Na ilha
Nosso avião, modo de dizer, voava sobre o Atlântico.
Meu assento era do lado da janela.
Não cheguei a conversar com o passageiro da poltrona vizinha.
Parecia ter a mesma idade que eu, uns quarenta anos, por aí.
O tempo passava devagar, senti sono e dormi.
Era madrugada já e, de repente, acordei assustado.
Meu vizinho estava mordendo a minha mão direita.
Como um canibal, desses dos filmes.
Porque nunca vi nenhum de verdade, claro.
Não deu tempo para perguntar o que era aquilo.
Esse negócio de ele estar mordendo minha mão.
Pois o avião sofreu uma pane e despencou lá de cima.
Sobrevivi ao susto da mordida do suposto canibal e também à queda.
Quebrei a janela e consegui escapar antes que o avião submergisse.
Tudo foi rápido demais: agi instintivamente.
Consegui me salvar porque sempre pratiquei natação.
Mas nem precisei nadar muito então.
Logo fui recolhido por um barco pesqueiro.
Eram pescadores da Ilha da Madeira.
Recebi os primeiros socorros no barco mesmo.
Um dos pescadores também era enfermeiro nas horas vagas.
Difícil foi suportar o cheiro de bacalhau durante esse tempo.
No hospital em Funchal recebi mais cuidados médicos.
Concluíram que parecia estar tudo bem comigo.
Que eu estaria apenas abalado mentalmente.
E isso era bastante normal por conta do trauma sofrido, disseram.
Trataram da minha mão como se eu tivesse me ferido no acidente.
Nada falei do meu vizinho de assento.
Mesmo estando bem fiquei internado por mais algum tempo.
Dias depois veio a terrível notícia.
Eu era o único passageiro que havia escapado com vida.
Tampouco os tripulantes sobreviveram.
Mais algum tempo se passou.
Minhas reservas monetárias estavam acabando.
Minha história já não tinha mais tanto interesse para a imprensa.
Eu não tinha família, então resolvi permanecer na ilha.
Mas tinha de me sustentar, arranjar um trabalho.
Então aceitei o emprego de coveiro no cemitério local.
Que ninguém da ilha queria aceitar.
Substituiria um funcionário que havia se aposentado recentemente.
Era o emprego que eu sonhava para mim.
Não via a hora de violar o meu primeiro cadáver português.
Apreciaria muito se fosse uma donzela.
Já antecipava a delícia de devorar um jovem coração.
Deitado sobre um túmulo uivei de prazer feito um lobo de estepe.
A lua imensa, tingida de vermelho, brilhava inteira no céu.
Iluminava minha face pálida... e eu sorria.