Jerry Bocchio e o Rapto de Batz – Capítulo III: Saindo da Rota

Depois de ouvirmos – e ignorarmos – o sermão do Capitão Lester Gregade, Tom e eu fomos até a nossa viatura dar início à nossa ronda. Nossa intenção era sair um pouquinho, pouquinho mesmo, da rota para passar no Parque Campos Rosados conversar com o tal do Seu Elias.

Nossas perguntas para ele seriam simples: O que ele viu? Por que não chamou a polícia? E, principalmente, por que ele não acudiu o menino e deixou que ele fosse sozinho para a delegacia? Afinal, ele tinha combinado com a mãe dele de olhar o menino, segundo a própria.

Quando Tom e eu chegamos ao parque, já fomos procurar pela guarita. A guarita ficava exatamente onde Daniel falou, do lado da quadra poliesportiva do parque. Uma coisa me chamou a atenção: Nós chegamos mais ou menos no mesmo horário que aconteceu o roubo do cachorro. Só que tinham algumas pessoas fazendo cooper, caminhada, tinha até gente jogando futebol na quadra. Como ninguém reparou no que aconteceu? Será que esse dia, ou o dia anterior, era um dia anormal?

Chegamos na guarita. A guarita não é como aquelas que ficam nas ruas por aí, um mero cilindro de metal, que mais parece um banheiro químico com uma portinha. Não, era uma guarita até que grande, cabiam umas quatro pessoas lá dentro. Tinha uma mesinha acoplada em uma das paredes com um monitor mostrando imagens de uma câmera de segurança. Tinha também uma televisão pequena, uma cafeteira... Olha, eu entendi porque esse Seu Elias trocou a escola por lá.

Estava lá um homem de meia idade, usando só uma camisa polo cor de vinho e uma calça jeans – ou seja, não era o uniforme – estava sentado assistindo a televisão quando chegamos. Eu já pus o pé na guarita e falei:

– Senhor Elias Santana?

O homem quase caiu da cadeira com o susto que levou. Então ele respondeu:

– Sim, sou eu... É... É que é meu horário de almoço.

– Não é sobre isso que nós viemos falar. Nós queremos saber o que o senhor viu ontem.

– Ontem? Como assim?

Como assim "como assim"? Me pareceu na hora que ele não sabia o que aconteceu. E, pelo visto, para Tom também, pois ele já foi perguntando:

– O senhor estava trabalhando na guarita por volta deste horário ontem, senhor Elias?

– É... Siiiim!

O Seu Elias estava totalmente intimidado com a nossa presença. E, claramente, estava tentando nos enganar. Então eu resolvi colocar as cartas na mesa:

– Olha, não precisa tentar nos enganar senhor Elias. O que aconteceu ontem aqui foi que um menino foi atacado por dois homens e teve seu cachorro roubado. O nome Daniel Caezário lhe é familiar?

O Seu Elias esbugalhou os olhos trocando a feição de medo para feição de preocupação:

– O Daniel foi atacado? Como ele está?

– Ele está fisicamente bem agora. O problema é que logo após o ataque e o roubo do cachorro, ele foi à delegacia sozinho com feridas no corpo.

Após a minha fala, Seu Elias pôs a mão na testa, fazendo um rosto de agoniado. Aquele gesto assumia algum tipo de culpa. Então, Tom perguntou de novo:

– Senhor Elias Santana, vou repetir a pergunta: o senhor estava aqui na hora que aconteceu essa ocorrência?

– OK, OK! Eu não estava aqui nessa hora. Eu fui ao mercado comprar umas besteiras.

– Você tem autorização pra sair a hora que quiser, é?

– É... Não! Mas aqui nunca acontece nada. É um bairro nobre no meio da tarde. Quem ia ser doido de fazer algo aqui? Ainda mais que esse parque é cheio de câmeras de segurança.

– Você não só não cumpre com o seu trabalho como também não cumpre com a palavra que deu para a mãe do menino...

Enquanto Tom ia dando esse esporro no Seu Elias, eu me toquei das câmeras de segurança e vi o monitor em uma das mesas. Então eu interrompi Tom e perguntei:

– Escuta, Elias, você consegue as gravações dessas câmeras?

– Sim. Eu só preciso do mandado pra solicitar pra empresa.

Aí ferrou. Como que íamos pedir um mandado na delegacia sendo que estávamos investigando isso por fora? E o Capitão ainda nos deu ordens expressas pra não investigar. Tom e eu logo nos calamos e nos olhamos, preocupados. Seu Elias, vendo o silêncio, perguntou:

– É só vocês ligarem na delegacia. Façam isso aí e eu já solicito.

Tom e eu continuamos sem falar. Eu não sei no que ele estava pensando na hora, mas eu queria inventar uma desculpa pra pedir a gravação. Então eu acabei falando:

– Aaaah! Só tem esse jeito mesmo, né?

– Pra eu passar pra terceiros, sim. Vocês também trabalham pro governo, sabem como é esse negócio de burocracia.

– Tá certo, deixa eu pegar meu celular aqui então.

Eu enrolei pra pegar o celular e pra ir digitando. Eu queria pensar em algo pra driblar essa situação sem ter que sair de lá. Seu Elias logo desconfiou:

– Vocês dois são policiais mesmo ou são detetives particulares?

Tom respondeu automaticamente:

– Somos policiais! Aqui o distintivo.

– Estranho! Por que essa demora pra ligar para a delegacia então? Pensando bem, se o Daniel está bem, por que a investigação do roubo do cachorro?

Aí foi a minha vez de falar automaticamente:

– Quanta insensibilidade! E estranho é você! Fica aí cabulando o trabalho e agora vem falar de burocracia?

– "Cabulando o trabalho"?

– É, isso mesmo!

Seu Elias se recostou em sua cadeira giratória e cruzou os braços, de um modo mais malicioso:

– Ah, acho que eu tô entendendo! Vocês estão investigando sem a autorização do seu superior, não é?

Que saco! Será que ele já passou por isso antes pra matar a charada desse jeito?

– Se preocupa não, se preocupa não! Eu posso pedir as gravações pra ver aqui na guarita com vocês. Afinal, eu também me preocupo com o Daniel. Só quero uma condição: Nada de me delatarem pro meu chefe!

Tom e eu nos olhamos de novo. Não tinhamos pra onde correr, afinal, também estávamos desobedecendo ordens. Acabamos aceitando as condições. Se o Capitão Gregade ficasse sabendo...

Seu Elias virou a cadeira giratória, pegou o telefone e disse:

– Beleza! Me passem o local e o horário pra eu pedir. Enquanto isso, podem se sentar aí e pegar um café e umas bolachas. Vai demorar mais ou menos uma hora e meia pra ficar disponível. Enquanto isso a gente vai batendo um papo nesse lugar monótono. Mi casa és su casa.

Uma hora e meia? Nós iríamos ficar uma hora e meia a mais fora da nossa rota! Durante a espera, Seu Elias ficava puxando assunto com a gente, falando de futebol, de política e de como os jovens não respeitam as tradições. Tom e eu ficávamos apenas dando algumas respostas aqui e acolá, pois nossa preocupação maior era com o tempo de espera na guarita. A torcida para que não acontecesse nada nunca foi tão grande.

Depois desse tempo todo, Seu Elias recebeu a ligação dizendo que estava disponível. Ele colocou no monitor e nos chamou para ver. Minha intenção na hora era ver se os dois homens que atacaram Daniel cometeram algum erro que ajudasse a revelar sua identidade.

O vídeo mostrava Daniel chegando com Batz, seu cachorro, para brincar. Daniel estava vestido do mesmo jeito que apareceu na delegacia naquele dia. Ele ficava brincando com Batz até que, por algum motivo, Batz começou a ficar muito agitado, latindo e abanando o rabo para a direção da saída do parque. Quando Batz deu a entender que ia correr, Daniel percebeu e segurou sua coleira. Depois de muito esforço, Daniel conseguiu amarrar a coleira num dos postes de iluminação do parque.

Foi então que os dois sujeitos apareceram em cena. Ambos encapuzados e com roupas furtivas pretas. O grandão estava com uma peça de carne na mão direita, explicando, talvez, a agitação do cachorro. Além disso, mostrando que eles foram lá justamente pra roubar o cachorro.

Daniel se pôs na frente, mas o grandão jogou a carne longe e empurrou Daniel para frente, fazendo ele cair de costas no chão. O outro puxou uma katana, cortou a corrente que prendia Batz e levou ele embora. O grandão correu atrás. Daniel ficou caído no chão até que uma senhora, que fazia caminhada, o acudiu e o levou para fora da área de gravação. Fim de cena.

Eu, sinceramente, não entendia porque isso não era caso de polícia. Embora o roubo não tivesse a tal "materialidade" que o Capitão tanto se referia, o modo como ele foi feito foi brutal. Um deles agrediu uma criança, empurrando ela pra longe e o outro levou uma katana. Uma katana! Pra quê alguém levaria uma katana pra isso? A não ser que fosse um lunático.

Foi então que eu me dei conta e falei para Tom:

– Tom, você percebeu que o cara usou uma katana pra cortar a corrente, né?

– Sim, mais um ponto pra sua suspeita. Vamos atrás também daquela peça de carne que o outro jogou pra longe. Vai que tem alguma coisa nela.

Tom lembrou outro ponto importante do vídeo. Também teve a senhora que acudiu Daniel, mas para identificar quem era, precisaríamos do vídeo, e consequentemente, do mandado. Então fomos torcendo pra ser o suficiente.

Nós três saímos da guarita para procurar a peça de carne. Tom, Seu Elias e eu. Não pedimos para Seu Elias ajudar, mas ele já se considerava nosso amigo. Esses trabalhos onde a pessoa fica isolada devem deixar muito carente.

Fomos procurar em um lugar aproximado de onde o grandão teria jogado a carne. Não demorou muito e achamos ela jogada no meio de um canteiro de flores. Tom abriu o saco de evidências e eu coloquei a carne lá dentro, depois de calçar minhas luvas, claro. Era uma peça de contrafilé com a capa de gordura aparada. Estranho, foi preparada justamente pra isso?

Enfim, nos despedimos do Seu Elias e voltamos à nossa viatura para terminar a ronda. Iríamos chegar atrasados na delegacia, então seria bom combinarmos uma desculpa menos esfarrapada possível. O Capitão Lester Gregade é muito bom em pegar mentiras.

Só que, por algum motivo, eu estava empolgado com esse caso. Nós simplesmente interrogamos uma pessoa e coletamos uma prova, sem formulário nenhum. Sem dar satisfação, sem protocolo...

Tom, por outro lado, estava nervoso. O rosto de apreensão dele enquanto dirigia demonstrava que descumprir ordens diretas do Capitão Gregade era um desafio.

Porém, nós dois tínhamos um objetivo em comum: nós tínhamos que resgatar Batz.

Continua...