para ver o amigo. Desta vez, vestindo uma cor básica: preto. E mais uma vez, sua passagem foi interrompida.
- Ô coroa! Posso saber...
- Vai plantar batatas! Vai procurar a sua turma! Vai arrumar o que fazer! Vai catar coquinho! Vai ver se estou na China!
- Perdeu o juízo, aposentado?
- Perdi! Estou de saco cheio! Essa é a 386ª vez que venho aqui para ver um amigo mas sou barrado por vocês! É facção pra lá, facção pra cá, facção na diagonal, facção na paralela! E quer saber: agora, não vou desistir! Se quiser atirar, fique à vontade! Será ridículo pra sua carreira criminal matar alguém por causa da porcaria de uma camisa preta!
- Calma, coroa! Eu só quero saber pra onde tu vai.
- Viela do Adeus, número 12! Tem que ter greencard?
- Ah, é a casa do...
- Zé Ardido, pudim de cana, bebum, bafo de pinga, cachaceiro! Meu amigo, ouviu? Meu amigo!! E sabe porque estou de preto?
- Sei, sim. Ele morreu em casa há duas horas.