Jerry Bocchio e o Rapto de Batz – Capítulo II: Tem Algo Estranho Aí
Então, lá estávamos nós, Tom e eu, na portaria do prédio onde morava Daniel, aguardando a mãe dele, Elisângela Caezário, aparecer. Um prédio até que bonito, num bairro de classe média da cidade. Estávamos fazendo aquilo sem que o Capitão Lester Gregade soubesse. Afinal, o Capitão não achava que um caso de um rapto de um cachorro não tinha "materialidade" (ou seja, importância) suficiente para mover uma investigação.
Elisângela apareceu na portaria e já ficou com uma cara de desconfiada assim que nos viu. Eu tentei dar um sorriso pra dizer que estávamos querendo ajudar, mas a situação deixou o sorriso meio amarelo. Elisângela chegou perto de nós dois e já falou:
– Policiais, vocês estão investigando o sequestro do Batz?
Tom e eu nos entreolhamos. Tom ainda estava sem jeito. Eu respirei fundo e decidi ser franco:
– Então... – Eu e minha mania de começar as frases com "então" – Na verdade... Nós estamos meio que fazendo isso por conta própria hehehe.
– Por conta própria? Quer dizer que isso não é oficial?
Tom já falou tentando tranquilizá-la:
– Não, mas a nossa intenção é que se torne oficial. A gente viu alguns detalhes curiosos no depoimento de Daniel e viemos pegar mais alguns detalhes, só isso.
Um pouco ressabiada, Elisângela pegou o celular e conversou com o marido. Ela tentou falar baixo, mas, como a minha audição é espetacular, eu consegui ouvir tudo. Ela disse que se nós três não chegássemos em dez minutos sem explicação, que era pra ele trancar as portas e chamar a polícia. Eu, sinceramente, entendo o lado dela. Se dois policiais falassem algo do tipo pra mim, eu também faria o mesmo, quer dizer, se eu fosse casado, né? Ah, você entendeu!
Elisângela não quis subir de elevador conosco, fomos pelas escadas. Não liguei, é bom pra fazer exercício. No caminho ela foi dizendo que Daniel ainda estava muito abatido com o ocorrido e que, se não fôssemos amáveis, ela iria nos pôr pra fora. Se tivesse um detetive metido a durão lá, com certeza estaríamos ferrados.
Paramos no terceiro andar. Até que foi de boa. Pra quem costuma ir para as estações Pinheiros ou Vila Prudente do Metrô de São Paulo, isso aí não é nada. A não ser que seja uma daquelas pessoas que ficam paradas em todos os lances das escadas rolantes, eu, sinceramente, não tenho paciência. Escadas rolantes, pra ficar parado, só em shopping, ou se a pessoa tiver problema de locomoção, lógico. E aquela estação Paulista então? É tanta caminhada pra fazer baldeação, que eles até colocaram esteiras rolantes. Sim, esteiras rolantes! E tem gente que fica parada. E ocupando o lado esquerdo ainda, que raiva! Ah, é! Deixa eu voltar pra história.
Chegamos ao apartamento 32, onde a família de Daniel morava. Elisângela entrou e segurou a porta para nós entrarmos. Assim que passamos pela porta, nós deparamos com o pai de Daniel, Haroldo Caezário, forçando uma cara de durão. Haroldo é um bancário, daqueles que ficam nas mesas de atendimento quando alguém tem um problema com a conta. Geralmente, Tom e eu gostávamos de tirar uma de quem tinha essa atitude com a gente, mas como essa era uma situação onde a gente não podia errar, ficamos quietos. Quem falou por nós foi a Elisângela:
– Querido, não precisa disso não! Chama o Dany lá pra falar com a gente.
Haroldo, ainda tentando manter a imagem, falou com uma voz meio áspera:
– Tá bom, mas quero respeito na minha casa!
É meio besta, mas tiro o meu chapéu pra criatividade dele. Geralmente, esse tipo tenta fazer uma voz grossa, a mais grossa que consegue, pra tentar intimidar a gente. Ele apostou na voz áspera. Mais ou menos como o Batman fala nos filmes do DCEU. Deu um tom sombrio. Foi fora da caixinha.
Haroldo voltou com Daniel. De fato, Daniel parecia bem abatido. Perder o bicho de estimação é um baque enorme, ainda mais pra uma criança. Daniel estava sem a fantasia. Pra mim, era uma boa hora para falar com ele, já que ele não estava mais no mundo de super-herói dele. Quer dizer, não sei bem como é, mas me parecia uma boa hora.
Daniel se sentou no sofá. Como ele não levantava muito a cabeça, escolhemos nos ajoelhar na frente dele. Então, Daniel perguntou:
– Vocês ainda não acharam o Batz, né?
Tom e eu nos entreolhamos de novo. Mais uma vez, eu respirei fundo e falei:
– Ainda não, Daniel. Mas estamos procurando. Só precisamos que... Você nos... Fale mais algumas coisas do que aconteceu.
Essas minhas pausas foram para procurar palavras que não fossem jargões de investigadores. Afinal, nós estávamos falando com uma criança.
Elisângela já interrompeu, irritada:
– Vocês vão pedir pra ele falar tudo de novo? Ele já disse até a placa do carro!
Tom respondeu a ela:
– Então, senhora. É que a gente precisa de alguns outros detalhes pra saber onde começar a procurar. Além disso, a placa do carro informada não consta no sistema do Departamento de Trânsito.
Foi a vez de Haroldo interromper, agora com sua voz normal:
– Vocês procuraram a placa?
Que pergunta estranha! Foi o que Tom havia acabado de dizer. Eu respondi:
– Sim, ué! Quando a gente não acha, é porque pode ter havido uma confusão ou a placa pode ter sido adulterada.
Daniel gritou, irritado:
– Eu não confundi nada!
– Tá bom! Tá bom, Daniel! Eu acredito em você. Só fala pra gente algumas coisas. Por exemplo, em qual parte do parque você estava quando os dois sujeitos apareceram?
Elisângela não gostou da pergunta, mas Daniel respondeu:
– Onde eu sempre fico quando estou sozinho lá. Do lado da quadra, atrás da guarita.
– Atrás da guarita? Quer dizer que tinha vigia lá?
Elisângela respondeu essa pergunta:
– A gente conhece o vigia que trabalha naquele horário. Ele trabalhava na escola onde dou aula. Eu peço pro Daniel brincar lá naquele pedaço pra ficar mais fácil para o Seu Elias olhar ele.
– Me desculpe a intromissão, senhora Elisângela, mas por que o Seu Elias saiu da escola? Ele foi demitido?
– Ele foi transferido para esse parque. Ele pediu a transferência por que lá é menos agitado.
Anotei na hora que seria bom conversar com esse Seu Elias.
– Certo, Daniel! Você lembra se os homens estavam com máscara ou encapuzados?
– Eles estavam todos de preto, com capuz. Um deles parecia o Fanático e o outro parecia o Mercenário.
– Fanático e Mercenário são vilões da Marvel?
– É lógico, policial! Você não lê quadrinhos?
– É, eu tenho que melhorar nesse aspecto.
– Você deveria ler! Ia te ensinar a pegar bandidos de um jeito melhor.
– OK, obrigado pela dica! Quando você diz que eles pareciam os dois, você diz só na forma física? Digo... No tamanho?
– Não! Eles também eram maus! Igual aos vilões. Só o que parecia o Fanático parecia um russo falando. O Fanático não é russo. E o que parecia o Mercenário parecia um francês falando. O Mercenário não é francês.
Opa! Um parecia um russo e o outro um francês falando? Isso já é uma coisa. E não venha me falar que é uma criança, pode confundir as coisas e pi-pi-pi-pó-pó-pó. Existem crianças inteligentes, podia ser o caso dele. Anotei que precisava pesquisar quem eram Fanático e Mercenário. E que também eu deveria conhecer mais sobre quadrinhos pra falar com ele, já que esse parecia ser o parâmetro dele.
Aquilo era tudo o que conseguimos dele. Saímos do apartamento e Elisângela foi nos acompanhando até a portaria. Mais uma vez pelas escadas. Tom aproveitou para perguntar mais algo:
– Senhora Elisângela, agora que terminamos com o menino, poderia responder só mais umas perguntas?
– Depende de quais. Lembrem-se de que isso não é oficial.
– Vocês receberam algum pedido de resgate pelo cachorro?
– Não! Senão já teríamos pago ou avisado a polícia, pelo menos.
– Certo! O cachorro incomodava algum vizinho, ou colega por aí?
– Bom, a síndica não gosta dele. Se bem que aquela mulher não gosta de nada. Por isso que eu achava melhor o Daniel brincar com o Batz no parque.
– A senhora acha que ela seria capaz de dar fim no cachorro?
– Do jeito que ela é, não duvido.
– Pode falar quem ela é?
– É a Dona Iolanda que mora no 44. Eu não acho certo falar, mas, se foi ela, ela merece.
Mais uma coisa anotada: conversar com a síndica, Dona Iolanda.
Muito bem, agora tínhamos um ponto de partida. No dia seguinte, era o nosso dia, na escala, de fazer as rondas na região. Então, nós combinamos de ir até o Parque Campos Rosados para conversar com o Seu Elias.
Só que antes de nós sairmos, eu resolvi pesquisar quem são os dois personagens que Daniel disse que se pareciam com os ladrões: Mercenário e Fanático. Eu vou falar aqui rapidamente porque, né? Vai que tem alguém da Marvel lendo? Aí eu sou acordado por advogados.
Fanático é um vilão muito grande, que veste uma armadura que parece um projétil, achei feio pra caramba. O poder dele é uma força além do normal e parece que, quando ele corre, ninguém consegue parar. Talvez seja por isso que a armadura dele pareça um projétil, acho que eu entendi a intenção. Mercenário é outro vilão que tem um tamanho... normal, digamos assim. O poder dele é ter uma pontaria perfeita. Tanto é que a roupa dele tem um alvo desenhado na testa. Também achei feio. Mas, né? São vilões. Aparência não deve ser uma prioridade. Aliás, acho que nem pra heróis também.
Enfim, as imagens deles me lembrou de uma dupla muito conhecida da Polícia. Só que eles eram ligados a contrabando e tráfico de drogas. Chamei o Tom para mostrar. Tom olhou as fotos dos vilões e me perguntou:
– Tá! E aí? O que você quer dizer?
– Tom, você não acha que esses dois não estão lembrando o Tampinha e o Samurai?
– É, sim. Mas não acho que seriam eles nesse caso. Eles mexem com algo muito maior. Além disso, não esqueça que Daniel é uma criança ainda, talvez ele distorça algumas coisas.
– Todo mundo distorce coisas, Tom, independente da idade. Isso foi uma coisa que eu aprendi aqui. Além disso, Daniel disse que eles pareciam um russo e um francês falando, lembra? Seria referente aos sotaques dos dois.
– Sei não, Jerry. Por que eles fariam isso?
Tampinha e Samurai eram uma dupla de contrabandistas. Alexis Savalovic, o Tampinha, seria o cara que se parece com o Fanático, ele era um imigrante russo. Jean Pierre Mastilho, o Samurai, seria o cara que se parece com o Mercenário, ele era um imigrante francês. Ambos ilegais. Os dois vieram ao Brasil comandar um grupo de criminosos em nome de um traficante internacional conhecido apenas como "The Gamer".
Podia ser que Tom tivesse razão? Sim! Mas eu não sou do tipo que descarta hipóteses assim. Além do que, eu não conhecia nenhuma outra dupla de criminosos com essas características. A não ser que fosse alguém novo nesse "mercado", claro.
Do nada, ouvi a voz do Capitão Gregade falando atrás de nós dois:
– O Mercenário e o Fanático saíram dos quadrinhos para atacar a cidade? Espero que não tenha envolvimento do Norman Osborn nisso.
Opa, opa, opa! O Capitão lê quadrinhos? É convivendo que a gente conhece, né? Enfim, eu precisei inventar uma desculpa rápido:
– É... Oi, Capitão! Eu... Tô pesquisando sobre eles porque eu... Comprei um gibi pro meu sobrinho.
O Capitão fez uma cara de enojado na hora:
– "Gibi"? Quando se trata de Marvel, é "HQ" ou "quadrinhos" que se fala, fui claro?
Sim, o Capitão Lester Gregade lê quadrinhos!
– Agora me responda, Bocchio: qual história você comprou que eles aparecem juntos? X-Men, Vingadores, Vingadores Sombrios, Thunderbolts?
Tom e eu nos espantamos com o conhecimento do Capitão Gregade sobre histórias de super-heróis. Eu tentei jogar verde pra colher maduro. Como eu vi que um deles era vilão dos X-Men, eu chutei, gaguejando um pouco:
– X-Men?
A resposta do Capitão foi imediata, apontando o dedo indicador na minha cara:
– Errado! Vingadores Sombrios! Vocês estão investigando o roubo do cachorro, não é?
Rapaz, como o Capitão chegou nessa conclusão?
– Escutem bem, rapazes, eu vou ser franco com vocês dois. Eu também fiquei sentido com o menino em busca de seu cachorro. Só que vocês são investigadores! Os casos que vocês devem pegar exigem materialidade maior.
Lá vem ele com a materialidade de novo.
– Eu preciso seguir as regras aqui, caso contrário, a Polícia vai perdendo credibilidade diante da população. E nós precisamos que a população confie em nós.
Depois de ouvir esse discurso do Capitão, Tom perguntou:
– Mas, Capitão, se nós recuperássemos Batz, isso também não traria credibilidade?
– Você tem um ponto, Mangalvo. Mas, infelizmente, não fui eu quem fez as regras, e as pessoas valorizam mais quem segue regras do que quem põe seus valores à frente delas.
Eu vou confessar uma coisa pra você: eu demorei um mês pra entender essa última frase do Capitão Gregade. E o pior é que ele tem um pouco de razão. Por mais que tenha um ou outro gato pingado por aí falando que põe seus valores acima de tudo, quando a situação aperta, aí eles cobram que todos andem de acordo com leis ou normas, mesmo que neguem isso. É só ver esse pessoal que acompanha esses advogados do consumidor na televisão.
Mas não era isso que Tom e eu pensávamos na hora. Quando o Capitão saiu, foi como se aquilo que ele disse tivesse entrado por um ouvido e saído por outro. Nós fomos para a viatura combinando como seria a conversa com o Seu Elias.
Tinha algo errado nessa história, algo que deixou Tom e eu com a pulga atrás da orelha. Além disso, Batz precisava da nossa ajuda e tinhamos que ser rápidos.
Continua...